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Tempos houve,
em que, por força das minhas ocupações profissionais, viajei com
frequência para Bruxelas __ e muitas vezes o fiz com algum peso na alma,
para não dizer antes mágoa na consciência. Comigo mesmo me interrogava
que Europa era aquela que, dum certo ponto de vista, nos exigia que
fôssemos desmantelando, uns atrás dos outros, os nossos principais
sectores produtivos.
Lembrava-me de
Miguel Torga, então bem mais na moda, e das suas proféticas palavras de
que um país que não tem liberdade de semear e colher implicitamente
perde a sua dignidade no concerto das nações. E o deslizar para esse
abismo parecia-me então, no nosso caso, liminarmente evidente. Há até
organismos do Estado __ pagos com o nosso dinheiro __ que não fazem
outra coisa que não seja promoverem e impulsionarem, e depois
fiscalizarem, esse suicidário projecto nacional!
E será que uma geração tem o
direito de assim comprometer, quiçá irremediavelmente, o nosso futuro, a
nossa autonomia enquanto colectividade?! Das poucas coisas que aprendi
no meu curso da Defesa Nacional é que a Nação ultrapassa o simples
conjunto dos vivos; a Pátria é mais do que isso, essa comunidade de
querer e de destino, enformada pela história e pela tradição, cimentada
pela língua em que exprimimos o amor e o transcendente, a poesia e o
sonho, a Pátria associa os vivos e os mortos __ e até os que ainda estão
por nascer.
Mas enfim,
deixemo-nos de políticas…As dificuldades de mercado, os problemas da
concorrência, a famosa lei da oferta e da procura, isso ainda eu
compreendo. Agora que o Estado ajude e apresse o funeral é que já me
custa mais a engolir. Que raio de País é este, com efeito, em que se
paga a alguém para não fazer nada? Que Europa é esta, oh meus amigos,
prosseguia então __ com alguma demagogia, reconheçamos __, em que nós
temos de arrancar as nossas vinhas para que os alemães e os
dinamarqueses possam continuar a produzir aquela mistela a que, abusiva
e ignorantemente, chamam vinho?
Bem sabia,
aliás, que a bebida de Baco era apenas um exemplo: em quase todos os
sectores __ sobretudo na agricultura e nas pescas, provavelmente a
compra da desistência dos caçadores açorianos de baleias haveria sido o
princípio do desastre __
havia então programas para arrancar, para abater, para fechar, para
destruir. E isso parecia-me __ e continua a parecer-me __ profundamente
imoral.
Curiosamente,
no entanto, ver as prateleiras dos supermercados cheias de alfaces
espanholas ou uvas do Chile não me fazia particular mossa. Parecia-me
que se a Europa era um clube com algumas regras, algo teríamos de lhe
dar em troca. Essa situação
espelhava, certamente, as dificuldades dos nossos produtores. Mas
parecia-me, por outro lado, que o consumidor sempre poderia lucrar
alguma coisa: com a variedade, talvez com o preço. E depois sempre havia
capacidade de escolha __ ao menos teórica… __ só comprava quem queria. O
saldo parecia-me positivo.
Com mais
simpatia via a facilidade nas deslocações, a liberdade de cada um de nós
se poder deslocar livremente para onde quisesse, não me parecia mal que
alguém fosse trabalhar, ou abrir um negócio, em outro país. Desse ponto
de vista compreendia o desaparecimento dos passaportes e até __ o que
não foi processo fácil __ a existência de uma moeda única. Mas mais do
que isso?
Afinal para
onde é que a Europa caminhava, qual seria o estado desejável dessa coisa
a que agora se chama a União Europeia? Tais eram os pensamentos que, às
vezes, me atravessavam o espírito. Se a Europa fosse uma simples
realidade geográfica nada haveria a fazer, o meu trabalho seria
profundamente inútil, pois me parecia que o peso da geografia era
inultrapassável. Não podia deixar de rir ao ouvir tão mirabolantes
projectos como o de Israel ou Marrocos aderirem à Europa! Como é que
faziam? Traziam a sua terra atrás? E lá… ficaria um buraco?
A Europa teria
pois, forçosamente, de ser outra coisa. Mas o que seria, oh meus
amigos?! Com frequência assim, então, me interrogava. Bem longe estava
eu de imaginar que, dentro em breve, a veria, à própria Europa, face a
face! É dessa revelação, afinal, que eu vos quero falar.
Encontrei-a no
Luxemburgo, no final de uma tarde em que, já cansado do longo passeio
que resolvera fazer desde as instituições comunitárias, me sentei um
bocado numa das esplanadas da Praça das Armas, vendo o movimento ( que
não era muito ) e saboreando o rosé francês que então pedira… Dava pelo
nome de Beaujolais o dito estabelecimento e eu comigo mesmo pensava que
só dessa vez, depois de tanta viagem de ida e volta, tinha o prazer de
ali passar calmamente uma hora, pensando na vida e fazendo tempo para o
jantar.
Um tanto
inadvertida e involuntariamente deixei-me vogar por esse nebuloso
terreno que fica entre a paisagem e a imaginação dela. Se calhar o
próprio vinho, a par do cansaço, contribuiu para o resultado. Quando dei
conta pareceu-me que era a própria poesia que ali via passar à frente
dos meus olhos: as raparigas deslumbravam, via crianças pela mão das
mães, patins e trotinetes, não sei bem… Por um esforço de vontade saí
daquele intermédio estado entre a sonolência e a vigília, levantei-me,
abri a boca, espreguicei-me ostensivamente __ pois naquela terra
estrangeira ninguém me conheceria __ e fui jantar.
Escolhi um
restaurante italiano que muito positivamente me surpreendeu. Ia com
intenção de comer uma boa pizza, qual gastronómica preparação para a
viagem que, na manhã seguinte, faria para a Itália. ( A possibilidade
desse passeio até Veneza havia sido, aliás, a verdadeira razão e o
objectivo último da minha vinda, mais uma, até ao Luxemburgo. De outra
forma creio que me teria escusado. ) Mas acabei por comer um peixe
grelhado que, à entrada, vira no frigorífico e me levara a mudar de
ideias. Com um vinho branco, ligeiramente seco, talvez um verde da
Quinta da Aveleda, seria a despedida perfeita.
A rapariga que
me atendeu era muito simpática, era alegre e divertida, colaborava nos
comentários que o estrangeiro fazia sobre o mapa da Itália que se
encontrava na parede sob a forma de uma composição em vidro. Era uma espécie
de vitral, ah sim!, tinha sido feito pelo filho do patrão que era
italiano, pois claro __ e se encontrava em Roma. Também poderia ser um ramo de flores, e ao
dizer tal a beldade sorria, manifestamente sorria e encantava quem não
fosse de todo obtuso… E eu estava abismado, oh meus amigos. Eu conhecia
aquela miúda de algum sítio. De repente, qual relâmpago iluminando uma
cinzenta tarde de trovoada, fez-se luz no meu cérebro. Era ela, pois
claro, não podia ser outra!
Acabava de
encontrar no Luxemburgo a mesma rapariga que há cinco anos me servira o
último jantar em
Urbino. Era ela toda, caramba!, era mesmo ela.
Recordo-me bem de como na altura ela sorria para o R. E. __
perfeitamente babado a meu lado, vendo-a subir e descer a pequena escada
em caracol, tal como eu também via, uma mini-saia preta bem acentuada,
mais sugerindo que escondendo. Foi certamente ela que esteve na origem
dos versos que pouco depois escreveria na Revista da APE __ um
interessantíssimo poema em que o olhar seguia as curvas e as pernas de
uma qualquer rapariga.
Logo dessa vez
me pareceu que ela sabia bem a impressão que causava nos clientes __ e
decerto sorria quando no andar superior mais ajeitava, e subia, a saia.
Para mim ela funcionou como um talismã __ paguei quarenta mil liras pela
minha parte do jantar, sem falar na generosa gorjeta em que fiz questão,
mas nunca dei o dinheiro por tão bem empregue, ainda tenho na boca o
sabor do anti-pasti com que dessa vez dela me despedi.
Veio à fala
comigo, tão simpática para com o cliente visivelmente agradado,
estrangeiro como ela, e soube então que era francesa, em férias na
Itália, para aprender a língua. E agora ali a tinha de novo __ e
facilmente lhe desculpava a omissão do pequeno pormenor de afinal ser
luxemburguesa, e não exactamente da França, da língua comum em que ambos
nos procurávamos entender, aqui e lá.
Parecia-me tão
fresca e jovem como nessa primeira noite em Urbino, o cabelo curto
penteado da mesma forma, só a mini-saia fora trocada por umas calças
pretas. (Naquele restaurante não havia escadas, o patrão estava fora,
as regras eram mais severas.)
Aquela
rapariga, havendo de lhe atribuir um nome, para mim era a própria
Europa, a célebre princesa fenícia protegida e justamente abençoada
pelos deuses __ e estou certo que em algum outro local deste velho
continente a hei-de voltar a encontrar, quem sabe se ao despedir-me do
Palácio dos Doges, se ao fotografar o Parténon, se ao oficiar a Apolo no
centro do mundo.
Por essa Europa
não necessitarei eu, decerto, de me transformar em touro. Nem preciso de a
raptar uma vez que ela anda sempre comigo __ qual amuleto que afasta a
má sorte, fonte de rebeldia e juventude, singelo objecto de devoção e
pessoalíssimo equilíbrio.
Ela
personifica, oh meus amigos, a própria poesia __ e como poderia
esquecê-la, deixá-la fugir, dispersá-la?! Não, de modo nenhum. Naquela
fluida mulher mora a essência da poesia, ela é a própria vida, ao menos
a minha, e no meu olhar a transporto, Europa, para onde os deuses me
atribuírem o encargo de viver. E jamais a perderei, estou certo.
Cristino Cortes
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