REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 35 | janeiro | 2013

 
 

 

 

 

CRISTINO CORTES


Europa, a minha

                                                                  
 

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
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Dir. Maria Estela Guedes  
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Tempos houve, em que, por força das minhas ocupações profissionais, viajei com frequência para Bruxelas __ e muitas vezes o fiz com algum peso na alma, para não dizer antes mágoa na consciência. Comigo mesmo me interrogava que Europa era aquela que, dum certo ponto de vista, nos exigia que fôssemos desmantelando, uns atrás dos outros, os nossos principais sectores produtivos.  

Lembrava-me de Miguel Torga, então bem mais na moda, e das suas proféticas palavras de que um país que não tem liberdade de semear e colher implicitamente perde a sua dignidade no concerto das nações. E o deslizar para esse abismo parecia-me então, no nosso caso, liminarmente evidente. Há até organismos do Estado __ pagos com o nosso dinheiro __ que não fazem outra coisa que não seja promoverem e impulsionarem, e depois fiscalizarem, esse suicidário projecto nacional! 

 E será que uma geração tem o direito de assim comprometer, quiçá irremediavelmente, o nosso futuro, a nossa autonomia enquanto colectividade?! Das poucas coisas que aprendi no meu curso da Defesa Nacional é que a Nação ultrapassa o simples conjunto dos vivos; a Pátria é mais do que isso, essa comunidade de querer e de destino, enformada pela história e pela tradição, cimentada pela língua em que exprimimos o amor e o transcendente, a poesia e o sonho, a Pátria associa os vivos e os mortos __ e até os que ainda estão por nascer. 

Mas enfim, deixemo-nos de políticas…As dificuldades de mercado, os problemas da concorrência, a famosa lei da oferta e da procura, isso ainda eu compreendo. Agora que o Estado ajude e apresse o funeral é que já me custa mais a engolir. Que raio de País é este, com efeito, em que se paga a alguém para não fazer nada? Que Europa é esta, oh meus amigos, prosseguia então __ com alguma demagogia, reconheçamos __, em que nós temos de arrancar as nossas vinhas para que os alemães e os dinamarqueses possam continuar a produzir aquela mistela a que, abusiva e ignorantemente, chamam vinho?  

Bem sabia, aliás, que a bebida de Baco era apenas um exemplo: em quase todos os sectores __ sobretudo na agricultura e nas pescas, provavelmente a compra da desistência dos caçadores açorianos de baleias haveria sido o princípio do desastre __  havia então programas para arrancar, para abater, para fechar, para destruir. E isso parecia-me __ e continua a parecer-me __ profundamente imoral. 

Curiosamente, no entanto, ver as prateleiras dos supermercados cheias de alfaces espanholas ou uvas do Chile não me fazia particular mossa. Parecia-me que se a Europa era um clube com algumas regras, algo teríamos de lhe dar em troca. Essa situação espelhava, certamente, as dificuldades dos nossos produtores. Mas parecia-me, por outro lado, que o consumidor sempre poderia lucrar alguma coisa: com a variedade, talvez com o preço. E depois sempre havia capacidade de escolha __ ao menos teórica… __ só comprava quem queria. O saldo parecia-me positivo. 

Com mais simpatia via a facilidade nas deslocações, a liberdade de cada um de nós se poder deslocar livremente para onde quisesse, não me parecia mal que alguém fosse trabalhar, ou abrir um negócio, em outro país. Desse ponto de vista compreendia o desaparecimento dos passaportes e até __ o que não foi processo fácil __ a existência de uma moeda única. Mas mais do que isso? 

Afinal para onde é que a Europa caminhava, qual seria o estado desejável dessa coisa a que agora se chama a União Europeia? Tais eram os pensamentos que, às vezes, me atravessavam o espírito. Se a Europa fosse uma simples realidade geográfica nada haveria a fazer, o meu trabalho seria profundamente inútil, pois me parecia que o peso da geografia era inultrapassável. Não podia deixar de rir ao ouvir tão mirabolantes projectos como o de Israel ou Marrocos aderirem à Europa! Como é que faziam? Traziam a sua terra atrás? E lá… ficaria um buraco? 

A Europa teria pois, forçosamente, de ser outra coisa. Mas o que seria, oh meus amigos?! Com frequência assim, então, me interrogava. Bem longe estava eu de imaginar que, dentro em breve, a veria, à própria Europa, face a face! É dessa revelação, afinal, que eu vos quero falar. 

Encontrei-a no Luxemburgo, no final de uma tarde em que, já cansado do longo passeio que resolvera fazer desde as instituições comunitárias, me sentei um bocado numa das esplanadas da Praça das Armas, vendo o movimento ( que não era muito ) e saboreando o rosé francês que então pedira… Dava pelo nome de Beaujolais o dito estabelecimento e eu comigo mesmo pensava que só dessa vez, depois de tanta viagem de ida e volta, tinha o prazer de ali passar calmamente uma hora, pensando na vida e fazendo tempo para o jantar.  

Um tanto inadvertida e involuntariamente deixei-me vogar por esse nebuloso terreno que fica entre a paisagem e a imaginação dela. Se calhar o próprio vinho, a par do cansaço, contribuiu para o resultado. Quando dei conta pareceu-me que era a própria poesia que ali via passar à frente dos meus olhos: as raparigas deslumbravam, via crianças pela mão das mães, patins e trotinetes, não sei bem… Por um esforço de vontade saí daquele intermédio estado entre a sonolência e a vigília, levantei-me, abri a boca, espreguicei-me ostensivamente __ pois naquela terra estrangeira ninguém me conheceria __ e fui jantar. 

Escolhi um restaurante italiano que muito positivamente me surpreendeu. Ia com intenção de comer uma boa pizza, qual gastronómica preparação para a viagem que, na manhã seguinte, faria para a Itália. ( A possibilidade desse passeio até Veneza havia sido, aliás, a verdadeira razão e o objectivo último da minha vinda, mais uma, até ao Luxemburgo. De outra forma creio que me teria escusado. ) Mas acabei por comer um peixe grelhado que, à entrada, vira no frigorífico e me levara a mudar de ideias. Com um vinho branco, ligeiramente seco, talvez um verde da Quinta da Aveleda, seria a despedida perfeita. 

A rapariga que me atendeu era muito simpática, era alegre e divertida, colaborava nos comentários que o estrangeiro fazia sobre o mapa da Itália que se encontrava na parede sob a forma de uma composição em vidro. Era uma espécie de vitral, ah sim!, tinha sido feito pelo filho do patrão que era italiano, pois claro __ e se encontrava em Roma. Também poderia ser um ramo de flores, e ao dizer tal a beldade sorria, manifestamente sorria e encantava quem não fosse de todo obtuso… E eu estava abismado, oh meus amigos. Eu conhecia aquela miúda de algum sítio. De repente, qual relâmpago iluminando uma cinzenta tarde de trovoada, fez-se luz no meu cérebro. Era ela, pois claro, não podia ser outra! 

Acabava de encontrar no Luxemburgo a mesma rapariga que há cinco anos me servira o último jantar em Urbino. Era ela toda, caramba!, era mesmo ela. Recordo-me bem de como na altura ela sorria para o R. E. __ perfeitamente babado a meu lado, vendo-a subir e descer a pequena escada em caracol, tal como eu também via, uma mini-saia preta bem acentuada, mais sugerindo que escondendo. Foi certamente ela que esteve na origem dos versos que pouco depois escreveria na Revista da APE __ um interessantíssimo poema em que o olhar seguia as curvas e as pernas de uma qualquer rapariga. 

Logo dessa vez me pareceu que ela sabia bem a impressão que causava nos clientes __ e decerto sorria quando no andar superior mais ajeitava, e subia, a saia. Para mim ela funcionou como um talismã __ paguei quarenta mil liras pela minha parte do jantar, sem falar na generosa gorjeta em que fiz questão, mas nunca dei o dinheiro por tão bem empregue, ainda tenho na boca o sabor do anti-pasti com que dessa vez dela me despedi. 

Veio à fala comigo, tão simpática para com o cliente visivelmente agradado, estrangeiro como ela, e soube então que era francesa, em férias na Itália, para aprender a língua. E agora ali a tinha de novo __ e facilmente lhe desculpava a omissão do pequeno pormenor de afinal ser luxemburguesa, e não exactamente da França, da língua comum em que ambos nos procurávamos entender, aqui e lá.  

Parecia-me tão fresca e jovem como nessa primeira noite em Urbino, o cabelo curto penteado da mesma forma, só a mini-saia fora trocada por umas calças pretas. (Naquele restaurante não havia escadas, o patrão estava fora, as regras eram mais severas.) 

Aquela rapariga, havendo de lhe atribuir um nome, para mim era a própria Europa, a célebre princesa fenícia protegida e justamente abençoada pelos deuses __ e estou certo que em algum outro local deste velho continente a hei-de voltar a encontrar, quem sabe se ao despedir-me do Palácio dos Doges, se ao fotografar o Parténon, se ao oficiar a Apolo no centro do mundo. 

Por essa Europa não necessitarei eu, decerto, de me transformar em touro. Nem preciso de a raptar uma vez que ela anda sempre comigo __ qual amuleto que afasta a má sorte, fonte de rebeldia e juventude, singelo objecto de devoção e pessoalíssimo equilíbrio.  

Ela personifica, oh meus amigos, a própria poesia __ e como poderia esquecê-la, deixá-la fugir, dispersá-la?! Não, de modo nenhum. Naquela fluida mulher mora a essência da poesia, ela é a própria vida, ao menos a minha, e no meu olhar a transporto, Europa, para onde os deuses me atribuírem o encargo de viver. E jamais a perderei, estou certo.  

 

Cristino Cortes 

 
  Cristino Cortes nasceu em Fiães (1953), uma pequena aldeia do concelho de Trancoso. Licenciado em Economia, reside em Lisboa desde 1971. A sua actividade profissional decorreu, quase toda, no Ministério da Cultura. Fundamentalmente poeta, publicou 10 livros desde 1985.Havendo de destacar alguns citaremos: Ciclo do Amanhecer, por ter sido o primeiro; 33 Sonetos de Amor e Circunstância, em 1987, por ter tido uma segunda edição em 1993; Poemas de Amor e Melodia, em 1999, pela mesma razão, dez anos mais tarde, em versão aumentada e definitiva; O Livro do Pai, em 2001, por ter sido traduzido em francês ( 2006 ) e em castelhano ( 2011 ), tendo tido uma segunda edição bilingue no primeiro caso; Sonetos (In)temporais, em 2004, por ser uma edição exclusivamente para o Brasil; e Música de Viagem, em 2008, por ter sido o último.
Tem, também, versado outras modalidades ( o conto, a crónica, o artigo de opinião, a página de diário ) em vários jornais e revistas, nacionais e estrangeiras, tendo reunido alguns desses trabalhos em quatro livros. Para a Universitária Editora organizou, ainda, duas antologias. Apresentou publicamente livros e proferiu conferências. A sua obra tem tido algum eco em países estrangeiros ( Espanha e França, sobretudo, mas ultimamente também na Alemanha, na Bélgica e no Brasil ) e ele próprio, tem traduzido e publicado poemas em francês. Os seus livros tiveram apresentações públicas em diversos locais do País. Está representado em várias antologias e livros colectivos. A sua obra tem sido objecto de alguma atenção crítica destacando-se, em forma de livro, José Fernando Tavares, Júlio Conrado e Isabel Gouveia.
 

 

© Maria Estela Guedes
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