REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 35 | janeiro | 2013

 
 

 

 

A. M. GALOPIM DE CARVALHO

 

«A luz da cal»

 

A.M. Galopim de Carvalho (Portugal). Geólogo e ficcionista. Professor jubilado da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa.                                            

 

“A Luz da Cal” é o título de um belo livro com texto de Urbano Tavares Rodrigues, e fotografia de António Homem Cardoso: Evoca as casas caiadas de branco dos campos, aldeias, vilas e cidades do Alentejo. Para haver cal é preciso haver caleiros e nós conhecíamos um que, não só a fabricava como a vendia de porta em porta. Todos os anos, umas semanas antes da Páscoa, o Júlio percorria as ruas da cidade num carro bem carregado, puxado por uma mula e coberto por um toldo, servindo uma clientela sempre certa. 

Fazer caianças em casa nos primeiros dia de sol, findo o Inverno, era uma tradição do Alentejo rural que muitas famílias da cidade continuavam a respeitar. Nos montes, as paredes exteriores e interiores das casas, muitas delas térreas, eram caiadas, via de regra, pelas mulheres, de pincel na mão até à altura do estender do braço, e com o dito atado na ponta de uma cana, daí para cima. Na cidade, com prédios de dois e mais andares, a caiança dos exteriores era entregue aos cuidados de caiadores, acrobaticamente empoleirados em grandes escadas de encostar à parede. Estes profissionais de trabalho incerto e arriscado, não dispunham de qualquer protecção. Trabalhavam por conta própria e, em caso de acidente, não havia seguro que lhes valesse.

Nas casas das famílias mais desafogadas, havia pinturas dos interiores e esse trabalho era entregue a um ou dois caiadores considerados artistas e, habitualmente, designados por pintores. Nestas pinturas, a base da tinta era sempre a cal, sendo que as cores pretendidas se obtinham misturando-lhes, com mestria, certas anilinas à venda nas drogarias. Nas casas da generalidade da população não havia pinturas, havia simplesmente caianças.

Sentado no varal do carro, o caleiro, de há muito conhecido da minha mãe, parava sempre à nossa porta pois sabia ter ali freguesa certa. À semelhança do que era regra nos montes, muitas famílias da cidade faziam as suas caianças uns dias antes da Páscoa. Mandava o brio das alentejanas que, na Festa, tudo reluzisse de brancura.

Na caleira que herdara do pai, o Júlio arrancava a pedra a tiros de dinamite e fragmentava-a a guilho e a golpes de marreta, até terem o tamanho adequado a encher o velho forno. Empilhada a preceito, esta montanha de calcário transformava-se em cal-viva, branca de neve, pela acção do fogo intenso de feixes de lenha, sabiamente metidos na base. Esta cal, bem seca era guardada num barraco, protegendo-a de eventuais chuvas e depois era só encher o carro, tantas vezes quantas as necessárias para servir a numerosa freguesia.

- Cal branca! – Ia apregoando. – Arre mula! Anda Violeta!

Não raras vezes, começando manhãzinha cedo, carregado à medida da força do animal, chegava ao meio-dia com o carro vazio.

O tempo chuvoso era mau para o negócio, A humidade estragava-lhe a cal, mesmo a que estivesse ao abrigo da chuva.

A minha mãe comprava-lhe sempre umas pedras de cal que metia num pote de barro próprio para esse fim, a que depois juntava a quantidade de água necessária. Esta operação que despertava grande curiosidade, era barulhenta, libertava calor e punha a água a ferver, um processo que só mais tarde compreendi, quando, numa aula de química, no liceu, me foi explicado a diferença entre reacções endotérmicas e exotérmicas. No outro dia, a calda estava fria e pronta a ser usada.

- É boa a sua cal, este ano, senhor Júlio? – Perguntava a minha mãe. – Olhe que a do ano passado já não tinha força. Estava meio-morta.

- Foi da humidade, Dona Adília. Toda a gente se tem queixado. Choveu a maior parte do tempo. Quase não tivemos Verão e não ganhei para o trabalho que tive. Mas esta, este ano, é da melhor que já fiz. Está bem viva. Vai ver quando a “derregar”.

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