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Encontram-se palavras extraordinariamente antigas no vocabulário.
Sofreram adaptações para entrar no nosso léxico provindo de lugares,
tempos e povos remotos que as adoptaram e lhes atribuíram sentido. Em
geral, todas têm que se lhes diga, é certo, mas as palavras mais
antigas, quando as estudamos, abrem-se deixando à vista conteúdos ricos
que chegam a ser fascinantes com as suas raízes estendidas ao longo das
geografias e das épocas que atravessam, podendo recuar para lá do latim
e do grego até os confins da história.
É este o caso de “alma”, anima,
palavra que os catecismos das religiões impregnaram de espiritualidade,
alcance metafísico, transcendência. Mas, desde sempre,
a semântica de anima (“sopro, ar; alento”)
aponta para a naturalíssima função de respirar, pelo que é fácil
perceber que o vivente animado ganhou “alma” somente na justa medida da
sua animação. Todavia, interessou à religião colocar esta
anima como “princípio de
vida”, assim estabelecendo a oposição dessa alma com o corpo que sente e
respira.
Atribuir à palavra que designa função tão natural e universal uma
categoria religiosa de inspiração divina, por mera transferência
metonímica, originou a noção de pecado e, por aí, os conflitos travados
entre a consciência e os apelos das emoções e dos instintos. Uma curiosa
questão aparece então suscitada. Se o homem, dotado de consciência, tem
alma, anima, porque respira,
como explicar que os seres orgânicos que vivem na natureza em geral,
alegadamente criada por Deus e com necessidade respiratória, não tenham
também alma, anima?
A acção de limpar dos véus teológicos as palavras cujo sentido natural a
catequese pretendeu recobrir de um certo halo místico assume excepcional
premência. Os
avanços do conhecimento científico demonstram, indiscutivelmente, quão
falaciosos são os dogmas que estruturam a religião, senão mesmo todas as
religiões, deixando bem à vista que os deuses, tendo sido inventados
pela imaginação humana, jamais criaram coisa alguma. Este tópico foi
abordado no meu artigo anterior “Um relance ao céu” (1), de modo que, no
presente relance, considero a função respiratória como “princípio de
vida” no plano teológico em primeiro lugar para em seguida abordar em
análise algumas outras palavras dignas de especial atenção. Mas, a
propósito, passo a lembrar uma peripécia.
Num jornal que já não
existe (tinha sede em imponente edifício no centro da cidade tal como os
seus dois concorrentes), li que se encontrava “memória” na água, e
explicava: adicionava-se uma substância química estranha ao líquido
natural e extraía-se depois essa substância em operações sucessivas.
Novidade: na décima extracção ainda surgiam vestígios da adição; logo,
poderia falar-se de “memória da água”…
O caso, de recorte
certamente algo fantasioso, não perturbou ninguém. Recordo-o porém
porque estas nossas palavras, dissecadas à lupa, também serão capazes,
para nossa surpresa, de largar substância até à “décima extracção”.
Acontece portanto que são as palavras de uso corrente (isto é, uso
repetitivo, mecânico) as que mais conseguem surpreender-nos. Como esta
outra, o verbo “folgar”.
Não passa de um folegar,
dar muito aos foles do peito, portanto de uma animação. A respiração
também aparece no “alento”, substantivo de abordagem não menos
reveladora. Significa, sem segredo, “força para respirar; bafo,
respiração; força; ânimo”. Ou ainda, por outra via, hálito - de (h)alenitu
- que o dicionário regista, “exalação; respiração”.
Segundo a etimologia, folgar
tem raiz no latim follicare, “respirar com ruído (como o fole)”.
José Pedro Machado abona o termo com D. Dinis (séc. XIII), registando, no
séc.
XV,
folga e follegar, “respirar dificilmente”.
Neste ponto, sem resfolegar, já estaremos a lembrar-nos das variantes do
termo: folgança, folgadio, folgaz, folgura, folguedo, folgazão. Em suma,
precisamos de bons foles para folgar, mas temo-los embora nos faltem os
sete fôlegos de gato.
O corpo de uma pessoa inanimada revela que tem vida, ainda que exangue,
se lhe colocamos o espelho rente à boca e o vidro regista um mínimo
embaciamento, um hálito. Era a prova real usada na falta de médico
porque outrora apalpar um pulso para o sentir latejar podia induzir em
erro. A prova do espelho era mais convincente.
Aqui está como a nossa capacidade respiratória aparece associada à
vontade de brincar, entendendo muito naturalmente que a uma acção
corresponde a outra. Mais curioso ainda é ter de concluir, perante
exemplos concretos irrefutáveis, que começamos a viver respirando
correctamente para depois nos habituarmos decerto a respirar mal. E
sobra-nos o desplante para repetir que uma pessoa pode sobreviver sem
comida vinte ou trinta dias, sem água cinco ou dez dias, mas que sem
respirar não tem mais de dois ou três minutos...
A função pulmonar é vital. Concede-nos “alma”, anima, que sem
teologia não passa de “sopro, ar; alento”. Precisamos, pois, de respirar
para ter aquilo que as teologias garantem, sem provas conclusivas, que é
eterna na condição de o crentes ganharem a salvação na travessia da
mirífica ponte para o Além…
Respirar profundamente equivale a viver, ou querer viver, profundamente.
A função pulmonar foi experimentada por pensadores budistas de forma
assaz atenta e minuciosa. Perceberam a sua relação com a tensão arterial
do próprio corpo e tentaram mesmo dominar a função até quase não
respirarem durante períodos alongados em exercícios tendentes a atingir
o búdico Nirvana.
As variantes lexicais do termo
folgar tinham que ser abundantes: animado, animar, ânimo,
animosidade, animoso, anímico, até animável (lat. animabile,
“vivificante”. Respirar, então, é ter vida, animação; enfim, é possuir a
tal “alminha” volátil como chama de vela que um sopro fatal extingue.
Quem, embarcado no submarino da fé, se lembra do que aprendeu na
catequese, passa ao largo desta ligeira abordagem etimológica, não o
cronista. Lida com as palavras (que não inventou), gosta de as pesar
para além da casca, até ao grão, e entrou aqui a bailar com elas.
Note-se que a semântica de
anima ou fôlego, folegar
e resfolegar, ou de alento, aponta de imediato, com impecável
pontaria, para a função respiratória. A lembrar-nos, afinal, que é
função impreterível de todo e qualquer organismo vivo que vai continuar
vivo. Mas, com especial relevância, que é função a mais vital da espécie
humana. O perigo supremo, para o crente, é “perder a alma” porque,
justificadamente, isso corresponderia de facto a morrer...
Logo, são diversos os
vocábulos que aludem ao fenómeno vida, que é respiração, bafo, exalação,
anelo (do v. lat. anhelare, “respiração ofegante”). Na sua
variedade, exprimem a admiração maravilhada que sempre rodeou o fenómeno
da vida a eclodir em acto onde quer que se anuncie. Mas,
verdadeiramente, como compreendê-lo? A inteligência humana aplica-se,
avança através dos organismos vivos, vai do mundo biológico ao
inorgânico, lá onde se dilui a fronteira entre um simples vírus e os
processos físico-químicos. A ciência esclarece-nos mais e mais, mas o
mistério continua a rodear a vida na multiplicidade das suas formas
talvez porque a vida é mistério e mistério tão basilar que outrora deu
berço às religiões, à invenção de uma metafísica fabulosa.
Todavia, não resta lugar para um Deus criador do mundo, os avanços da
ciência extinguiram-no. O derradeiro golpe foi dado por Stephen Hawking
no seu novo livro The Grand Design. Assumidamente agnóstico, o
físico cósmico explica ali o Universo através do
Big Bang primordial abolindo
definitivamente a ideia teísta do criacionismo. Segundo afirma quem já o
leu, Hawking procede neste livro a uma definitiva abolição da hipótese
divina. Antes parecia admiti-la como hipótese última, nos limites do
conhecimento, reafirmando porém o seu agnosticismo. Agora, por fim,
aplicando somente as leis da física cósmica, transpõe a última
fronteira.
Degrau a degrau, sucessivamente, pode também chegar à contemplação do
cosmos, ou seja, do Universo, quem se põe a cogitar nas origens do
mundo. Não se detendo em meras aparências, eleva o pensamento para além
do que o rodeia e, gostando de astronomia, fica no escuro como quem sobe
de noite ao telhado mais alto e dispara para o céu polvilhado de
estrelas as suas interrogações e espantos. Decerto perceberá então que a
vida, toda a vida respira e pulsa naquela abóbada fantástica.
Inserido na abóbada, vogando no espaço celeste, terá o sistema solar que
integra o planeta Terra, com a natureza envolvente em cujo seio a
humanidade nasceu. Na verdade,
tudo existe na amplidão do céu, onde tudo é tempo e espaço, isto é,
matéria diversamente organizada e energia. Pormenor curioso: os que mais
apontam o olhar para o alto, supondo que é morada de Deus, parece que
menos o contemplam. Rezam, adoram o céu, mas habituaram-se decerto a
considerá-lo como metáfora, mero recurso retórico, ao modo dos
minúsculos hemisférios pintados de azul, com estrelinhas douradas, que
cobrem certas imagens de santos. A observação directa inculca a
impressão de que os crentes assim religiosos vivem tão agarrados ao
terreno que prescindem de contemplar o que adoram.
Todavia, viver no Planeta Azul sem pressentir a infinidade sideral,
portanto de olhos cegos para a verdadeira luz, como toupeiras no
interior dos túneis que escavam, reduz a dimensão humana à ínfima
condição. Rebaixa-a para além do razoável, permitindo a sobrevivência de
fenómenos sociais tais como superstições e crendices arcaicas enraizadas
no íntimo de gente com mentalidade parada no tempo. Mas a ciência é e
torna a ser peremptória: a hipótese de Deus criador não tem mais céu
para reinar...
Sobra-nos hoje na Terra quem reina a valer, disputando o poder à Igreja
ou reinando inclusive em nome de Deus sobre as consciências, os valores
humanos supremos e as coisas do mundo. Mas das épocas em que a Igreja
predominou com poder mundial absoluto subsistem termos que ainda hoje,
ao detectá-los, nos assombram e deixam a estremunhar. Regressemos, pois,
a palavras antigas carregadas de história. Tomemos o
vocábulo dom.
Sentia-lhe,
desde há tempos, uma esquisitice intrigante. Na escola primária
habituara-me, como toda a gente, a vê-lo ligado a reis e outras figuras
da aristocracia, depois também a bispos e cardeais e por fim a senhoras
donas. No tira-teimas, lá
estava abonada a semântica: donativo, dádiva, qualidade ou vocação; do
lat. donu-, “oferta aos
deuses” e, como título, do lat.
dominus, “senhor, dono [de casa], possuidor, proprietário; chefe,
soberano, árbitro, senhor (com sentido próprio e figurado)”.
Eis quanto foi preciso para me agarrar ao
tema. O dicionário regista que “dono”, proprietário, provinha do
lat. dominu- e remetia-nos
para o “dom”. Ora dominiu-,
domínio (propriedade, direito de propriedade; banquete solene, festim)
conduzia a domina, “dona de
casa, esposa, e também senhora, soberana”…
Neste ponto, tendo na mão o
dom e respectivas derivações
fui, inevitavelmente, até ao lat.
domus (casa, morada,
habitação, domicílio), que lembra a
domus municipalis. Era
evidente. Existia uma correlação entre as partes deste conjunto lexical.
Apontava para um facto de grande relevância histórica com especial
significado.
O facto parece demonstrar que o
dom era adquirido pelos
felizes, então muito raros, possuidores de bens terrenos, propriedades.
Um rei, portanto, adquiria-o por possuir vastos domínios com povos,
palácios e castelos. No período feudal esses domínios entraram em
progressiva fragmentação (repetiam-se as doações régias), de modo que o
número dos senhores “donos”, isto é, com “dom”, foi crescendo.
Mas acaso poderiam assistir a isso os
grandes hierarcas da cristandade sem disputa, eles que, no esplendor das
catedrais, coroavam as cabeças dos reis sagrando-os em nome da
divindade? A Igreja também possuía bens terrenos (e não eram assim tão
poucos), ainda que, alegando eterna pobreza, declarasse que o seu reino
não era deste mundo, estaria cifrado numa transcendência. Todavia, os
“príncipes da Igreja” chegaram a ser titulares de domínios (apenas
simbólicos, celestes?) atribuídos pelo soberano absoluto, o papa.
Certamente, os príncipes da realeza e da
cristandade, conservadores empedernidos, continuam a manter na
actualidade o seu dom, ao
passo que outros grandes donos do planeta o dispensam, abraçados como
estão aos seus milhares de milhões ou de triliões, mas será de notar que
os colonos romanos da antiga Lusitânia, sentindo-se decerto miraculados,
dotavam muitas vezes as suas
villae com uma capela, costume depois mantido por donos posteriores
de palacete solarengo.
Sem atender mais a outras derivações de tão
prodigioso dom, note-se a
longevidade das juntas de paróquia, embriões das actuais freguesias.
Passaram, evidentemente, por diversas transformações, confundindo-se de
início com o avanço do culto cristão. A própria designação dessas
autarquias locais variou e sofreu alterações semânticas: igreja,
diocese, paróquia, freguesia, colação - refere José António Santos, autor do
estudo As Freguesias (Oeiras,
1995). Por outro lado, o artigo “Paróquia” do Dicionário de História
dirigido por Joel Serrão conduz-nos à percepção de que as casas
senhoriais das villae, espalhadas pelo campo (quintas onde se
formaram muitas vilas), incluíam templo privado (paróquia = “igreja”
primitiva).
Tudo isto ilumina com renovada clareza o
processo do avanço da cristianização no terreno pondo em destaque a
notável antiguidade dessas organizações de vizinhos. Estiveram sob a
égide total da Igreja, inclusive como “juntas de paróquia”, até ao
advento do liberalismo, no século XIX, e em 1916, sob o regime republicano, laicizaram-se em completa autonomia
civil. A reforma administrativa, dita de Miguel Relvas, que alterou em
2012 a estrutura administrativa das autarquias básicas, herança milenar
tão tradicional entre nós, foi aplicada no terreno com insólita
indiferença.
Aliás, a escassa memória da evolução que a religião católica teve ao
longo dos séculos tende a inculcar a ideia, errónea, de que não houve
mudança, somente conservadorismo. Ora a matriz comum de que nasceram as
três principais religiões monoteístas mais conhecidas contém aspectos,
por isso mesmo, pouco evidenciados. Um desses aspectos parece continuar
omisso e é o de encontrar uma resposta para a velha questão: porque são,
para os católicos, os judeus tão hábeis em negociar com o dinheiro,
lucrar, enriquecer?
Questão interessante. Longe de manchar a boa reputação da religião da
maioria dos portugueses (uns 85%), realça, pelo contrário, um belo
preceito da doutrina canónica emanada da basílica de S. Pedro para o
mundo. Mas contrapõe, sem mais, um tempo antigo ao nosso tempo deixando
aquele a brilhar perante este.
É pena ter-se perdido aquele nobre princípio ético, embora nada impeça
os católicos de considerar quanto queiram uns usurários incorrigíveis os
judeus. Mas a questão traz a lume, já veremos porquê, a alteração que o
pai nosso, eminente oração do cristianismo, sofreu. Aponta para uma
rasura no trecho: “perdoai as nossas dívidas assim como nós perdoamos
aos nossos devedores”.
Posso testemunhar que, na minha pequena comunidade natal (situada entre
Aveiro e Coimbra), pelo menos até 1945, aquela oração se manteve sem a
emenda que depois sofreu. Aparentemente, a meus olhos, ninguém deu fé da
troca que então pôs “ofensas” no lugar das “dívidas”. Mesmo hoje pouca
atenção merece, afinal, a emenda daquele trecho da oração “ditada por
Deus”, apesar de ser máxima a relevância que a questão assume no plano
das relações sociais no universo católico.
Marca, porém, uma viragem crucial na doutrina canónica (e hoje contam-se
30 milhões de escravos no mundo com ou sem dívidas; metade na Índia, 3
milhões na Europa). Finalmente, a Igreja passou a admitir o direito de
quem concedia empréstimo a reaver o seu crédito bem como o de auferir
juros. Escreve Armando de Castro (artigo
juros, Dicionário de
História, dir. Joel Serrão, Figueirinhas, Porto, 1981): “É bem
sabido que na Idade Média, em Portugal como no resto da Europa, a Igreja
combatia a cobrança de juros, justificando teologicamente a proibição
com o argumento de que exigi-los seria extorquir valores ao devedor pelo
uso do tempo, que era uma dádiva divina.”
De facto, “os princípios éticos e jurídicos medievais não previam sequer
uma retribuição por quaisquer empréstimos em dinheiro ou em espécie.”
Escreve o mesmo autor na obra citada, artigo
usura: “Sendo os juros
proibidos pela Igreja durante a época medieval, somente quando o
investimento na produção dos capitais mutuados se tornou possível e
significativo é que as realidades começaram a levar de vencida as
disposições proibitivas. No entanto, mesmo na Idade Média, a cobrança de
juros praticou-se esporadicamente” (pois sempre houve transgressões).
Essas proibições constam, por exemplo, das ordenações afonsinas e
manuelinas e, até ao século
XX,
os códigos civis portugueses condenaram a usura acima de um limite
legal. Foi deste modo que os judeus, dispensados de tais dogmas, puderam
dedicar-se, em especial desde o Renascimento, à (mais lucrativa e
compensadora) atividade financeira.
Na actualidade, a laicização das populações
vulgarizou-se e a religião foi-se acantonando na esfera do privado
individual ou de grupo. O anúncio do “fim da fé” sobreveio à proclamada
“morte de Deus”,
supremo pai da vida substituído, nas sociedades de consumo e da
liberdade fictícia, pelo “deus” Mercado. Mas nem por isso a população católica portuguesa
abandonou deveras a sua fé tradicional. Abalada por escândalos de
especial impacto (pedofilia, ocorrências no Vaticano), terá enfraquecido
a devoção traduzida no aparecimento de
615.332 habitantes sem
religião registados pelo recenseamento de 2011.
Mas a política da austeridade, ou seja, a
crise socioeconómica, se não anima o tamanho das côngruas e dos dízimos,
pode atrair ao santuário maior peregrinos em renovadas súplicas por um
emprego, embora lá cheguem de mãos vazias. Por outro lado, nem todas as
correntes religiosas suportam a crise de igual maneira. A católica
regista menos fiéis nos templos aos domingos enquanto outras igrejas, da
IURD e de outras organizações oriundas do
estrangeiro, parece que singram com bom vento.
Nesta situação despontam alguns sinais de
uma evolução geral surpreendente. Certas missas e outras celebrações
religiosas apresentam-se com liturgias que transformam os templos em
palcos de variedades e os oficiantes em actores de uma qualquer
pantomima, com verbo inflamado e um pequeno sortido de frases repetidas
(marteladas) cem vezes até aquecer e levar ao rubro a freguesia. Ora a
freguesia aumenta, aprecia o espectáculo, sai satisfeita e volta.
Deus, lá do Seu etéreo assento, conserva o
indefectível mutismo desde o princípio das idades e, portanto, nada diz.
Assim, a liturgia deixa-se contaminar pelo lado laico e as celebrações
religiosas, com Bíblias e Jesus crucificado, abrem-se para a cultura do
espectáculo. A vivência espiritual intimista sai para o exterior a tomar
ares e não distingue mais religião de religiosidade, fé e crença.
A religião desertou totalmente da política
e, como vistoso sobretudo posto no cabide, fica à porta dos gabinetes
-
do governo, do partido, da empresa
- onde zelosos tecnocratas tomam
as decisões. A religião foi metida entre parênteses agora que a riqueza
material reina a valer na terra e no céu. Que papel e que valor atribuir
hoje, portanto, à religião? Se a fé, qualquer fé, já não liga o crente
ao seu semelhante, isto é, se perdeu toda a transcendência, toda a
espiritualidade, o que resta? Restará, pelo menos, a herança positiva de
uma “religião sem Deus”, isto é, a
religião natural
de David Hume (1711-1776), uma
“religião (re-ligação à espécie) da humanidade”...
A este ponto chegamos num relance à alma
atidos exclusivamente ao significado normal das palavras que usamos.
Terá o fio deste discurso entrado alguma vez em digressão? Nada disso.
Senão veja-se: procurámos a alma e, sem confundir respiração, que é vida
em acto, o que achámos? Os teólogos da igreja optaram por recobrir
unicamente anima de uma enganosa transcendência, mas, conforme vimos, outros
termos relacionados com a função respiratória, identificável como vida,
poderiam ter igual sorte. Logo, por coerência, sem propaganda nem
ludíbrio, deveriam existir “almas” em tudo quanto existe em acto.
Objectar-se-á que a transferência metonímica operada com
anima se perderia se
abrangesse os diversos sinónimos daquela palavra. Objecção! Então Deus,
Ele, o único, não foi dividido em três (a SS Trindade) sem perda da
unidade – Ele, o Espírito Santo e o seu Filho, Jesus?!
Tenho dito.
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