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REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
nova série | número 35 | janeiro | 2013
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ADELTO GONÇALVES
O feminismo negro de
Paulina Chiziane* |
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Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade
de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira
(Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil,
2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003).
E-mail: marilizadelto@uol.com.br |
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EDITOR |
TRIPLOV |
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ISSN 2182-147X |
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Contacto: revista@triplov.com |
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Dir. Maria Estela Guedes |
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Para João Craveirinha, pela amizade
e
pelos subsídios fornecidos para este ensaio
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I |
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Se a literatura escrita por mulheres já é um mundo diferente,
abordado por ângulos que romancistas e contistas homens dificilmente
vêem, imaginemos, então, o que pode ser o mundo visto por uma mulher
africana, moçambicana, ainda mais se é governado por costumes e
tradições que nos soam estranhos. Esse estranho e mágico mundo é o que
oferece em seus livros Paulina Chiziane (1955), a primeira romancista
negra de Moçambique.
Diz-se
aqui primeira romancista negra porque não seria correto chamá-la de
primeira escritora moçambicana, pois Lília Momplê (1935), nascida na
Ilha de Moçambique, autora de livros de contos e de uma biografia,
professora, funcionária da Unesco e ex-secretária-geral da Associação
dos Escritores Moçambicanos, apareceu antes dela, já à época
pós-Independência. E é provável que haja outras moçambicanas autoras de
livros. Acontece que Lília
Momplê, descendente de macua, é mestiça, carregando sangue europeu nas
veias. E, se o critério for o de uma suposta africanidade, Paulina seria
a primeira negra escritora de Moçambique, mas definitivamente não é a
primeira moçambicana escritora.
É claro que estes “divisionismos cromáticos” não levam a nada,
até porque ninguém seria mais ou menos moçambicano por causa da cor da
pele. Seja como for, o que se sabe é que na sociedade moçambicana destes
dias há duas versões para esta questão: uma para consumo interno (que
nem todos são tão escuros) e outra para consumo externo (mais
abrangente).
Isto sem contar certos "paternalismos colonialistas" que levam
escritores de Moçambique e Angola, com raízes mais européias do que
afrobanto, a encontrar melhor recepção na indústria editorial, além de
maior divulgação pelos meios de comunicação da antiga metrópole e do
Brasil. Ou será que é só por falta de informação ou coincidência que na
universidade brasileira, durante encontros sobre literatura africana de
expressão portuguesa, só se fala em Mia Couto (1955), José Eduardo
Agualusa (1960) e Pepetela (1941)?
Afinal, não se pode dizer que Paulina Chiziane seria desconhecida
no Brasil. De Paulina, a Companhia das Letras, de São Paulo, em 2004,
lançou o romance Niketche.
Uma história de poligamia,
que a Editorial Caminho, de Lisboa, publicou em 2002, enquanto seus
outros livros ainda aguardam a boa vontade de algum editor brasileiro.
Nascida em Manjacaze, na província de Gaza, ao Sul de Moçambique,
Paulina viveu no campo até os sete anos, quando se mudou para os
subúrbios da cidade de Maputo, onde freqüentou estudos superiores de
Lingüística na Universidade Eduardo Mondlane, sem concluí-los. Nasceu
numa família protestante onde se falavam as línguas chope e ronga.
No campo falava a sua língua materna, o chope, e, quando se mudou
para a cidade, teve de aprender o português na escola, enquanto era
obrigada nas ruas a falar o ronga, a língua nativa de Maputo. “Sou
chope, o meu pai era alfaiate de esquina, só depois arranjou uma
barraca. A minha mãe sempre foi camponesa, às vezes ficava uma semana
sem vir à casa, a tratar da machamba (plantação de mandioca)”. A voz da
escritora moçambicana Paulina Chiziane é serena, mas o orgulho das
origens é indisfarçável.
Aprendeu a língua portuguesa na escola da missão católica. Aos 20
anos, cantou o hino da independência moçambicana, gritou contra o
imperialismo e o colonialismo e, depois, com a guerra civil (1975-1992)
que arrasou o país, desencantou-se. Por isso, os seus livros nem sempre
falam diretamente da guerra, mas de um país destruído, da miséria de seu
povo, da superstição, dos rituais religiosos e da morte.
Participou ativamente da vida política de Moçambique como membro
da Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), na qual militou durante
a juventude, tendo sido eleita nas primeiras eleições multipartidárias
em 1994. Mas trocou a vida partidária para se dedicar à escrita, ao
trabalho na Cruz Vermelha e à publicação das suas obras, provavelmente,
desiludida com o machismo que ainda marca as relações políticas no país.
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II |
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Em seu último livro, O
alegre canto da perdiz (2008), além dessas questões que marcam a
secular submissão da mulher ao universo do homem em certas sociedades
africanas, Paulina leva o leitor a confrontar-se também com a questão do
reducionismo praticado por quem olha a África de fora e procura
apresentar a sua História e sua Literatura como se o continente africano
se tratasse de um só país, tal como denunciou a escritora nigeriana
Chimamanda Adichie (1977) em seu discurso contra o perigo de se ouvir e
repetir uma história única, a dos vencedores. (ADICHIE, 2009).
Como muito bem observa Nataniel Ngomane, doutor em Letras pela
Universidade de São Paulo (USP) e professor da Universidade Eduardo
Mondlane, no posfácio que escreveu para este livro, Paulina, se não é a
primeira, com certeza, é a voz que mais alto se eleva hoje para
recuperar temas “esquecidos” por aqueles autores africanos de expressão
portuguesa cujas raízes remontam ao colonialismo – ainda que sejam
críticos ou tenham lutado contra o colonialismo –, ao aflorar temas como
o racismo, a assimilação, a subjugação de valores africanos aos valores
europeus, a poligamia, as relações de subserviência não só no lar, mas
entre nações e grupos étnicos.
Como o fizera em Balada de
amor ao vento (1990), seu livro de estréia, com Sarnau, em
Ventos do apocalipse (1999),
com Minosse e Wusheni, em O
sétimo juramento (2000), com Vera, e em
Niketche (2002), com Rami,
mulheres que vão à luta, em O
alegre canto da perdiz, Paulina apresenta Serafina, Delfina, Maria
das Dores e Maria Jacinta, uma geração de avó, filha e netas,
personagens metonímicas que se desdobram e mostram os conflitos da
sociedade na Zambézia, província moçambicana do Centro-Norte, onde a
autora vive há largos anos.
A metáfora unificadora deste livro está em que a Zambézia seria o
centro do cosmos, com os Montes Namuli como o ventre do mundo ou o berço
da Humanidade. E isso vem oportunamente ao encontro de uma investigação
genética mundial hoje em curso denominada “The Genographic Project”, da
revista National Geographic,
em parceria com a IBM, que aponta que a espécie humana saiu de um tronco
comum africano e que o que existe hoje no mundo – e que, no passado,
chamávamos de “raças” – são variantes de uma marca genética comum.
Dessa forma, os atuais moçambicanos, independentemente de que
nação sejam, segundo essas pesquisas, seriam do haplogrupo L0 do tipo
mtDNA ( mt de linhagem mitocondrial), que teria surgido há cerca de 100
mil anos na África Oriental, expandindo-se para o Oeste e o Sul e mesmo
para fora de África. Surpreendente é o fato detectado de que partilhamos
uma linhagem comum, ou seja, não seriam necessários mais que 20 mil anos
para que africanos mais escuros e de olhos pretos se tornassem europeus
nórdicos muito mais claros e de olhos azuis e vice-versa. “Toda a raça
humana é mestiça de cruzamentos híbridos muito antigos”. (CRAVEIRINHA,
2005, pp.103-104).
A partir da reconstrução desse mito – que, agora, começa a ganhar
bases científicas –, Paulina reconstitui também o mito da origem
matricial do mundo. E por que a Zambézia? É que essa é a região africana
em que se deu com maior intensidade a miscigenação, a ponto de ser
conhecida como o Brasil da África.
Ao revisitar os mitos da origem matricial, Paulina repete o que o
antropólogo cubano Fernando Ortiz (1881-1969), com base nas idéias do
antropólogo polonês Bronislaw Malinowski (1884-1942), batizou de
transculturação, vocábulo que mais bem expressa as diferentes fases do
processo transitório de uma cultura para outra, pois esta não consiste
em apenas adquirir uma distinta cultura, que a rigor é o que o termo
anglo-americano acculturation
significa com toda a soberba de quem o cunhou, mas o processo implica
necessariamente a perda de uma cultura precedente, ou seja, uma parcial
desculturação, e significa a criação de novos fenômenos culturais
(ORTIZ, 1973, pp.134-135).
Em outras palavras: não há aculturados, no sentido da perda de
uma cultura própria substituída pela do colonizador (e no sentido
africano o colonizador aqui não é só europeu, mas refere-se também a
povos africanos e outros que colonizaram e subjugaram povos africanos,
vendendo-os aos traficantes europeus). É o que se pode compreender
melhor nas palavras do escritor peruano José María Arguedas (1911-1969),
igualmente antropólogo: “Não sou um aculturado: sou um peruano que
orgulhosamente, como um demônio feliz, fala em cristão e em índio, em
espanhol e em quechua”. (ARGUEDAS, 1975, p.282).
O drama da África passa exatamente pelo que outros povos fizeram
dela, o que não significa que se o continente tivesse continuado
isolado, teria tido um futuro melhor. Um drama que Paulina soube como
ninguém resumir nestas linhas de
O alegre canto da perdiz:
“As mães gostam de dar aos filhos nomes de fantasia. Nomes de
passageiros, de vagabundos. Os negros converteram-se. E começaram a
chamar-se Sofia, Zainabo, Zulfa, Amade, Mussá. E tornaram-se escravos.
Vieram os marinheiros da cruz e da espada. Outros negros converteram-se.
Começaram a chamar-se José, Francisco, António, Moisés. Todas as
mulheres se chamaram Marias. E continuaram escravos. Os negros que foram
vendidos ficaram a chamar-se Charles, Mary, Georges, Christian, Joseph,
Charlotte, Johnson. Baptizaram-se. E continuaram escravos. Um dia virão
outros profetas com as bandeiras vermelhas e doutrinas messiânicas.
Deificarão o comunismo, Marx, marxismo, Lénine, leninismo. Diabolizarão
o capitalismo e o Ocidente. Os negros começarão a chamar-se Iva,
Ivanova, Ivanda, Tania, Kasparov, Tereskova, Nadia, Nadioska. E
continuarão escravos. Depois virão pessoas de todo o mundo com dinheiro
no bolso para doar aos pobres em nome do desenvolvimento. E os negros
chamar-se-ão Sofia, Karen, Tânia, Tatiana, Sheila. Receberão dinheiro
deles e continuarão escravos”. (CHIZIANE, 2008, pp.156-157).
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III |
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Paulina recusa o rótulo de romancista, definindo-se apenas como
contadora de histórias, inspirada naquilo que ouviu, quando criança e
adolescente, da boca dos mais velhos à volta da fogueira. É o que faz em
seu romance Niketche, nome
que define uma dança de iniciação sexual feminina da Zambézia e de
Nampula, no Norte do país, região predominantemente macua, onde está a
Ilha de Moçambique, primeira capital das possessões portuguesas da
África Oriental e local de desterro do poeta Tomás Antônio Gonzaga
(1744-1810), por onde passaram também em épocas diversas os poetas Luís
de Camões (c.1524-1580) e Manuel Maria de Barbosa du Bocage (1765-1805).
É de lembrar ainda que
na Zambézia, de que fala Chiziane, nas décadas de 30 a 50, ainda
praticava-se o muhito que era
uma cerimônia da puberdade feminina da região dos lomués (alguns deles,
entre 1800 a 1840, foram levados para Santa Catarina e São Paulo como
escravos), que etnolinguisticamente pertencem ao grupo dos macuas que
também foram levados para o Brasil e espalhados da Bahia a Montevidéu,
ao final do século XVIII, ápice do comércio negreiro na Ilha de
Moçambique em direção ao Sul da América. Essa cerimônia antiga, o
muhito, consistia em preparar
a jovem mulher para servir o homem (macho alfa) em plenitude quer no
prazer sexual quer na alimentação.
O
romance conta a história de amor entre Rami, mulher do Sul e de nível
social superior à da imensa maioria das mulheres do país, e Tony, alto
funcionário da polícia em Maputo. Casada há vinte anos de papel passado
e aliança no dedo e mãe de muitos filhos, Rami, desprezada pelo marido,
desconfia de aventuras extraconjugais de Tony. Então, descobre que o
marido tem mais quatro mulheres e muitos filhos. Vai à casa de cada uma
das rivais, às vezes sai no braço com elas, mas, no final das contas,
trava amizade com todas a ponto de, em certo dia, reuni-las em sua casa
para fazer uma festa-surpresa ao marido.
A iniciativa, porém, desperta a ira da sogra de Rami, para quem a
monogamia é um sistema desumano que marginaliza uma parte das mulheres,
privilegiando outras, “que dá teto, amor e pertença a umas crianças,
rejeitando outras, que pululam pelas ruas”. Diz a sogra: “O meu Tony, ao
lobolar cinco mulheres, subiu ao cimo do monte. Ele é a estrela que
brilha no alto e como tal deve ser tratado. E tu, Rami, és a primeira.
És o pilar desta família. Todas estas mulheres giram à tua volta e te
devem obediência. Ordena-as”. (CHIZIANE, 2002, p. 125).
Lobolo é o dote que o homem dá à mulher ao casar, mas lobolar
aqui serve também para definir o ato de quem sustenta um lar. Ao
conhecer suas rivais, Rami vai entrar em contato com séculos de tradição
e de costumes, a crueldade da vida e também com a diversidade de mundos
e culturas que convivem em Moçambique.
É difícil entender estes pensamentos sem conhecer a dimensão da
tragédia africana. Em país de poucos homens – milhares morreram na
guerra, muitos ficaram mutilados, outros tantos emigraram –, as
mulheres, aparentemente, aceitam dividir seus maridos umas com as
outras, embora a poligamia venha de tempos já perdidos, quando os
cultores do Islã desceram a África e disseminaram suas crenças e
costumes.
Em alguns lugares de Moçambique, como na província sulista de
Gaza, é comum que a mulher atenda ao chamado do marido de imediato,
largando tudo o que está fazendo. Mais: quando o marido chama, ela não
pode responder de pé. (CHIZIANE, 2002, p. 128). Também é difícil
entender esta conversa sobre violência na família em que o imaturo Tony,
fruto típico de uma sociedade patriarcal (CORREA, 2004), justifica a sua
condição de polígamo: “Nunca maltratei a Lu, bati nelas algumas vezes,
apenas para manifestar o meu carinho. Também te bati algumas vezes, mas
tu estás aí, não me abandonaste para lugar nenhum. A minha mãe sempre
foi espancada pelo meu pai, mas nunca abandonou o lar. As mulheres
antigas são melhores que as de hoje, que se espantam com um simples
açoite (...)”. (CHIZIANE, 2002, pp.282-283).
Ou entender o conformismo de Rami: “(...) Transmito às mulheres a
cultura da resignação e do silêncio, tal como aprendi da minha mãe. E a
minha mãe aprendeu de sua mãe. Foi sempre assim desde tempos sem memória
(...). (CHIZIANE, 2002, p. 254).
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IV |
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Para as seguidoras de Simone de Beauvoir (1908-1986) e Flora
Tristán (1803-1844), tudo isto, certamente, parece estranho, mas é a
forma que Paulina encontrou de denunciar o sofrimento das mulheres
africanas, subvertendo os valores tradicionais. Isso não significa que
partilhe integralmente dos valores das feministas brancas. A dita
civilização branca já levou tanto sofrimento à África que qualquer
idéia, mesmo emoldurada por valores humanitários, sempre é recebida com
desconfiança. E não poderia ser diferente.
O trágico é que o grito de Paulina, dificilmente, será ouvido ou
compartilhado pelas mulheres de Moçambique, pois os escritores africanos
escrevem para o leitor branco de fora de seus países que pode comprar
seus livros, já que, em razão dos altos índices de analfabetismo e dos
baixos níveis socioeconômicos, as tiragens nos países africanos de
língua portuguesa são ínfimas, o que não significa que em Portugal e no
Brasil sejam muito superiores.
Em Balada de amor ao vento
(1990), seu primeiro romance, Paulina recupera as histórias dos rongas e
dos chopes, que ouviu em sua infância, quando ficava a escutar a avó
contar casos ao pé da fogueira. Os rongas, o povo do Sol Nascente,
chegaram à região de Maputo há mais de 700 anos, procedentes dos Grandes
Lagos. O povo chope veio da província de Gaza e da província de
Inhambane, falando línguas bantu, da família Niger-Congo. Essas
populações já estavam à beira da baía de Maputo quando os portugueses
chegaram em 1502 à Terra dos Mpfumos (Grande Maputo), com o navegador
Luís Fernandes à frente, numa caravela perdida de um comboio que seguia
rumo à Índia (CRAVEIRINHA, 2002, p. 20).
As duas línguas que compõem este grupo são o XiChope, falado
principalmente nos distritos de Inharrime e Zavala e no posto
administrativo de Chidenguele, e o biTonga, falado na cidade de
Inhambane e nos distritos de Maxixe e Jangamo. Estas são as origens de
Paulina. Uma das histórias de sua gente é a de Sarnau, a jovem que
descobriu que amava Mwando, um rapaz que estava encaminhado para ser
padre. Como o namoro não prosperava, cada um vai para um lado e Sarnau
acaba virando uma das mulheres do rei das terras de Mambone.
Paulina conta a história desse relacionamento, da juventude à
idade madura, suas alegrias e sofrimentos, até a separação dolorosa e o
reencontro. Mas, antes de tudo, trata do conflito vivido por uma
moçambicana entre o mundo moderno e o mundo tradicional, a África
arcaica, seus valores eminentemente machistas em que a mulher só existe
para servir ao homem e constituir seu objeto de desejo.
Depois de casada e bem casada, Sarnau vê Mwando reaparecer e vive
outro romance. Perseguidos, acabam de novo separando-se. Mwando, depois
de se envolver com a mulher de um sipaio (soldado), foi deportado para
Angola, onde passou quinze anos a plantar cana e café. Um filho de
Sarnau, gerado por Mwando enquanto ela era rainha, acaba coroado rei,
depois da morte do presumível pai, enquanto a mãe é obrigada a cumprir
um destino de prostituição para sobreviver.
Este é um livro feminista, mas feminista à maneira africana: não
é uma obra que desafie o estatuto da mulher africana ou moçambicana.
Aliás, usar termos como africana e moçambicana é correr o risco das
generalizações. No próprio Moçambique, há flagrantes diferenças: o Norte
é uma região matriarcal, onde as mulheres têm mais liberdade, enquanto o
Sul e o Centro são regiões patriarcais, extremamente machistas. E a
narrativa de Balada de amor ao
vento ocorre em Gaza, a mais machista de Moçambique, onde a mulher,
além de cozinhar e lavar, para servir uma refeição ao marido tem de
fazê-lo de joelhos.
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V |
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Portanto, este livro traz o olhar do feminismo negro, que é
diferente do feminismo branco, porque muito mais trágico. Ou alguém
duvida que a mulher negra sempre foi muito mais oprimida e massacrada
que a branca, que vive do suor de seu próprio rosto há muito mais tempo,
que responde por sua própria família desde épocas imemoriais, embora
fuja à luz da razão discutir gradações de violência?
Basta ler Barrocas
famílias: vida familiar em Minas Gerais no século XVIII, de Luciano
Figueiredo, para se perceber que o papel da mulher – e, mais ainda, da
mulher negra – sempre foi esquecido nos livros de História do Brasil,
como se a colonização e a ocupação do território tivessem resultado
apenas da ação do homem (FIGUEIREDO, 1997, p.16). E que teriam sido
raras as mulheres européias que migraram para o Brasil e para a América
hispânica, até porque nos séculos XVI, XVII e ainda XVIII havia muitas
restrições à presença feminina a bordo de embarcações.
E, portanto, foram indígenas as mulheres que acolheram o afeto
não só dos primeiros colonizadores como de tantos outros que continuaram
a chegar ao Novo Mundo, bem como o fizeram as africanas e as
miscigenadas, anos mais tarde, constituindo uniões consensuais e o
concubinato, práticas contra as quais de pouco valia o pífio combate
moralizante empreendido pela Igreja. Foi dessa população mestiça que
nasceu, inclusive, a elite econômica brasileira que nunca foi branca,
embora sempre tenha procurado se passar por tal.
Por isso, as poucas mulheres idealizadas por nossa poesia
arcádica oitocentista, como Maria Dorotéia Joaquina de Seixas, a Marília
de Dirceu, de Tomás Antônio Gonzaga, e Bárbara Eliodora, de Alvarenga
Peixoto (1744-1793), só foram incensadas pelo Romantismo do século XIX
porque eram brancas, enquanto a negra Francisca Arcângela Cardoso, que
deu quatro filhos ao mavioso Cláudio Manuel da Costa (1729-1789) e lhe
inspirou vários poemas, está esquecida até hoje.
Tal como na África a mulher negra na América também buscou suas
próprias estratégias de sobrevivência, desempenhou papéis econômicos,
criou os filhos e protagonizou muitas histórias – que, com certeza,
estão à espera do talento de uma Paulina Chiziane brasileira para
contá-las como se conta histórias à beira da fogueira e seguir uma
tradição iniciada pela maranhense Maria Firmina dos Reis (1825-1917), a
primeira romancista negra do Brasil.
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(*) Publicado no livro
Passagens
para o Índico: encontros brasileiros com a literatura moçambicana,
de Rita Chaves e Tania Macêdo (organizadoras). Maputo:
Marimbique Conteúdos e
Publicações, 2012, pp. 33-41. |
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Referências bibliográficas
ARGUEDAS, José María. El zorro de
arriba y el zorro de abajo. Buenos Aires: Losada, 1975.
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CHIZIANE, Paulina. Balada de amor
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________________. Niketche. Uma
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________________. O alegre canto
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________________. O sétimo
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________________. Ventos do
apocalipse. Lisboa: Caminho, 1999.
CRAVEIRINHA, João. Jezebela: o
charme indiscreto dos quarenta. Crónica de uma mulher. Lisboa:
Universitária Editora, 2005.
________________. Moçambique:
feitiços, cobras e lagartos. Lisboa: Texto Editora, 2002.
FIGUEIREDO, Luciano. Barrocas
famílias: vida familiar em Minas Gerais no século XVIII. São Paulo:
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CORREA, Eloisa Porto, 2004. “A trajetória
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de Paulina Chiziane”. Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e
Linguísticos. <Disponível em: www.filologia.org.br./ixcnlf/2/04/.htm>
Acesso em: 17abr2010.
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© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
PORTUGAL |
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