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REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
nova série | número 35 |
janeiro | 2013
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A Alfredo Cunhal Sendim
e a todos os que contribuem para a utopia
na Herdade do Freixo do Meio
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ROSA MAGICI, SIM, MAS CAMARINHAS
E FRANGOS TAMBÉM
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EDITOR |
TRIPLOV |
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ISSN 2182-147X |
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Contacto: revista@triplov.com |
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Dir. Maria Estela Guedes |
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O Alfredo, proprietário da Herdade
do Freixo do Meio, convidou-nos, à Ana Luísa e a mim, a passarmos uma
semana no monte, na Casa da Professora. Mas anda sempre tão ocupado, tão
ocupado, que só ontem o vimos. Ele adora música, e então corta um caniço
da beira do lago das tartarugas, no meio do casario, e gosta de o agitar
nos ares ao compasso, e de tocar com ele naquilo de que está a falar,
como se fosse uma varinha mágica.
Ora precisamente, como se ouvia música para os lados
da casa dele, fomos atrás da orquestra que se espreguiçava por entre os
sobreiros, e lá andava o Alfredo, cá fora, para trás e para diante, no
caminho das hortas, todo atento ao que alguém lhe dizia pelo telemóvel,
cujo aviso de chamada é o hu-hu! do bufo-real. A ramagem das árvores
dançava ao som do
Hino da Alegria de Beethoven, difundido por um
programa de rádio. Magrinho, muito queimado do sol, mas forte e elástico
como as buganvílias que trepam pelas paredes exteriores do escritório, o
Alfredo despediu-se do telemóvel, agitou no ar o caniço, e veio
cumprimentar-nos:
- Ana Luísa, fez boa viagem?
- Estela, está bem de saúde?
Contente por nos ver, convidou-nos para jantar,
tinha coisas muito boas para comermos:
– E acertamos a conversa! – rematou, pressionado
pelos compromissos que lhe voltavam a soprar à orelha.
E lá fomos ao jantar, que reuniu uma quantidade de
pessoas: a Luiza, amiga do Alfredo, a Ana, engenheira florestal que
trabalha no Freixo, o Tino, que encetou uma criação de frangos, o
Bertrand, voluntário suíço que ajudará nas vindimas, e o Alfredito e o
Xavier, vindos de Espanha, para passar férias com o pai. Os rapazes
querem ir procurar uma espécie rara ao Carvalhal da Barranca da Loba, a
rosa-do-mágico. Ora da rosa-do-mágico, que tem fama de transmutar até os
porcos em pérolas, e sempre foi muito rara, diz-se que só existem hoje
em dia duas plantas, escondidas entre as silvas da Barranca da Loba. É
tão antiga, tão antiga, que viu nascerem os dinossauros. Nos livros de
Botânica, dão-lhe o nome científico de
Rosa magici, e foi
descrita por Lineu, no seu célebre livro
Systema Naturae, em 1758, se não nos falha a memória. Também vimos
algo numa
Flora da
Europa, que a
Ana mostrou, na biblioteca da Escola. Sim, outrora existiu no Freixo uma
escola, daí a Casa da Professora. Agora, a Escola é uma biblioteca e a
sala de reuniões. Sentei-me numa carteira antiga, onde mal me podia
mexer, o que bem mostra como o corpo muda com a idade. Debruçada sobre o
livro, a Ana tapava a página com a cascata de caracóis louros. De
qualquer modo, entrevimos o suficiente para ficarmos com uma ideia geral
da
Rosa magici. Os catálogos de flora e fauna registam muitas
espécies imaginárias, além das já extintas, e não registam um número
imenso delas. Sabeis que só na Amazónia, e só na classe dos insetos, os
entomólogos descobrem centenas de novas espécies todos os anos? É
verdade. Vai ser uma tremenda aventura dar com as rosas. A ideia dos
rapazes é estudá-las no seu habitat, ver crescerem as flores, murcharem,
e depois recolher as sementes, e experimentar cultivá-las para criar um
roseiral. Assim, todos terão direito a mudar qualquer coisa com a sua
ajuda, e sobretudo a mudar-se a si mesmos, pois o aperfeiçoamento
interior é a maior magia proporcionada pela rosa-do-mágico a quem a
descobre. Neste momento, como consta que só sobrevivem duas plantas, nem
espécie se lhes pode chamar, e nem os mágicos possuem nenhuma. São
quimeras como quaisquer outras.
- E o que é preciso levarmos para o jantar? –
perguntou a Ana Luísa. – Hoje é dia de pão!
- Pois é, pois é! – concordou o Alfredo. - Hoje é
quinta-feira, dia de pão fresco, vão ao Forno de Lenha e peçam à
Mariquitas um pão de trigo e outro de bolota. E acho que se me acabou o
azeite, digam à Ana que passe pela loja e traga uma garrafa de azeite do
Freixo.
- Umas azeitonas também caíam bem… – lembrei.
- Temos conserva de azeitonas ótima, mel, fatias de
beringela seca, para entrada, o que quiserem. Mas, além das azeitonas, o
que devem trazer é o
paté –
acrescentou ele, desejoso de dar a provar os produtos da Herdade, que
são bem mais de trezentos.
- É tudo? –
– Ah!, ah! – exclamou ele, de varinha a rabiar nos
ares. – Nada de esquecer os biscoitos de bolota para a sobremesa, e uma
garrafa de tinto Torre da Ameira, liga muito bem com os cogumelos!
- Então vamos comer cogumelos? – perguntei,
dececionada. Não é que não goste de cogumelos, e os da Herdade até são
muitíssimo bons, mas tinha visto acender o lume de chão, e os púcaros já
dispostos para o cozido…
- Não! – deteve-se o Alfredo, a prestar mais
atenção, de cabeça inclinada para a pergunta. – Não, Estela, vamos é ter
cozido em lume de chão, mas o vinho da Torre da Ameira liga
maravilhosamente com cogumelos, cozido, e até com o melão da sobremesa!
E com esta tirada o Alfredo distraiu-se de nós, toda
a atenção dele se concentrava no hu-hu! do telemóvel, pois já sabemos
que ele recebe chamadas de lavradores, parentes e amigos, a todo o
minuto. Sem exagero, a todo o minuto!
À noite, durante o jantar, que se exibiu com
camarinhas como entrada, o Alfredo contou que a última chamada do
telemóvel tinha sido da mãe, que vive numa grande e linda casa dos
arredores, a pedir um cavalo Sorraia para um amigo muito importante,
cujo nome não revelou. Desejo antigo, o de montar um cavalo daquela raça
tão portuguesa. Aliás, na Herdade do Freixo só se criam raças
portuguesas de animais, sejam galinhas, porcos, cabras ou ovelhas. Por
isso, no dia seguinte, o Alfredo precisava de ir a Coruche apanhar um,
vivem por lá em estado bravio. Os cavalos Sorraia também são raros,
embora menos que as rosas-do-mágico. Clarinhos, roliços, descendem dos
cavalos selvagens do sul da Península Ibérica, bastante estimados no
mundo pelos amantes dos desportos equestres. Os filhos é que ficaram
aborrecidos, pois também queriam ir ver onde vivem os cavalos Sorraia,
mas já tinham combinado explorar a Barranca da Loba, à procura das
Rosa
magici.
- Mas que ideia é essa de se aventurarem agora numa
floresta tão perigosa, onde até há javalis, em busca dessas misteriosas
rosas que nunca ninguém viu, são quimeras que só existem nos livros? –
inquietou-se o Alfredo. – Sem esquecer o Tomé da Águia, que anda por lá
sempre a espantar os pássaros com aquelas barbas compridas, e a arrastar
correntes como se fosse um lobisomem!
- Os lobisomens arrastam correntes?! – desconfiou a
Ana Luísa, de olhos fitos no écran do portátil, a ler o que eu escrevia.
Ela é demasiadamente filósofa, por isso garanti:
- Ai, Ana Luísa, não seja tão racionalista, claro
que os lobisomens arrastam correntes nos pés! Lá na minha terra, quando
eu era criança, acordavam toda a gente, com o ruído dos ferros a bater
no empedrado da rua. Era um pavor, um pavor! Depois, até tinha
pesadelos, e não conseguia voltar a pregar olho! Ainda hoje, nas
encruzilhadas, morro de susto se oiço passos atrás de mim, e fujo a sete
pés sem ousar olhar para trás! – com esta calei-me, pois ela já se
estava a rir.
- Cuidado com ele, sofre de pancada forte! Se vos
vir, ainda vos arremessa o varapau! – continuámos a escrever, pondo na
boca do Alfredo estas coisas horríveis sobre o bom Tomé da Águia, o
porqueiro, que passa os dias no montado, a guardar as récuas de porcos
pretos.
- Pai – retorquiu o Alfredito, a cabeça de cabelos
rapados à escovinha, levantada com os olhos grandes para a advertência –
Nós só queremos ajudar, o pai farta-se de falar da crise! E o Tomé da
Águia não nos há de perseguir, vamos de madrugada, quando ele estiver
ainda a dormir!
- Por supuesto, só queremos ajudar, só queremos
ajudar – corroborou o Xavier. – Se descobrirmos ao menos uma plantinha
de rosa-do-mágico, podemos trazer as sementes e lançá-las à terra na
Primavera. Depois cresce um grande roseiral e vamos todos vender
rosas-do-mágico aqui na loja, no Encontro da Primavera, e mesmo no El
Corte Inglés!
- Por supuesto – imitou o pai. – Por supuesto!...
Estes meus filhos, a estudarem lá por Saragoça, ainda se esquecem do
português…
- É um problema, sim – asseverou a Ana Luísa,
rebrilhante de autoridade. – Este país não progride por causa do mau
português!
- E não sei a quem saem estes rapazes tão
imaginativos, a mim não é de certeza… – resmungava o Alfredo, que por
sinal é um grande sonhador, e cuja direção do monte se pauta pela
sustentabilidade e não pelo desejo de ganhar dinheiro. Para os ensinar a
bem falar português, ainda acrescentou esta sequência de frases, com os
verbos tão preciosamente colocados como os de Padre António Vieira nos
sermões:
– Então, se ides para a Barranca da Loba, não vos
esqueçais de levar botas e camisa de manga comprida, senão as silvas
comem-vos vivos! E tende cuidado com as cabras! Agora, vá, toca a lavar
as mãos com sabonete de azeite, faz muito bem à pele! Depressinha,
andai, andai, a Luiza e a Ana vão servir o cozido!
- Uau! – os dois irmãos ficaram todos contentes, iam
experimentar grandes sofrimentos, com o medo do Tomé da Águia, dos
javalis e das silvas, mas viriam de certeza com o mapa traçado do
habitat da
Rosa magici no interior da floresta primitiva
da Barranca da Loba. E tudo o mais que as mágicas rosas proporcionam, em
especial o enriquecimento interior e a maturidade, como é evidente.
- O que é isto?! – desconfiava entretanto o tímido
Bertrand, à mesa, num fio de voz, a petiscar com a ponta dos dedos
aquelas bolinhas transparentes que o Alfredo, a brincar, tinha dito
serem olhos de peixe.
- Camarinhas! Camarinhas! – riu-se ele, prazenteiro.
– Apanhámo-las nós mesmos, a Luiza e eu, em Aveiro e até trouxemos umas
plantas com raiz, a ver se pegam. Era mais um produto novo que se
lançava no mercado. É preciso diversificar as culturas! Não fomos nós
que as apanhámos? – perguntou à Luiza.
- É verdade, andámos toda a tarde de domingo a
apanhar camarinhas! – sorriu ela. – Passámos o fim de semana em Aveiro e
nas praias apanhámos outras coisas, além das camarinhas: perceves,
caranguejos…
- Muito bem – aplaudiu o Tino. – Garanto-lhes um
sucesso tão grande como o dos meus frangos! Já se comeu a primeira leva…
- E os ovos, eram bons? – espreitei a conversa,
curiosa.
- Olha, ovos, ainda ninguém os provou, só neste
momento escolhi as frangas que hão de ficar para poedeiras, e o meu
maior interesse, por acaso, nem são os frangos, sim os ovos!
- Aviário, só com ovos, também concordo!
O Bertrand não sabe português, falávamos todos de
frangos e camarinhas em inglês para ele não se sentir excluído da
conversa, e nem sempre é fácil achar os nomes das coisas mais simples em
línguas estrangeiras, como é o caso de «frangos» e «camarinhas». Foi por
isso mesmo que o grande sábio Lineu inventou o Sistema da Natureza, que
distribui as espécies pela sua árvore genealógica com dois nomes em
latim, e aí ninguém se engana! Até os chineses, os chineses que sabem
Botânica, claro, até os chineses conhecem a
Rosa magici, embora nunca ninguém tenha
colhido e cheirado essas rosas, tal como até os chineses conhecem a
espécie
Corema album, de que o Bertrand revelava tanta
desconfiança.
- A camarinha… – começou o Alfredo, desejoso de o
esclarecer. – A camarinha, ou
Corema album, que é
o nome da espécie nos livros de Botânica, é um arbusto espontâneo que
vive sobretudo nos sistemas dunares. Usa-se como planta ornamental, mas
os frutos são comestíveis… Ora prova bem… E a planta, eu vou buscar… -
levantou-se e voltou com um ramito nas mãos que deu a cheirar ao
Bertrand e de seguida passou debaixo de todos os narizes sentados à
mesa:
– Cheira a mel… - descobriu o Xavier.
- Pois é isso, cheira a mel, eu queria ver se a
planta se dá no Freixo, fabricávamos conserva de camarinhas… É preciso
mudar de paradigma, inovar, dar atenção a culturas diversificadas, não
podemos permitir que avance e se acentue a desertificação do Alentejo…
- Sim, pai! Camarinhas e
Rosa magici… Amanhã vamos à procura da
rosa-do-mágico e o pai vai ver como somos bons cooperantes na Herdade do
Freixo do Meio! Cooperantes e voluntários!
- Cooperantes e voluntários… – ironizou o Alfredo. -
Cuidado mas é com as cabras serpentinas! – avisou. – Não se esqueçam de
fechar a cerca!
Não sabemos se os garotos prestaram atenção, já iam
a correr porta fora quando o Alfredo se lembrou daquela espécie caprina,
também tipicamente portuguesa, que lhes ia dar água pela barba que só
daqui a uns anos hão de cofiar.
- Se a deixarem crescer… – concluiu a Ana Luísa,
lendo o texto no monitor.
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Preparando o pão de bolota no forno de lenha |
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PRESTA MUITA ATENÇÃO
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Logo de madrugada, corria ainda uma brisa fria, o
Alfredito e o Xavier foram deixar comida ao Presta Muita Atenção, o
bufo-real que mora no pombal, enquanto não curar uma ferida que lhe
dilacera o bico. O bufo-real é uma rapinácea noturna, a maior de todas
em Portugal. Ostenta uns penachos na cabeça à maneira de orelhas e
fita-nos sem pestanejar com uns imensos olhos cor-de-laranja. Espantado
com a restolhada de passos na sua direção, o Presta Muita Atenção
espraiou as asas até onde lho permitiu a rede da gaiola, a querer fugir,
mas depois reconheceu os rapazes e sossegou, pousado no chão, sem
despregar os olhos deles. Foi por nem pestanejar, quando fita a presa ou
um predador, que recebeu o nome por que o tratam.
- Adiós, adiós! – despediram-se os garotos,
deixando-lhe carniça fresca no prato.
- Uh-uh! – despediu-se o bufo-real. – Não venham
tarde!
Os rapazes puseram às costas as mochilas, e saíram
do monte nas bicicletas a boa velocidade. Passaram pela Cabana dos
Sonhos, onde se toca música, pela Caravana-Bazaar da Filipa, onde se
borda e costura, e pelos frangos do Tino, que já tinham acordado. Isto
depois de apreciadas as duas cabras de raça serpentina encavalitadas nos
ramos do sobreiro do curral onde vivem, guardadas pelo Freixo, o cão
mais velho da Herdade. O Freixo também toma conta dos burros, nasceu um
há dois meses, é um burrinho muito charmoso. E as chibas também são
simpáticas, mesmo com aquela mania de se julgarem soberanas, por
perscrutarem o horizonte do trono do sobreiro. Se calhar não gostam dos
burros nem das ovelhas que lhes fazem ali companhia. Aliás elas detestam
é a cerca.
- De uma vez, conta a Ana Luísa, durante o Encontro
da Primavera, o Alfredo incumbiu-me, a mim, à Mafalda das aromáticas e
aos filhos dela, a Íris e o Valentim, de fazermos uma paliçada para
tapar um contentor inestético que estava ali ao pé do sobreiro em que se
encarrapitam as cabras serpentinas.
- Sim – animei. – E depois?
- Depois, tivemos todos um trabalhão a cortar os
bambus, a limpá-los, a juntá-los um a um para fazer a paliçada. E os
garotos por sinal ajudaram imenso! Imenso!
- E que idade tinham os garotos?
- Ai, não sei! Quatro, cinco anos…
- O Valentim e a Íris ajudaram imenso a construir a
paliçada, estou a entender…
- Depois de tanto trabalho, sabe o que aconteceu?
Mal virámos costas, as cabras serpentinas comeram a paliçada!
Ao fundo da estrada, no sítio onde se entra para o
eco-camping, frequentado por escoteiros e outros jovens aventureiros,
com a casa frigorífica, as retretes ecológicas e a lagoa da Ribeira de
Casa Branca, o Xavier e o Alfredito desmontaram das bicicletas para
abrir a cancela, mas não repararam que essa é a cancela do cercado onde
anda agora o rebanho das cabras serpentinas, porque as duas
encarrapitadas no sobreiro não lhe pertencem. Essas são cabras de
exposição, para as pessoas aprenderem a distinguir a raça do cabrito
alentejano, como também se diz. Elas chamam-se assim por referência à
cidade de Serpa, e já se sabe que os habitantes de Serpa são um bocado
endiabrados, exactamente como elas, basta notar que comeram a paliçada
de bambus com tanto trabalho erguida pela Ana Luísa, pela Mafalda, pela
Íris e pelo Valentim. De resto, «Serpa» é um nome antigo, tão parecido
com «serpe»… E serpes são as serpentes, que ninguém ignora representarem
a sabedoria. Muito grandes, devem prestar bastante atenção à higiene
corporal, a avaliar pela brancura geral, só quebrada pelas olheiras
negras e pelas listras largas que correm ventralmente até tingirem de
preto a face interior da cauda e das patas traseiras.
Os putos abriram a cancela, montaram nas bicicletas
e ala!, sem se lembrarem de a fechar. Ao verem aberta a porta para a
liberdade, as cabras serpentinas desataram a correr atrás deles, e oh!,
se elas corriam! Quase tão depressa como os corredores dos cem metros!
- Pedala! Pedala! – gritava o Xavier ao irmão.
- Mais força nas pernas! – replicava o Alfredito.
Insucesso total. As cabras corriam mais que as rodas
das bicicletas, a páginas tantas o rebanho cercou os ciclistas, e as
chibas, que são mais de cem, marravam neles sem descanso. Ambos se
acharam espalmados entre
Quercus suber e
Quercus lusitanica, com um cheirinho a poejos e a menta, pois a
hortelã debrua os caminhos da Herdade.
- Não fechaste a cancela! – criticava o Xavier,
sacudindo as calças.
- Não fechaste a cancela! – lamentava-se o
Alfredito, levantando as dele até aos joelhos, todos esfolados da queda.
- Mas parece que as bicicletas não se avariaram!
- Pois não. Mas agora quem mete as cabras de novo no
cercado?
- Não podemos deixá-las fugir, é preciso avisar o
pai – decidiu o Xavier, que já é um homenzinho responsável.
Quando o Alfredo os viu regressarem a casa, sujos e
arranhados, preocupados por não saberem como reunir o rebanho para o
meter de novo no cercado, ficou francamente aborrecido.
- Eu não vos disse que era preciso prestarem atenção
às cabras?
- Oh, pai!...
- Então abrem a cerca às cabras serpentinas e depois
esquecem-se de a fechar?
- Mas nós prestámos atenção! – gemia o Alfredito. -
Até parámos ao pé daquelas que passam a vida empoleiradas no sobreiro,
porque são tão lindas, todas brancas! – e referiam-se, como é fácil
comprovar, às cabras que tinham comido a paliçada de bambus.
- Isso não é prestar atenção, filhos! Isso é
observar e foi muito mal observado! As cabras serpentinas não são todas
brancas! Para lição, vão lá imediatamente, observem melhor e voltem para
me dizerem o que viram!
Os rapazes foram observar as cabras e voltaram para
mostrar ao pai que tinham feito boa observação.
- Então, como são as cabras? – perguntou o Alfredo,
de caniço retórico na mão, pronto a conduzir a orquestra.
- Têm manchas pretas – declarou o Xavier. – As
cabras serpentinas são brancas com manchas pretas.
- E como são as manchas?
- Como são as manchas?! São manchas pretas, pai! As
cabras têm olhos pretos e mais umas manchas…
Cada vez mais enervado, o Alfredo desligou o
telemóvel que já estava a piar hu-hus havia um tempão, foi a casa buscar
um caderno e um lápis, deu-os aos filhos e reclamou:
- Nada disso é prestar atenção, sim observar, e
vocês, meus filhos, nem observar observaram!
- Observámos, sim, pai! – defendeu-se o Xavier.
- Não observaram coisíssima nenhuma! – insistiu o
Alfredo - Para observar devidamente é preciso apontar as formas, as
cores, as texturas… Tudo isso constitui a forma, por isso se chama
morfologia!
- Morfologia, pai – repetiu o Alfredito, em tom
queixoso.
- Mor-fo-lo-gia, estudo das formas! Portanto voltem
às cabras, apontem no caderno o que viram, e não regressem a casa sem
saberem descrever o aspeto das cabras serpentinas! Ou descrevem a
distribuição das manchas pretas, ou não há morfologia! Nós prestamos
atenção à essência das coisas e isso não esquece porque é um
conhecimento profundo. Os dados da observação são efémeros e
superficiais, por isso é preciso anotá-los num caderno ou esquecemo-nos
logo deles. E querem vocês ir em demanda da
Rosa magici? –
perguntou, o caniço no ar a traçar arabescos musicais.
- Sim, pai…
- Sim, pai… - imitou o Alfredo. - Ainda têm muito
que aprender! E, para já, aprendam que dar atenção é ouvir o que os
outros têm para nos dizer, sejam pessoas, plantas ou animais, e vocês
não prestaram atenção nem às cabras nem ao vosso pai! Se não me derem
atenção, não conseguiremos nunca conversar. E olhem, se não prestarem
atenção às cabras, fiquem cientes de que elas nunca vos hão de
reconhecer, amar, ensinar nem respeitar!
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Na Barranca da Loba |
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CUIDA DE MIM
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No dia seguinte, os dois irmãos saíram a cavalo,
como o pai os havia instruído, pois seria mais longa a jornada, e mais
acidentada do que a anterior. Como vamos notando, o Alfredo, com o seu
caniço de maestro, vai orquestrando as aventuras dos filhos, e o que ele
quer é que eles aprendam a conhecer profundamente a Herdade do Freixo,
no que ela tem de mágico, para além dos aspetos realistas, ligados à
produção agrícola e pecuária e sua transformação em alimentos.
- Levem o Cigano e o Cuida de Mim e cuidado com as
aromáticas, são muito delicadas! – acautelou, os olhos nos filhos e a
orelha colada ao telelé.
- O Alfredo faz um grande esforço para educar os
filhos, é realmente bom pai! – comentou a Ana Luísa. - Apesar dos
afazeres, apesar de convocado para mil e uma iniciativas e reuniões, os
filhos ocupam sempre o primeiro lugar.
- É mesmo, nota-se! – adiantei. – Já viu, Ana Luísa,
que ele tem um maço de fotografias dos filhos em cima da secretária? O
Alfredo, por fora, tem aquele ar de caniço, é pouco expansivo, mas por
dentro é muito terno e sensível. Há muito nele ainda que nos dará
satisfação conhecer.
Nesse dia o Alfredo até nos explicou por que motivo
batizara o cavalo com o nome de Cigano. O outro é um cavalo castanho,
muito manso, que os filhos encontraram certo dia perdido no montado.
Potro ainda, abandonado pela mãe ou terá a égua morrido, quem sabe?
Certo é que descobriram o cavalito quase morto de fome, alapado à sombra
de um sobreiro, no meio do montado. Se ainda não dissemos o que é o
montado, é agora o momento oportuno para o fazermos: o montado é um tipo
de ecossistema caracterizado pela presença mais evidente de três
espécies arbóreas: sobreiros, azinheiras e carvalhos. Quanto ao potro,
deu muito trabalho pô-lo forte, e habituá-lo a comer, ele que ainda
devia mamar! Demorou umas semanas a ser tratado, mas valeu a pena,
porque é um cavalo amigo e bondoso. Em lembrança dessas canseiras, os
rapazes deram-lhe o nome de Cuida de Mim. Quanto ao outro, atentai só no
que conta o Alfredo:
- Eu sou sempre enganado quando compro cavalos, por
isso, engano por engano, prefiro comprá-los aos ciganos.
- Ah! – espantou-se a Ana Luísa.
- Sim, ao menos sei que estou a ser enganado, escuso
de me sentir apunhalado pelas costas. Há que tempos andava eu com
vontade de oferecer um aos meus filhos. Foi por ocasião da Feira da Luz,
veio aí um casal de ciganos com o cavalo, um belo cavalo branco, pensei
logo nele para o Alfredito e para o Xavier. E tem sido um bom cavalo!
Simplesmente, nessa noite choveu, apanhou água, e de manhã, para minha
surpresa, em vez de um cavalo branco, o que vi foi um cavalo cinzento.
Primeiro até pensei que de noite mo tinham trocado, que fosse outro e
não o meu, mas não!
- E era o mesmo? – insisti.
- Era, era o mesmo! Para o venderem melhor, os
mariolas tinham-no pintado. Ainda se viam vestígios de poeira de giz no
chão! – riu-se, e nós rimos com ele.
Recomendou mais uma vez aos filhos:
- Vão pelo campo das aromáticas, mas cuidado, são
muito frágeis! Olhem que as
Equinacea estão
prontas para colher! Não vão para cima delas com os cavalos!
Os pequenos largaram, montados no Cigano e no Cuida
de Mim. Passaram à desfilada pela Caravana da Filipa, que ainda não
tinha aberto a porta para mostrar as suas bolsas de cabedal e panos
bordados, viram ao longe a Cabana dos Sonhos, uma réplica das cabanas
dos pastores alemães do século XIX, onde se exibem diversos instrumentos
musicais e se ensina a tocá-los, em especial flauta de Pã, e onde os
visitantes da Herdade do Freixo do Meio podem admirar também uma linda
coleção de caixinhas de música. A Cabana dos Sonhos tem estado fechada
porque o Chris, jovem alemão que lá mora, foi ao médico e então a
companhia de seguros achou que ele sofre de um problema de saúde
suscetível de se tornar doença crónica. Só na Alemanha podiam cuidar bem
dele, por isso meteu-o numa ambulância, e de ambulância o levou para
Berlim. E lá está ele, ainda não se sabe por quanto tempo, a ser
super-bem cuidado pela super-agência de seguros!
Ao fundo do monte via-se uma serena paisagem de
sobreiros sobrevoados por dois milhafres, sinal de haver coelhos à
solta. Há tantos coelhos bravos na Herdade do Freixo que andam por aí
sem grandes medos, e até se deixaram fotografar pela Ana Luísa. Quando
isto ouviu, ela admirou-se, por isso agora lhe garanto: se observar com
atenção a fotografia que tirou ao imenso monte de cortiça, pronto para
vender, verá que no chão, as orelhas bem arrebitadas a captar a nossa
conversa, posa para si um coelho bravo.
Quanto aos nossos dois heróis, puxaram as rédeas aos
cavalos quando avistaram uma colcha verde esticada no chão, ao contrário
da amarela própria de setembro, em que a demanda da rosa-do-mágico
decorre e nós a vamos contando. Uma manta tão verdejante só podia ser o
campo das aromáticas. Os perfumes entrecruzavam-se nos ares, a poejos,
tomilho, orégãos, alho, louro, coentros, salsa, hortelã-da-ribeira,
alecrim, manjericão, rosmaninho, alfazema, cidreira, equinácea,
lúcia-lima, eu sei lá! No Alentejo cultivam-se umas trinta e duas
espécies, oriundas um pouco de toda a parte, mas podíamos dizer
cinquenta, se quiséssemos, informou uma botânica nossa amiga, muito dada
a aromáticas, a Alexandra Soveral Dias.
O nariz ia atrás dos aromas a ver se distinguia cada
um e onde começava e se suspendia, porque o perfume é assim uma coisa
invisível e inalcançável que parece nem existir existindo, ou ao
contrário, mas é tão insinuante que trepa à cabeça como o vinho. E no ar
planavam muitos, porque se cultivam no Freixo mais de uma dúzia de
aromáticas, cada espécie em seu canteiro, usadas para temperos,
perfumes, infusões e mezinhas várias.
Não se levantam ali cancelas, e os rapazes,
descuidados, não conduziram bem os cavalos. Seduzidos pelos aromas
inebriantes, entraram pelo campo dentro e fizeram das suas, espezinhando
o alecrim e a mangerona. Para grande aflição e desgraça, estragaram
assim o trabalho dos pais da Íris e do Valentim, crianças que também
vivem no monte. Andam na escola dos Foros do Vale de Figueira. Todas as
manhãs vem a carrinha da Junta de Freguesia buscá-las, e à tarde vem
trazê-las. Depois do dia de trabalho escolar, a Íris e o Valentim ainda
vão ajudar os pais a cuidar do campo das aromáticas.
- E agora, Xavier? – aterrou-se o Alfredito.
- E agora, Alfredito? – chorou-se o irmão.
- Olha, o melhor é pirarmo-nos para os moinhos, e lá
estudamos uma desculpa para dar ao pai.
- Acho isso muito mau – recusou o Alfredito – Para
os moinhos, vou, mas ao pai dizemos a verdade, detesto mentiras. Pronto,
os cavalos espantaram-se e pisaram as aromáticas. Foi o que aconteceu e
é isso o que lhe vamos contar.
- Tens razão, foi uma tolice que me saiu da boca. O
pai ia detestar desculpas. Então, vamos, vamos aos moinhos! Eu prefiro o
Moinho do Mocho.
- Esse está menos arruinado que os outros, é pena
que não tenham cuidado deles. O pai ainda os conheceu a funcionar, eram
movidos com a água da Ribeira do Canha, afluente do Almansor, e moía-se
neles a farinha de trigo para todos os montes em redor – informou o
Xavier, muito sábio, como é próprio dos irmãos mais velhos.
- Eu sei, eu sei – maçou-se o Alfredito.
- Depois seguimos para a Barranca da Loba, temos
muito tempo.
- Temos muito tempo mas precisamos de cuidado com as
horas, não trouxemos grande merenda.
- Sem merenda, não vou longe – concordou o Xavier. –
E não podemos faltar ao almoço coletivo.
- É isso, hoje é dia de o pai oferecer almoço a toda
a gente que trabalha e vive no monte, davam logo pela nossa falta!
A cavalo pelo montado, vendo aproximarem-se cada vez
mais as verduras anunciadoras dos lugares irrigados, chegaram ao Moinho
do Mocho, outrora chamado Moinho da Mouca, porque quem tomava conta dele
era uma alentejana surda-muda.
Desmontaram do Cigano e do Cuida de Mim,
deixaram-nos soltos e entraram no moinho. Só as trepadeiras seguravam o
resto das paredes de taipa e tijolo.
- Taipa e tijolo! – insistiu a Ana Luísa, zangada
comigo, por eu ter começado por escrever que as paredes eram de pedra. –
Queria casas de pedra no Alentejo? – desafiou ela, tão sábia de
edificações que até construiu, com a Mafalda e com a imensa ajuda da
Íris e do Valentim, uma paliçada de bambus desgraçadamente comida pelas
cabras serpentinas.
- Pode ser que cresça aqui alguma rosa-do-mágico –
aventou o Alfredito, afastando com as mãos a vegetação que inundava o
lugar onde outrora existira o soalho. – Ai! Ai, ai, ai! – gemeu,
esfregando as mãos.
- É preciso cuidado com essas ervas, as urtigas
invadiram tudo! – afligiu-se o Xavier. Mal acabava de dizer isto,
desequilibrou-se. Para não cair, agarrou-se às trepadeiras, que se
soltaram, provocando o desabamento do resto da parede.
- Oh, céus! – exclamaram. – Agora é que foram elas!
Estamos cercados!
- Ficámos fechados no moinho, Xavier!
- Alfredito, como vamos sair daqui agora?
- E tu deixaste a merenda lá fora? – assustou-se o
irmão.
- Eu?! Então não eras tu que a trazias?
- Pensava que a trazias tu… Ai, ai!, nem merenda nem
almoço! Vão todos ficar preocupados com a nossa ausência!
- Ai, ai, ai! – gemiam, abrindo os olhos um para o
outro tanto como o Presta Muita Atenção, com a diferença de neles boiar
um princípio de nascente de água.
- Vamos observar o local com pormenor, pode ser que
debaixo das silvas e das heras reste alguma passagem…
Ainda bem que calçavam botas de montar, ainda bem
que vestiam camisas de manga comprida como recomendara o pai, pois
aquilo era um matagal que só visto. Agora passagem, nada. A vegetação
tornara-os seus prisioneiros.
- E eu cheio de fome!
- E eu ainda mais!
Só quem passou por igual experiência avalia a
dramática situação. Os dois irmãos já haviam consumido horas no cárcere
de verdura, já passara havia muito a hora do almoço, de modo que a
ansiedade trepava por eles numa escada que findava em angústia.
- Os cavalos ficaram do outro lado, vou chamar o
Cigano – decidiu o mais velho. E chamou:
- Cigano! Cigano!
Nada, passaram segundos, passaram minutos, e o
cavalo sem reagir, sem nenhum manifesto de entender o apelo e ainda
menos de lhe responder com algum relincho.
- Vou experimentar o Cuida de Mim, quem sabe? Sim,
quem sabe?
Então o irmão mais novo gritou, na sua vozinha de
dez anos:
- Cuida de Mim! Cuida de Mim!
E não é que o cavalo lhe respondeu? Até parecia que
tinham andado ambos na escola. O animal relinchou e aproximou-se. Quase
se lhe via o focinho por entre as heras.
- Cuida de Mim, anda cá, anda cá! – continuava o
Alfredito a pedir socorro.
O cavalo relinchava apavorantemente, porque sabia
que os garotos precisavam dele e queria salvá-los da crítica situação.
Ouvindo o colega, o Cigano também veio atrás a resfolegar.
- De certeza que no monte já deram pela nossa falta,
e estão em cuidados por causa da gritaria dos cavalos!
- Pois é, o pai ainda aí vem e temos que o ouvir!
- Pois temos! Ele bem nos adverte, mas nós não
prestamos a devida atenção…
Voltaram a chamar:
- Cigano! Cuida de Mim! Venham cá!
Então os cavalos meteram a cabeça por entre a
folhagem, abriram um buraco, entraram no moinho e os irmãos respiraram
de alívio. Felizmente, estavam salvos. Montaram, satisfeitos, dando
palmadinhas de agradecimento aos cavalos. Iam eles a sair à desfilada,
quem veem aproximar-se, a toda a velocidade, montado na bicicleta
elétrica?
- Pai, nós até tivemos cuidado! – apressou-se o
Alfredito a explicar, antes de o Alfredo abrir a boca.
- Vocês não cuidaram de nada, deixaram os cavalos
espezinhar as aromáticas! Tanto trabalho tiveram os pais da Íris e do
Valentim, e mesmo o Valentim e a Íris, e são muito mais novos que vós!
- Oh, pai! – gemeram os rapazes.
- O trabalho do Valentim, com oito anos! –
continuava o Alfredo, a fingir-se muito zangado. - O Valentim a regar
todas as tardes o vaso do manjericão! E lá no refeitório, ao almoço,
toda a gente notou a vossa falta!
- Oh, foi sem querer, foi sem querer! Os cavalos é
que ficaram tontos com os perfumes e iam de nariz afiado atrás deles
pelo meio dos canteiros!
- E vêm para aqui, para o meio de ruínas, só silvas
e heras a ocultarem pedras soltas e buracos! Podiam ter cá ficado toda a
noite, se eu não estivesse no monte para dar conta da vossa falta! Mas
agora aprenderam a lição, certo? Não há como a experiência para nos
ensinar. Lá diz a teoria: as aulas práticas são a mãe de todas as
coisas…
- Nós até prestámos atenção, mas aconteceu… - o
Xavier tentava acalmar o pai, mas quem salvou a situação foi o bufo-real
do telemóvel, que começou a piar hu-hus. O Alfredo só dizia:
- Pois… Pois… Pois… Eles vão, sim… Pois, pois… Estão
bem… Sim, sim, portam-se de acordo com a idade…
- Vamos embora, já chega de aventuras por hoje! –
estabeleceu ele, montando na bicicleta eléctrica. – Ah!, e descobriram
as rosas-do-mágico? – perguntou ainda, voltando para trás a cabeça com
um sorriso largo na boca.
Orelhita murcha, os rapazes regressaram a casa, onde
ouviram o resto da lição e seus resultados práticos: arrumarem a casa.
Nada de livros em cima da mesa e das cadeiras da cozinha, loucinha
lavada, pratos e talheres no lugar, o chão varrido, e televisão
desligada durante três dias! Três dias, sim, três dias sem televisão!
- Oh!, pai, francamente! – lastimavam-se os garotos.
- É assim, filhos: haja alguma disciplina no meio do
aprendizado… Mas temos uma boa notícia - riu-se o Alfredo, fazendo girar
o caniço acima das duas cabecitas rebeldes.
- Ah!, e o que é? O que é?
- A avó telefonou… Quer que vocês vão lá a casa no
domingo, porque há festa de batizado da bebé da Carminha…
- Ah, que bom! – entusiasmaram-se os pequenos com
aquele raio de luz.
- Vão ver se os fatos azuis estão limpos e bem
passados, e se ainda vos servem… E os sapatos, tratem de os engraxar…
Têm de ir à missa com a avó, assim aprendem a estar quietos…
O Xavier e o Alfredo sorriram, compungidos, reagiram
com um «Sim, pai», num fiozinho de voz, e retiraram-se, contritos, para
os seus aposentos.
- Que grande seca! – choramingava, sentado na beira
da cama, o Alfredito.
- Não podia ser maior – concordou o Xavier.
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A antiga escola |
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Cigano, o cavalo |
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LIGAR
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São deslumbrantes os crepúsculos no montado, enchem
o céu de rubis. A serenidade é uma concha que só deixa passar as vozes
das noites mais silenciosas: estridulações de asas de insetos, coaxar de
rãs, o uivo longínquo de um cão ou os hu-hu! da coruja-das-torres e do
bufo-real. Foi por essa hora que os dois irmãos saíram do monte, a pé,
pois o pai recomendara que assim se arriscavam a menos percalços. Não é
que o Alfredo, tão carinhoso, eduque os filhos pelo medo, longe disso!
Mas todos, e em especial nós, que bem queríamos criar uma história
emocionante, precisamos de papões e situações terríveis para o medo
despertar os sentimentos de alerta. Cautela face ao perigo, primeiro. E,
de seguida, venha a coragem dos heróis, para o enfrentar. Não é, Ana
Luísa? De violência, não gostamos, agora de uns sustos…
- Hu! – gritou ela à minha orelha, no exato momento
em que isto escrevíamos.
- Tenha juízo, Ana Luísa! – saltei na cadeira. – Viu
o que fez? Agora já me perdi!
- Vá – retomou ela. – Íamos na parte do Ligar, o
cão…
Ah, sim, voltando à nossa história na Herdade do
Freixo do Meio, o pai sugeriu que levassem o Ligar, o cão-pastor, porque
sabia que, se houvesse perigo, o cão ali estaria para os salvar. O Ligar
vive ligado ao Alfredo, que o educou. Um
border collie
famoso, haja em vista os prémios internacionais que já ganhou com ele.
De mochila às costas, com pão de bolota saído do
forno nessa tarde, uma garrafa de água e uma candeia, para acenderem
quando a noite fechasse todas as portas, os nossos heróis partiram pelos
caminhos do montado. Tinham decidido ir de noite para prestarem a máxima
atenção, não se distraírem com cabras serpentinas nem com perfumes de
rosmaninho e hortelã-da-ribeira, e também, afirmava um livro oferecido
pela avó, porque as rosas-do-mágico se devem colher por uma meia-noite
de lua cheia.
Depressa ela caiu, a noite, e nas profundas
cisternas do céu começava a desenhar-se o horóscopo de vidrilhos das
constelações, com uma formosa Lua no centro, branca e gelada. Acenderam
a candeia, pois a Lua, apesar de cheia, não penetrava por entre a
ramagem dos sobreiros, e de vez em quando as nuvens encobriam-na, sinal
de que o vento as empurrava. Ouviram um «Uhuh!... Uhuh!...» que devia
ser do bufo-real, mas naquela escuridão até podia ser algo perigoso.
Tanto assim que, a páginas tantas, o Afredito gritou:
- Ai! Ai, que já me apanharam!
- O que foi? O que foi?
- Não sei, passou por mim uma coisa macia e mole,
muito rápida, quase me borrei de susto!
- Oh, acalmou o Xavier, todo importante – isso foi
um morcego!
- Foi nada um morcego - replicou o irmão. – Mas
javali também não! E olha, além, parece um lençol branco a serpentear…
O Xavier olhou e arrepiou-se todo, porém não deu
parte de fraco. Não era medo de aquilo ser algum monstro, algum animal
feroz, ou mesmo o Tomé da Águia, que anda de noite a arrastar correntes
para assustar os habitantes do montado, era medo do desconhecido, de não
saber o que era aquilo.
– Vamos mais depressa, mas cuidado, não te estampes
nas silvas da borda do caminho! – sussurrou ele, esforçando-se por
manter acesa a candeia. – Depois de passarmos a Ribeira de Casa Branca,
já pouco faltará para entrarmos no Carvalhal da Barranca da Loba.
- Acho que não, Xavier… Bom, se preferes ir por aí,
viramos à esquerda…
- De certeza que esse é o melhor caminho?
- De certezas não sei, vamos arriscar… Não se vê
nada nesta escuridão… Que eu não me queria perder, mas estou sem
referências nenhumas do lugar onde nos encontramos…
- O Alentejo é assim, sobreiros em todo o lado… E se
não são sobreiros, são carvalhos e azinheiras… Eu até já estou com medo
de irmos parar ao zambujeiro… - receou, pois o antiquíssimo zambujeiro
ergue-se no extremo oposto, aliás no prado onde também crescem aqueles
famosos bambus com que o Valentim e a Íris, mais a mãe e a Ana Luísa,
construíram a paliçada comida pelas ca…
- Avance, Estela! – enervou-se a minha amiga. – Já
contámos essa história mil vezes!
- Que zambujeiro, que nada… Vejo no chão uma
claridade, ora traz cá a candeia…
Com a candeia, vislumbrava-se ainda menos que sem
ela. E nem era precisa essa luz, porque outra, mais branca e comprida,
brilhava no chão plano… Os miúdos podiam não ir a caminho da Barranca da
Loba, mas à frente deles cintilava um espelho de água sob aquela Lua
cheia admirável!
Refletido na água, que viram eles? Oh, senhores, o
que haviam eles de ver? Fico estarrecida só de imaginar, e a pobre Ana
Luísa, de olhos esgazeados, nem consegue pronunciar bem as palavras…
- Olha, não é uma mulher que ali está sentada, no
meio da lagoa? – perguntou o Alfredito, de pernas a tremer.
- Uma mulher?! Aquilo só pode ser a Lua refletida na
água…
E nisto a visão desapareceu. Paralisados de susto,
os rapazes emudeceram.
- Sinto-me arrasado, sem forças nenhumas… – murmurou
o Alfredito, passados minutos de respeitoso silêncio. – Se não como
qualquer coisa, caio pelas pernas abaixo…
- Isso, vamos acender uma fogueira e comer um bocado
de pão de bolota. Se comermos, recuperamos logo a energia.
- O pão de bolota tem muitas qualidades bióticas,
diz o pai, como de resto vão comprovando as experiências científicas da
Universidade Católica do Porto: dá a volta aos intestinos, protege os
microorganismos benéficos do corpo…
- E elimina os nocivos, é anti-oxidante, não contém
glúten… - continuou o irmão.
- Não consigo acender a fogueira – pasmou o
Alfredito. – Até parece alguém a soprar para a apagar, porque brisa não
corre nenhuma… Ora vê, ora sente, ora escuta… - pediu, mais concentrado
que uma estrela.
- Coisa estranha… É um sopro, sim, também o sinto…
Estou todo arrepiado… - amedrontou-se o Xavier, que nem é nada medricas.
– Deve ser o cão, onde está ele? Ligar, Ligar! – chamou. O cão rosnou
mansinho ao pé deles, vinha então de outro lado o sopro. Ambos deram
atenção à noite, tanto que se ouviam por dentro a desabrochar. Não havia
dúvida: um bafo soprava na direcção deles, como a respiração de um
animal. Metia medo. E foi então que um balido na árvore debaixo da qual
se assentavam lhes arregaçou os olhos para o alto, onde viram, calculem!
Viram uma figura branca a ondular nos ramos, parecia vestida com uma
comprida cabeleira branca…
- Será a Anastácia? – aventurou o Alfredito. – Se
não for a Anastácia, só pode ser um enxame de pirilampos…
- É uma cabra serpentina – desmentiu o Xavier. – Só
pode…
- É mas é a Anastácia…
- Que mania aquela de treparem às árvores!...
Assustam qualquer um…
- Não é, não – recusou o Alfredito, a cabeça rapada
à escovinha virada para as alturas… Aquilo, se não é a Anastácia…
- Mas que Anastácia?! – censurou o irmão, esquecido
das suas leituras romanescas. – Onde foste tu desencantar essa ideia da
Anastácia?
Mal isto acabou de sussurrar, a figura branca desceu
do carvalho e estendeu-lhes a pata. Era, nem mais nem menos, uma cabra
serpentina. De barbichas bem aparadas e pata estendida, ofereceu:
- Tomai, para barrar o pão… É orvalho dos mágicos,
vulgarmente conhecido por visco… Na Bretanha, como sabeis das histórias
do Astérix, chamam-lhe
gui… É
muito biológico, acabei de o colher naquele carvalho… - apontou com o
focinho, esticando as barbichas para cima.
- De certeza que não é um freixo? – contrariou o
Xavier, a voz sumida.
- Ah, não, freixo é a árvore debaixo da qual
descansamos agora. Aquela ali é um carvalho, esta é um freixo, e
precisamente aquele que deu nome à vossa propriedade, a Herdade do
Freixo do Meio... – esclareceu a cabra serpentina, deitada em tal
posição ao pé deles que a sombra se assemelhava aos contornos de uma
serpente. – Estamos no umbigo da terra, no centro do mundo! –
acrescentou, misteriosa como a noite profunda.
- Li num livro oferecido pela avó que a árvore
mágica dos países escandinavos, Yggdrassil, é um freixo… - adiantou o
Xavier, que gosta muito de ler.
- Sim, Yggdrassil… - suspirou a cabra serpentina,
soltando um sopro como se fosse uma cobra.
A serpente, como já sabemos, é a própria imagem da
sabedoria. Tanto assim é que em tempos antigos se dava o nome de
«Ofiúsa», que quer dizer «Terra das serpentes», àquela em que Portugal
hoje se espraia. Quem quiser informações mais detalhadas sobre esta
singular matéria pode consultar as obras de Gabriela Morais e de
Fernanda Frazão, que por sinal são nossas amigas.
- Yggdrassil é o elo de ligação entre todos os
níveis do cosmos – continuava a cabra serpentina a sibilar. – Tudo, no
céu e na terra, no ar e na água, assim como na vossa Herdade, está
ligado pelo freixo, é nele que se abrigam animais e plantas, e sabe-se
mesmo que a vida, ao contrário do que a ciência diz por aí – indignou-se
ela – sabe-se que todos os seres vivos tiveram origem no freixo sagrado!
- É – assentiu o Xavier. – É mesmo. Por acaso
traduzi uns versos do livro que a avó ofereceu…
- Ah, traduziste um poema? Maravilha, então podes
dizê-los… - incitou o Ligar, caloroso.
O Xavier tomou fôlego e começou:
Essa árvore sabiamente edificada que mergulha as raízes
Até ao seio da terra…
Sei que existe um freixo chamado Yggdrassil.
Sei que o cimo dele é banhado por brancos vapores de água.
Formam-se aí gotas de orvalho que tombam no vale.
Ergue-se eternamente verde acima da fonte de Urd.
- Formidável! – admirou o cão. – Gostei de saber do
freixo, e gostei de ouvir esses versos que ligam o céu à terra e falam
da eternidade!
- Muito bem traduzido! – aplaudiu igualmente a Ana
Luísa, quando isto escrevíamos.
- Lindo, lindo! – deslumbrou-se a cabra serpentina.
– Yggdrassil é perene e invencível. Quando chegar a maior das crises,
com as catástrofes ecológicas, servirá de refúgio aos que escaparem,
como vós, e repovoarem depois o mundo. Mas sabeis que o freixo também
tem fama de afastar as serpentes? – asseverou, em tom de desdém. –
Imaginem! Entre passar pelas chamas de uma fogueira e passar entre os
ramos de um freixo, as serpentes prefeririam a fogueira! As coisas que
se inventam, as coisas em que as pobres mentes acreditam! Não houve mal
que não atribuíssem às cobras, por isso os camponeses as matam todas,
quando lhes aparecem à frente, sem saberem que são animais sábios, úteis
à agricultura, e tão dignos de viverem como quaisquer outras espécies.
Entristece-me muito a sorte das cobras, e ainda por cima num país que já
se orgulhou do nome «Ofiúsa»!
Mudando de assunto e de posição, de tal maneira que
a silhueta, na escassa claridade, se assemelhava cada vez mais
irresistivelmente a uma enorme serpente, a cabra indagou, nervosa:
- Então? De que esperais para comer o pão de bolota
barrado com visco?
Os dois irmãos não se atreveram a recusar o visco,
aquilo que estava a acontecer era fantástico, mas como já não se sentiam
amedrontados, parecia-lhes natural. Por isso tiraram um canivete da
mochila, barraram o pão escuro com o visco e comeram.
- Não é mau – apreciou o Alfredito.
À luz da candeia, o visco brilhava como gotícolas de
água, e deixava na boca um sabor adocicado. Enfim, fosse lá o que fosse,
os miúdos tinham perdido o medo e sentiam-se em casa, no seu ambiente,
alcançado com o pão de bolota barrado com orvalho o encantamento próprio
de um encontro íntimo com a Terra Mãe.
- Não é por nada, mas acho que a bolota me afetou de
algum modo... A menos que seja o visco…
- A mim também, sinto-me forte como um carvalho!
- Forte como um freixo! – emendou o Xavier.
Nisto, a fogueira acendeu-se sem lhe terem chegado o
lume da candeia, as labaredas elevaram-se nos ares como bandeiras
vermelhas desfraldadas ao vento, e o Alfredito, distraído, deixou pegar
fogo às calças.
- Que horror! – gritou. – Cuidado com os incêndios!
- Corre para a água! – guiou a cabra serpentina, sem
se alarmar.
Por qualquer razão desconhecida, as chamas
continham-se nelas mesmas, não alastravam, como se lavrassem numa redoma
de vidro, e o Alfredito já mergulhava no meio da lagoa antes de ele e a
cabra acabarem as frases, tal a velocidade com que correu. Sentia asas
nos pés, e frio na perna esquerda, toda a descoberto, queimadas as
calças daquele lado pelas chamas da fogueira.
- O que o pai vai dizer! – clamou ele, de longe. – E
como posso entrar agora nos silvados da Barranca da Loba, se levo uma
perna a descoberto? E de noite, ainda por cima! Vou ficar todo esfolado
nas silvas!
- Anda, volta para terra! – gritou o irmão.
- Não consigo sair daqui, fiquei enredado nas
plantas aquáticas!
O Ligar ladrou, sem medo, a acalmá-lo, mas o rapaz
continuava a gritar:
- As plantas ainda me vão estrangular,
enrolaram-se-me ao pescoço!
Sentiu-se de novo pairar o medo na noite, como
ameaça de tempestade.
– Ligar! Ligar! – chamou ele.
- Tem coragem! – animou a cabra serpentina. –
Domina-te, olha que já vais sair da água!
- Vai lá, Ligar! Corre, Ligar! Cãozinho lindo, muito
bem! – espicaçou o irmão.
O cão, muito fiel e prestimoso, tinha-se atirado à
água e conseguido arrastar o rapaz para terra. Custou no entanto, porque
o Alfredito vinha emaranhado em vegetação que quase ligava a água à
fogueira como uma rede de pesca cheia de algas.
- Ai, que susto! Sinto-me desfeito – queixou-se ele,
ao chegar a terra. O Alfredito voltou a sentar-se à beira da fogueira,
tirando do pescoço uma corda de ervas arrastada da lagoa.
- Como hei de chegar neste estado à Barranca da
Loba?!
- Justamente, justamente – avançou a cabra
serpentina, apontando para ele as barbichas. – As rosas-do-mágico não
existem na Barranca da Loba, escusais de lá ir…
- Não existem na Barranca da Loba?! – desanimaram os
pequenos.
- Não.
A noite arredondava-se de beleza, com a Lua no alto,
feita um prato de luz; em baixo, a fogueira afastava as trevas para os
lados, e os dois irmãos, mais a cabra serpentina e o Ligar, sentavam-se
à roda dela, com o freixo a aconchegá-los nos braços maternais. Dava
ideia de haver um lugar vazio, mas de repente os ares agitaram-se, um
vulto alado surgiu do nada e ocupou-o. Era um belo morcego, vestido de
fraque escuro, muito esbelto e musculado.
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São deslumbrantes os crepúsculos no montado |
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CERIMÓNIA
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- Eu sou Quiróptero, o mestre de cerimónias -
apresentou-se o morcego. – Tende muito boa noite.
Fez uma vénia especial à cabra serpentina:
- Tende muito boa noite, Imperatriz Agostinha! Que o
ideal do Quinto Império presida a esta sábia reunião!
- Muito boa noite – responderam todos.
E foi assim que os dois irmãos aprenderam que aquela
cabra não era uma qualquer, sim a Imperatriz Agostinha, senhora do
Quinto Império.
- Vamos dar início à cerimónia – ordenou Quiróptero,
o mestre de cerimónias. – Todos de pé.
Todos se puseram de pé, à volta da fogueira, sérios
e aprumados.
A Imperatriz Agostinha recebeu do Ligar um ramo de
oliveira, virou-se para os jovens, muito compenetrados, um ao lado do
outro, e declarou:
- Não existem rosas-do-mágico na Barranca da Loba!
Na Barranca da Loba só existem espécies antigas, sobreviventes da
devastação destes tempos anti-ecológicos, que mudarão quando chegar a
hora do Quinto Império, o do Espírito. E já começou tudo a mudar, basta
prestar atenção para se dar conta das alterações neste mundo. Rosas, na
Barranca da Loba, só as albardeiras. As rosas do Freixo sois vós,
Alfredito e Xavier. Vós, Alfredito, sois a rosa-do-mágico mais nova. E
vós, Xavier – declarou, com solenidade, voltando-se para o Xavier – vós
sois a rosa-do-mágico mais velha.
Parou a tomar fôlego, e perguntou, os olhos
afundados nos dele:
- Quem sois vós, Xavier?
O rapaz respondeu, com igual solenidade:
- Eu sou a rosa-do-mágico mais velha.
A Imperatriz Agostinha ficou de ramo de oliveira
suspenso no ar…
- Nós somos, nós somos… – corrigiu Quiróptero, o
mestre de cerimónias. - Tens de usar o plural majestático, agora és uma
ilustre personagem… Repete: «Nós somos…»
- Nós somos a rosa-do-mágico mais velha – emendou o
Xavier, todo ele rebrilhante de comoção.
A Imperatriz Agostinha bateu-lhe ao de leve no ombro
direito com o ramo de oliveira e aprovou, em aparte:
- Muito bem! Assim é que se fala!
Virou-se para o Alfredito, cuja carita redonda
corava de emoção, e inquiriu, o ramo de oliveira já pousando no ombro
direito dele:
- Quem sois vós?
- Nós so… mos… - gaguejou o Alfredito, num fio de
voz. Mas, armando-se de coragem, a seguir quase gritou:
- Nós somos a rosa-do-mágico mais nova!
E AQUI DAMOS POR TERMINADA A HISTÓRIA
E ENCERRADA A SESSÃO!
Herdade
do Freixo do Meio, 20 de Setembro-22 de novembro de 2012
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O monte |
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A
Herdade do Freixo do Meio no Triplov
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© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
PORTUGAL |
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