|
Quando a morte rondou Joaquim Benite, encontrava-me eu nas
paragens distantes de Cabo Verde, vivendo um ”exílio” a que me dediquei
por devoção. Mas lembrei-me dos velhos tempos da Amadora, quando
começámos a abrir os olhos para a miséria que era viver tal como ditador
pretendia: havia um café, o Pigale, onde calhava encontrarmo-nos a
conspirar as ideias de pormos o mundo direito, esboçando o que seria
tertúlia – se o projeto houvesse vingado e nele se não intrometessem
outros amores. Juntavam-se por então o Benite, o Deodato Santos, o
Adriano Carvalho, o Torres Rodrigues, por vezes o João Nascimento que,
se não fossem as tramoias da vida, seria certamente um dos mais valiosos
pintores portugueses.
Foram então os primórdios dos “Cadernos Andaime” (o nome
relacionava-o dom ideários neo-realistas) que, acompanhavam o desbravar
de caminhos que o Benite desbravava, por essa época, à frente do
“Notícias da Amadora”. E os sonhos acabariam quando a rapaziada se
envolveu em pancadaria com os jovens da Academia Militar (ali bem
perto), entornando tentações de saias e pilhardias politiqueiras.
Começava eu a escrever, vindo das paragens moçambicanas, e
pelas mãos do Benite (que, para mal dos seus pecados, foi meu iniciador)
entrei nas páginas do jornal. Só mais tarde veio a saga do “Diário de
Lisboa – Juvenil), com o Mário Castrim, e aos poucos eu descobria outras
realidades bem diferentes do mundo em que nessa altura militava. E
Joaquim Benite foi disso responsável.
Ao Deodato perdi-lhe o rasto. Soube depois que continuava a
poetar, e bem, por terras algarvias. E o Adriano, reencontrei-o como
colega da imprensa, saudoso dos anos em que convivi com o seu pai, o
velho líder anarco-sindicalista David de Carvalho, quando parei na
redação da Enciclopédia Portuguesa-Brasileira. O Adriano foi, por alguns
anos, meu confidente.
As amizades com o Benite foram-se, levadas pelos dissídios
políticos em que os “anos de brasa” (1974-76) foi fértil: as separações,
causadas pelos acontecimentos de “O Século” (eu fui dos que levantaram
armas contra os chamados “ocupantes”), terão para tanto contribuído. As
amizades com o Joaquim Benite ficaram com os tiros da Polícia Militar
que atacou no Bairro Alto, disparando – ao que se diz para o ar, embora
as balas ressaltassem no cão, bem diante dos manifestantes, entre os
quais me achava. Se bem me recordo, foram então assim as coisas: houve
radicalismos que nos separaram como provocaram outras clivagens –
recordo-me da rotura com os meus pais que enfileiravam nas trincheiras
de proteção ao “Século”, perante os meus perplexos olhares.
No 25 de Abril surgiram as nossas divergências e a separação
das águas que, todavia, emergiram bem mais cedo – recordo que o Benite,
juntamente com o Torres Rodrigues, surgiu certo dia, já eu fora
libertado da Cadeia do Forte de Peniche (que “habitei” durante cinco
anos), com um conjunto de propostas que rechacei. Foi praticamente a
última vez que nos sentámos à mesma mesa – suponho que terão existido
equívocos de ordem política que obrigaram o Benite a meter a viola no
saco.
Começaria, pouco depois, a sua peregrinação por Almada, que eu
acompanhei à distância. Em definitivo, ele enveredava pela aventura do
teatro. Para trás, ficavam os bons anos da imprensa regional e dos
sonhos acalentados nas páginas culturais encetadas, que receberam o nome
de “Andaime”. Seria excelente que houvesse a memória suficiente para
hoje a lembrar. A Cultura agradeceria a quem desse modo ousasse reeditar
a história.
Nuno Rebocho
|