“A Luz da Cal” é o título de um belo livro com texto de Urbano
Tavares Rodrigues, e fotografia de António Homem Cardoso: Evoca
as casas caiadas de branco dos campos, aldeias, vilas e cidades
do Alentejo. Para haver cal é preciso haver caleiros e nós
conhecíamos um que, não só a fabricava como a vendia de porta em porta. Todos os anos,
umas semanas antes da Páscoa, o Júlio percorria as ruas da
cidade num carro bem carregado, puxado por uma mula e coberto
por um toldo, servindo uma clientela sempre certa.
Fazer caianças em casa nos primeiros dia
de sol, findo o Inverno, era uma tradição do Alentejo rural que
muitas famílias da cidade continuavam a respeitar. Nos montes,
as paredes exteriores e interiores das casas, muitas delas
térreas, eram caiadas, via de regra, pelas mulheres, de pincel
na mão até à altura do estender do braço, e com o dito atado na
ponta de uma cana, daí para cima. Na cidade, com prédios de dois
e mais andares, a caiança dos exteriores era entregue aos
cuidados de caiadores, acrobaticamente empoleirados em grandes
escadas de encostar à parede. Estes profissionais de trabalho
incerto e arriscado, não dispunham de qualquer protecção.
Trabalhavam por conta própria e, em caso de acidente, não havia
seguro que lhes valesse.
Nas casas das famílias mais desafogadas,
havia pinturas dos interiores e esse trabalho era entregue a um
ou dois caiadores considerados artistas e, habitualmente,
designados por pintores. Nestas pinturas, a base da tinta era
sempre a cal, sendo que as cores pretendidas se obtinham
misturando-lhes, com mestria, certas anilinas à venda nas
drogarias. Nas casas da generalidade da população não havia
pinturas, havia simplesmente caianças.
Sentado no varal do carro, o caleiro, de
há muito conhecido da minha mãe, parava sempre à nossa porta
pois sabia ter ali freguesa certa. À semelhança do que era regra
nos montes, muitas famílias da cidade faziam as suas caianças
uns dias antes da Páscoa. Mandava o brio das alentejanas que, na
Festa, tudo reluzisse de brancura.
Na caleira que herdara do pai, o Júlio
arrancava a pedra a tiros de dinamite e fragmentava-a a guilho e
a golpes de marreta, até terem o tamanho adequado a encher o
velho forno. Empilhada a preceito, esta montanha de calcário
transformava-se em cal-viva, branca de neve, pela acção do fogo
intenso de feixes de lenha, sabiamente metidos na base. Esta
cal, bem seca era guardada num barraco, protegendo-a de
eventuais chuvas e depois era só encher o carro, tantas vezes
quantas as necessárias para servir a numerosa freguesia.
- Cal branca! – Ia apregoando. – Arre
mula! Anda Violeta!
Não raras vezes, começando manhãzinha
cedo, carregado à medida da força do
animal, chegava ao meio-dia com o carro vazio.
O tempo chuvoso era mau para o negócio,
A humidade estragava-lhe a cal, mesmo a que estivesse ao abrigo
da chuva.
A minha mãe comprava-lhe sempre umas
pedras de cal que metia num pote de barro próprio para esse fim,
a que depois juntava a quantidade de água necessária. Esta
operação que despertava grande curiosidade, era barulhenta,
libertava calor e punha a água a ferver, um processo que só mais
tarde compreendi, quando, numa aula de química, no liceu, me foi
explicado a diferença entre reacções endotérmicas e exotérmicas.
No outro dia, a calda estava fria e pronta a ser usada.
- É boa a sua cal, este ano, senhor
Júlio? – Perguntava a minha mãe. – Olhe que a do ano passado já
não tinha força. Estava meio-morta.
- Foi da humidade, Dona Adília. Toda a
gente se tem queixado. Choveu a maior parte do tempo. Quase não
tivemos Verão e não ganhei para o trabalho que tive. Mas esta,
este ano, é da melhor que já fiz. Está bem viva. Vai ver quando
a “derregar”.
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