|
Não foi apenas a astronomia que, como se sabe, nasceu do que foi
a antiga astrologia. Também dessa origem comum saíram alguns dos
elementos fundamentais da religião e tão marcantes e perenes são esses
elementos que ainda podemos encontrá-los visíveis nas três principais
religiões monoteístas do mundo nascidas do berço comum. Vamos
recordá-los num breve relance.
Para todos os efeitos, a humanidade sempre se afligiu com a
questão essencial que desde o início teve de enfrentar ao descobrir-se
no seio da natureza:
- de onde veio, o
que estaria a fazer aqui, para onde iria em seguida
- em resumo, o
que era o homem. Foi preciso procurar explicações, articular respostas
e, naturalmente, a humanidade demorou-se a olhar para o céu que via
cósmico (isto é, perfeito, belíssimo), grandioso, infinito.
Acreditou, à falta de melhor explicação, que teria vindo de lá.
Não se enganaram muito nesse poético imaginar os homens primitivos,
sabemo-lo hoje, quando vozes credíveis, não menos poéticas, garantem que
fomos feitos da matéria das estrelas. A vida tal como a conhecemos aqui
pode germinar a partir de uma simples bactéria das que circulam,
alojadas nas pedras, pelo espaço interestelar. E se os nossos
antepassados sonharam, de pálpebras escancaradas no escuro fundo das
órbitas, que para lá iriam voltar talvez, um dia, apenas se anteciparam
um monte de séculos aos astronautas do futuro.
Não há dúvida, se a humanidade pertence à Terra-berço, o terceiro
planeta que gira em torno do Sol pertence ao céu, espaço que vemos azul
e que abriga este e milhares de milhões de outros sóis integrados, lá
longe, nas galáxias da Via Láctea (derrame de leite criador, útero
materno), e que tudo isso, enfim, pertence ao Universo. O sentimento
religioso terá nascido nos homens primitivos de olhos fitos na perfeição
da abóbada celeste. A intuição devia sugerir-lho: eles teriam de
perceber aquela grandeza incomensurável para chegar a compreender um
pouco a si próprios na sua origem e destino.
O céu continuou a brilhar aos olhos das gerações em sucessão. O fogo que o
primeiro xamã dominou pode ter sido tomado por lume roubado às estrelas.
A luz em geral, viesse da irradiação solar, do fogo ou das estrelas,
ganhou naturalmente todo o significado (pois fazia existir as coisas na
medida em que as tornava visíveis). Deste modo, ao sentimento
“religioso” latente da humanidade ficou aderida uma porção de vocábulos
ligados ao céu e à luz. Alguns deles são bastante expressivos.
“Ir para o céu”, num sentido porventura ainda não teológico,
poderia significar, para a intuição de homens primitivos, “voltar ao
ponto de origem”. Quem partia deixava concluída a sua passagem pela
Terra. Sem perder nada do seu mistério, a morte seria deste modo
interpretada como um regresso mítico à forma inicial, transformada à
vista pelo enigma do nascimento.
A evolução metonímica alargou também o campo semântico do que era
designado como celeste no
tempo remoto da religião natural. Celeste (ou o adjetivo derivado,
celestial) passou a designar não somente o que era “do céu”, do
firmamento, pois se imbuiu de um sentido hermético, de carácter
teológico. Esse céu ganhou maiúscula distintiva. Ordens sacras, de
instituição divina, adjetivaram-se como “celestiais”.
Alusivos ao espaço sideral, portanto ao céu, temos no dicionário
vocábulos como sideração (ato ou efeito de siderar; suposta influência
dos astros na vida ou na saúde de alguém; horóscopo), siderado
(espantado; atónito), siderar (pôr perplexo, atónito; “sofrer as
influências dos astros”) e sidério (celeste).
De facto, os antigos contemplaram longamente o manto estrelado
que os cobria na obscuridade noturna. Podemos mesmo imaginá-los, algures
no Médio Oriente, maravilhados e atentos aos movimentos da Lua e de toda
a incrível máquina celeste, sem dúvida a procurar entendê-los para
avaliar até que ponto tais mudanças poderiam atingi-los. Quando
pretendiam sondar o futuro, punham-se a con-siderar,
ou seja, ficavam com o espaço
sideral, observando-o a fim de tomarem decisões mais prudentes e
refletidas. Os horóscopos dos antigos tomavam a posição dos astros no
céu como base para vaticinarem a sorte de cada pessoa.
Assim virados para o céu
-
de onde se derrama a luz do sol, a chuva, etc.
- os antigos acabaram em adoração. Vestígio
de culto antigo, herdado do paganismo, é um dos tantos nomes com que
ficou a designar-se o demónio: Lucifer, ou luciferário, é o portador de
luz, referência à estrela da manhã, ou seja, a Vénus, que antecipa o
dealbar. Há notícia de inúmeros cultos solares.
A auréola dourada que costuma iluminar a cabeça dos santos na
arte sacra simboliza por certo uma luz sagrada colhida do espaço
celeste, numa espécie de legitimação de algo com origem longínqua,
transcendental, a querer dizer que os santos foram bafejados por um
sinal vindo de longe. A abóbada dos nichos da devoção popular é
frequentemente pintada de azul e decorada com estrelas purpurinas. O
hábito da tonsura, que perdurou até meados do século
XX,
distinguia os clérigos como ósculo sagrado recebido do alto. O fenómeno
das aparições sobrenaturais, feitas de luz etérea, de que têm nascido
casos de adoração em determinados sítios e épocas, relaciona-se em
parte, igualmente, com o sentimento humano (antes intuição), de que,
estando nós aqui, podemos manter-nos em comunicação com a fonte
primigénia da vida localizada nos astros. O que traz à memória que o
termo “comunicação” evoca o derivado “comunhão”.
A religião dos antigos apontava diretamente para o céu,
inspirando-se nos dados empíricos recolhidos da astrologia então
possível. No seu interior pulsava com força a perceção (instintiva?) que
lhes arregalava os olhos perante a imensidade cósmica. A religiosidade
primitiva, deste modo, terá tido a forma de uma conceptualização mais ou
menos tosca através da qual o indivíduo, inserido numa interdependência
grupal, se sentiria religado à sua espécie, religando esta à natureza e,
simultaneamente, à evidência cósmica. A “religião” servia o processo
complexo de uma religação do homem atomizado ao mundo em geral. E terá sido este
mesmo o significado remoto que o termo assumiu.
Numa base assim espontânea, as diversas crenças foram sendo
elaboradas e organizadas. A busca tateante da maravilhosa fonte da vida,
decerto remota porque secreta, logo transcendente, manifestou-se de
variadas formas no culto da mulher geratriz, fecunda como a terra.
Mulher e terra produtiva careciam por igual de fecundação.
Aquando
da emergência do culto cristão oficializado no começo da presente era, a
Cidade ganhou todo o poder sobre o Campo. Os cultos que neste vigoravam
foram sendo combatidos, eliminados ou assimilados por um processo árduo
e conflituoso em que o caldo cultural onde se gerava o cristianismo teve
força para limpar o que podia expurgar. Definhou a variedade de cultos.
Os poderes político e religioso (imperiais) arredaram definitivamente a
concorrência pela abolição do paganismo – isto é, do “ruralismo”, digamos assim, no sentido
(condenatório por ditame da Cidade) de
cultos camponeses na medida em
que “pagão”, etimologicamente, equivalia a “aldeão”.
A evolução religiosa posterior concorreu em geral para afastar o
céu, antes próximo, do espaço humano, embora a existência de cada
indivíduo tenha continuado a decorrer no plano situado exatamente entre
a cobertura cósmica e a terra chã. Ficou banida a astrologia e acusada
de superstição a credulidade vulgar que recebia os oráculos. A Igreja
tomou para si o exclusivo da palavra profética.
A expansão das cidades multiplicou os órgãos de controlo dos
poderes religioso e civil, reforçados em influência e eficácia através
do mundo a encolher-se. Pouco a pouco, os homens deixaram de olhar para
o céu (exceto para se orientarem), que entretanto se tornou no Céu,
categoria teológica com valência própria. O natural cedeu o lugar ao
sobrenatural. As igrejas prometiam o Céu no Além.
Foi o ponto da viragem crucial, concretizada no termo de uma
longa evolução. Teve consequências tremendas. O acesso da pessoa ao céu,
quer dizer, à experiência do sentido da pertença individual ao
transcendente – por degraus sucessivos: à comunidade, à nação, à
humanidade, à natureza e à evidência cósmica – passou a ter acesso
indireto, através de mediação.
Tudo o que na linguagem quotidiana antes aludia ao espaço
sideral, à maravilha celeste original, perdeu a conotação primeira para
servir uma linguagem simbólica que se oferecia como substitutiva e
melhorada. No entanto, os símbolos funcionam como representações de algo
que, nessas condições, à força de repetição, se torna misterioso e de
significação irredutível, logo inesgotável. Depois é fácil levar a
multidão a olhar para o dedo de quem, falando, lhe aponta o Céu
metaforizado.
Se a transformação em símbolos dos vocábulos ligados ao céu
pretendeu aproximar a cobertura sideral dos humanos, a intenção falhou
redondamente. A dimensão humana vivida desceu para a escala das ambições
mesquinhas ao fixarem-se as atenções nas lutas individuais pela
sobrevivência ou pela glória, deixando os astros, cada vez mais, como
matéria de estudo especializado dos astrónomos. Por este caminho,
perdeu-se a ligação, não apenas visual, ao céu, que ficou escondido pelo
esplendor citadino das luzes artificiais. O céu deixou definitivamente
de ser motivo de con-sideração
que não fosse a de alguém desejoso de prever o tempo, bom ou mau.
Perdeu-se também (e isso será o pior) a perspetiva que o céu
dava, da finitude humana. A transitoriedade da existência, antes
sensível, apagou-se, levando consigo o sentimento da pertença de cada um
à transcendência que é a matriz da vida em palpitação infinita nos
conglomerados astrais. Atomizado, o indivíduo quis-se unívoco e
absolutizado, princípio e fim; a religião identificou-se com uma
tradição e não mais com uma efetiva re-ligação.
Em resultado, a prática religiosa tornou-se formal, exteriorizada
numa série de comportamentos e de preceitos percorridos em circuito
fechado até não mais se distinguir na multidão, por exemplo, quem seja
de facto muito religioso de quem o seja pouco, ou nada. Sem ligação ao
céu e à natureza próxima, os indivíduos deixaram de ser gregários;
perderam a noção da relatividade das suas frágeis existências e chega-se
ao ponto de se tornar incompreensível uma velha história: a do médico
que aconselha o doente, na idade madura, a desistir de comer batatas
fritas. Para o doente, o seu estômago queixoso tinha somente a idade
dele próprio; para o médico, porém, o órgão era velho, tinha toda a
imensa idade da espécie. A novidade das batatas fritas iniciara-se ali
havia poucos segundos.
Do que antecede conclui-se claramente que a religião tal como
veio a ser praticada pela doutrinação eclesiástica soube colocar-se,
pouco a pouco, no lugar antes ocupado pela religião natural. Com
predomínio e autoridade crescentes, a Igreja canalizou em direção
conveniente a inquietude visceral que atravessava a espécie (e fazia
nascer a “procura de Deus”), de modo que avultou o seu poder efetivo e
enfraqueceu a religiosidade natural, transformando aquela inquietude,
por fim, numa prática ritual recheada de referências simbólicas e
baseada na “fé”. Não servindo mais para “religar”, isto é, para cumprir
o motivo essencial da religião natural
-
conseguir a integração da espécie humana no sistema de vida cósmica de
que proveio e de que faz parte para todos os efeitos
-,
a religião vencedora concorreu para distanciar cada homem da natureza,
proclamada como criação divina, e cada homem dos outros homens, de modo
que mergulharam na voragem crescente das paixões do
Eu.
A clerezia atiçou esta evolução gradual ao longo do tempo ao
ponto de se investir em exclusivo do papel sagrado que usurpou ao ocupar
o lugar da religião anterior, politeísmo espontâneo e canhestro, sem
dúvida, mas vivamente sintonizado com a ordem natural das coisas.
Dir-se-ia, deste modo, que a clerezia episcopal, ao implantar-se
enquanto hierarquia sólida e coesa, fomentou no homem uma tendência para
o individualismo e uma diluição da consciência da finitude da existência
rematada pela aspiração insaciável às glórias do mundo. A palavra viva,
se não morreu na viragem, tornou-se mero recitativo das horas solenes.
Evidentemente, o máximo apoio dos dados da filologia é útil para
podermos avaliar um pouco a extensão da viragem operada do natural para
o místico. Neste sentido, ajuda decisivamente a informação que se tenha
disponível acerca da evolução semântica de vocábulos relacionados com a
tradição religiosa desde os seus primeiros vagidos. Estas linhas já
apontam alguns, mas outros, também expressivos, serão alma (anima, respiração), anjo (mensageiro), evangelho (recompensa, ação de
graças ou sacrifício oferecido por uma boa notícia), liturgia (serviço
religioso popular), hóstia (vítima expiatória), breve amostra da carga
simbólica que a teologia neles acumulou.
Poderá questionar-se, por fim, perante a provável reação de
estranheza causada pela presente abordagem, que matéria assim clássica e
compartilhada ainda possa constituir para tantas pessoas uma notável
novidade. Todavia, os clérigos, incansáveis, insistem na recitação. Quer
dizer, não estão para dar lições de filologia de graça e quem sabe e
poderia dar explicações cala-se para não estragar a santa liturgia da
missa. Logo, vê-se que quem isto escreve não é clérigo nem filólogo
especializado, apenas um espírito curioso e indagador.
|