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REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
nova série | número 35 | janeiro | 2013
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NICOLAU SAIÃO
Cidade múltipla
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Nicolau Saião (Portugal). Poeta,
publicista, actor-declamador e artista plástico. Efectuou palestras
e participou em mostras de Mail Art e exposições em diversos países.
Livros: “Os objectos inquietantes”, “Flauta de Pan”, “Os olhares
perdidos”, “Passagem de nível”, “O armário de Midas”, “Escrita e o
seu contrário”. |
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EDITOR |
TRIPLOV |
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ISSN 2182-147X |
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Contacto: revista@triplov.com |
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Dir. Maria Estela Guedes |
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Os lugares e o espírito dos
lugares…Um dia, no nosso futuro de jovens, entendemos, sentimos a
profunda ligação que a eles tivemos, a marca que eles deixaram em nós e
o que para nós representaram. “Foi então assim?”
– interrogamo-nos nostalgicamente, compreendendo de súbito que a nossa
história pessoal se encadeou com eles, com os sítios que nos rodearam na
nossa deambulação ou na nossa permanência no pequeno mundo que foi o
nosso cenário de vida plena e que achamos sempre breve.
Parafraseando
Luiz Vaz, tive a vida em pedaços repartida por uma cidade que conheci de
diferentes perspectivas – à medida que ia morando nesta e naquela casa.
Pois sendo a mesma, ficava contudo diferente à medida que eu ia de ceca
para meca dentro dela ao sabor dos ritmos de inquilino, até finalmente
chegar à morada que é agora minha por residente
proprietário.
E
na qual, frente à folha de papel, agora evoco a Cidade sempre igual e
sempre diferente devido aos ritmos e detalhes do Tempo que nela vai
transcorrendo.
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Introdução |
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Hoje sou a
fotografia solene e difusa duma cidade impossível: e o muro onde a mão
sábia e trémula dum fugitivo anónimo traçou os sinais indecisos da
cabeça de um animal solitário, lobo ou gavião, um gelado bicho inquieto
ante o negrume intenso sobre a boca do dia na hora agitada em que os
homens saem entontecidos para as ruas do mundo.
E os
telhados e os terraços e o povo de estátuas plasmadas no halo absoluto
da manhã enegrecida e a poltrona numa sala ao lado duma lareira e o fogo
crepitando arteiro e manso enquanto um locatário medita na sua
existência sem palavras derradeiras.
Hoje
sou talvez o rasto de um pano preto no suor de um rosto junto de uma
porta entreaberta, o vidro fosco dum relógio de parede, um risco
convulso numa frase de uma carta que ninguém receberá, um pássaro negro
coroado pela claridade sobre uma árvore inerte, o arrepio amargo do
vento numa esquina de rua: porque é necessário que das janelas se
contemplem os campos e a sua solidão no inverno ou a quentura estival
dos olivais onde nunca haverá lendários tesouros enterrados ou encontros
pecaminosos de amantes.
E a
todas as horas o haverei de ser porque as horas são por vezes
magníficas como pensamentos
repentinos ou tortuosas como os exílios interiores, são como a estranha
erva que cresce nas margens dos ribeiros empestados pelos resíduos de
fábricas e de herdades onde o gado se multiplica para os ritos cruéis
das tardes de massacre e onde os olhos se baixam melancólicos no remorso
das manhãs de alegria.
Mas
algures na cidade que sou agora há-de haver de repente uma hora quase
excessiva em que serei o outro minuto, o minuto que não se diz nunca,
que nunca brilha nas faces nem se vê nos movimentos, que jamais se
desvenda, o minuto sufocado em que o fremente soluço de amor ou de morte
é um enorme sol secreto passando além das barras duma cancela num campo
solitário, os passos afundando-se num oceano torvo de ruelas ou de
azinhagas ou de becos onde a pobreza tinha o seu poiso de humilde
tristeza silenciosa.
Porque
as primeiras estrelas da tardinha vão a pouco e pouco ancorando nos
velhos bosques sobre as ramagens que se diluem no pausado surgir da
noite e nos largos e praças onde a escuridão crescente é como que um
salto de escada a escada e as vozes dos transeuntes ganham de repente um
outro som mais claro e deixam antigos vestígios de
conversas rememoradas.
Porque o
vício e a virtude se assemelham então ao reflexo dum fruto maduro na
água do tanque duma quinta que desapareceu e é agora apenas a lembrança
do ondear dos ramos de um pinheiro no caminho habitual de outrora, a
sombra da copa duma cerejeira num pomar ardido pelos anos, o som
assustador dum tiro na mata e depois o regresso dos caçadores sob a lua
quando a criança já dormia.
Assim a fotografia esquiva de uma cidade eu irei ser, no crepúsculo
silente em que lá muito ao longe e ao cimo os cometas correm num périplo
selvagem desconhecido e o rumor das locandas nocturnas se alarga pelos
recantos do universo.
No
murmúrio suspeito dos prédios de granito velho. No salão onde estrugem
as palmas. No beco onde silvou um som gorgolejante. Sobre a mão cortada
e a mão queimada. Na raiz do bem e do mal. Na gota de sangue infantil
derramado pelo vento sujo, pelo negrume dum momento envilecido,
No
silencio dos quartos onde já nada existe. No sono atormentado e no que
se esqueceu, nos retratos de tudo o que desaparece lentamente há séculos
e no entanto ainda é puro e novo, nas batalhas e nos seus mortos, nas
batalhas e nos seus vivos.
À hora
incerta e inclemente em que o fumo das casas dos homens começa pouco a
pouco a recortar as figuras do dia na orla do campo ou nos muros
citadinos e se sente que tudo pode revivescer como uma flor, uma pedra
ou um pão sobre a mesa da infância ou da existência sulcada de
contentamento, de mágoas e de uma saudade sem limites.
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Primeira morada: Vila Nova (1950) |
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Na orla da Cidade,
a Vila Nova. Se há sempre quem receie a sedução da vida, que ninguém se
equivoque: é da infância que vos falo e dos seus deuses inertes. Ao cimo
o fumo da Fábrica da Rolha as pontas negras dos ciprestes do cemitério
um barranco do lixo para o lixo da cidade o sol a repentina passagem de
campo para lugar de casas e pessoas as mais pobres de ali e sinais
indistinguíveis mas reais de solidão. Uma perna atrás da outra o corpo
bambo secreto viajando no pequeno largo antes das escadinhas junto ao
muro de cal separado dos perigos da estrada do outro lado as crianças
vizinhas a bola trapeira e depois de borracha azul e amarela as
cavalgadas em banquinhos de madeira corcéis raspe-que-raspe na poeira da
terra batida os carros eram uma presença já sabida adivinhada antes de
tudo ainda em sonhos em sonos mal dormidos os lembro ao rés da janela do
quarto com a cama de ferro pequena. Os mais
velhos vigiavam o portãozinho de tábua sempre aberto o calor subia nas
tardes imensas por enquanto, mais tarde meses afora iria chover fazer
frio e brincadeiras só em casa.
No pequeno
boque de oliveiras por detrás da casa dizia-se constava houvera outrora
uma igreja amaldiçoada ou palacete mouro ao pé duma ribeira perdida seca
destroçada inexistente. Inexistente talvez. Contudo se o passado é nada
mais que um espaço de espera é imperioso lembrar a padaria pouco moderna
profissional embora do primo António padeiro Nicau de seu apelido, primo
de bigode o cheiro pungente do pão os braços dele eram pedaços de
mármore enfarinhados as mãos repletas de massa moldava torcia e depois
eram papossêcos e carcaças grandes finas para os de maiores posses e
marrocates para todos na cara uma que outra borradela de farinha e o
forno resplandecente moagem assadura de incógnitos infernos de anos
indevassados pacíficos para quem cria o que se vai comer. A mão do Pai
estendida sabia demonstrar que não era aquele um lume mortal, primo
António em troca saudava estendia um dedo para não a macular e o sorriso
brilhava sob o bigode.
Nos
pequenos meandros das ruas da Vila Nova me ia perdendo por vezes.
Primeiro casulo, primeiro lugar de conhecimento. Um candeeiro na parede
pública punha reflexos amarelados na face redonda da Mãe no azul escuro
suave da tardinha. “Come tudo
filho para seres grande e gordo como o primo António”, pobre primo
agora depois morto de enfarte à entrada da velhice uma tardinha o soube,
primo do pão das pás postas lá bem dentro do forno vindo do mistério das
coisas adultas, muitos poucos anos depois vindo da Casa de Saúde
Madalena Sampaio antes do fim por acaso eu passava tomou-me da mão e
apertou-ma mão minha agora só de adulto e os olhos estavam percebi
depois já noutro lugar “Até depois
primo António, as suas melhoras” - e o forno já sem luz de chama que
não assustava e as lágrimas depois do ocaso – as suas melhoras
passados quatro dias partiu rebentou secou como grilo tradicional
em forno de padaria de província.
A
casa com vinha virgem à porta uma gaiola de um pássaro qualquer canário?
pintassilgo? e a gente gentinha que passava descia a estrada entrava em
outras casas, polícias operários trabalhadores marceneiros gente vinda
da Fábrica dos longes perto da Cidade antes dos carros e das carroças,
do burro cinzento e do burro negro do homem dos “desperdícios” que me
assustou um dia o terror para quem aí uns quatro anos tinha, para quem
arranca do mundo a primeira imagem realmente agreste.
E eram duas
entre outros as minhas companheiras de brincadeira cavalgadas nos tais
banquinhos montados como alazões poldrinhos mansos: algumas esfoladelas
raspadelas nos calçudos. Uma era mais pequena que eu um dia bati-lhe não
sei porquê, o rostinho contraído chorou lacrimejou na minha frente
aprenderia mais tarde naquela hora talvez não se bate em mulheres só em
gajos sacanas aprenderia digo era tão só companha para corridas soltas
para um dia de crianças sem jogos canalhas de gente grande, lembro: a
sua mãe era dizia-se ouvi fixei mulher sem homem marido companheiro
certo imutável. Coisas do coração da existência algures no mundo o pai
selara adeus para outros diferentes locais. E uma vez essa mãe viera à
nossa minha casa buscar sal emprestado. “Quer
uma colher, vizinha? Ou papeluço?
“. Levou papeluço. “Tão
pobre te vejas que nem sal tenhas” comentou a Mãe enquanto a outra
levava de empréstimo dado o embrulhinho cinzento. Apenas esquecimento na
loja, claro. E frase só ao
desfastio, claro está. Mas pobre a outra mãe de não ter pai amante
inadiável, cimentado. Por isso aos quatro anos se lembra se esquece sem
esquecer. O nome era creio Cegonha. Ou anexim. Nome de ave voando sobre
o claro céu da Cidade, ave real com ninho e marido decerto na torre da
Sé e no Convento das freiras das moças sem família. Depois, anos e
viagens volvidos, rostos e lembranças quando as cegonhas já não existem
não moram pensionistas do Convento as via passando nos longes dos
arredores para a estrada de Monforte e da estação de comboios, o nome
era branco como o sal as paredes a recordação do larguinho e da casa
pobre e sem marido: mulher abandonada, duas ou três filhas, o rosto
entre moreno e sisudo, um ar de receio nas lojas e nas convivências.
Cegonha, pássaro e nome perdido na Vila Nova da minha chegada ao lugar
perto da Cidade.
A
Cidade na Vila Nova: das tabernas como a taberna da prima Maria do primo
Nicau padeiro taberneiro de bigode lavado nas horas fora do forno, na
quitanda ao rés da estrada onde à noitinha depois da labuta os homens
gargalhavam mandavam vir carapulos de tinto e merendinhas de toucinho
frito e copinhos de branco e cálices da ginjinha rija com todos para
todos. Para mim era sem
avarezas sem manha sem detença nos domingos o cartuchinho de rebuçados
de fruta rebuçados caseiros baratos tão suaves ao paladar e os cartuchos
de ervilhanas bem medidos e um piparote amável no toutiço,
que esperto! tem quatro anos? pois
parece ter mais, o que era elogio de pedreiro ou marçano de folga ou
talvez trabucador de passagem talvez operário da Lanifícios ou carreiro
dos Fortios, cinquentas e tais suponho bigode ralo na beijoca sem
maldade, que esperto!, manga
curta sobre o bicípete rijo encordoado colete calça em sacarrolhas um
sorriso cumprimentador ao Pai um olhar de quem se esforça na cortesia e
o Pai em resposta “Tinto. Dois
tintos, um para este senhor. Para mim, pequeno”, a estrutura da
fraternidade a minha mão lambuzada o Pai e os homens amigáveis trocando
minutos, só meu o Pai e protector
a garantia de tabernas e tabernas e cartuchos de rebuçados e
ervilhanas para anos e anos de viagem nas horas domingueiras.
Um dia um
tractor passou roncando era já noite leve embora por detrás da janela vi
na noite os faróis pouco a pouco sobre o silencio era noite poucaterra
poucaterra como na estação dos comboios e o ruído encheu a noite que se
pôs a tremer e depois lentamente passou e lá se foi como um animal
pré-histórico um mamute escuro e encantado arfando e as estrelas
continuaram pairando pairando. E na manhã seguinte ao almoço disse a Mãe
“Já sabes? Foi o filho da senhora
Justina que veio visitar os pais, mal parou o
tractor no barracão e antes de
entrar em casa cai-lhe um barrote de lenha na cabeça levaram-no muito
ferido p’ró Hospital. Credo, olha que coisa disse o Pai e a Mãe
assentiu. É como elas se arranjam, chiça.
E
foi assim na Vila Nova nesse dia no dia seguinte jogando com a bola dura
dura de cauchú com os outros putos pedaços de humanidade bocadinhos como
eu de sangue e carne foi assim que suspeitei que a morte passa por cima
dos animais imensos das lembranças das cabeças dos homens de olhos
inocentes como faróis nocturnos distantes e não deixa sequer lugar a
dúvidas sobressaltos: porque
entre nós e a morte nem os anos da infância se interpõem para valer. Só
mais tarde no entanto o saberia mesmo. Mas não na Vila Nova das orlas do
meu começo dentro fora de portas.
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Segunda morada: Azinhaga do Atalaião (1952) |
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Naqueles tempos Portugal ganhava sempre no
hóquei-em-patins. Havia alegria para dar e vender, sobretudo porque sem
caneladas cabeçadas não se enrolavam em ligaduras os membros dos que
imitavam no terreiro do lado os heróis daquelas batalhas desportivas.
O rádio em segunda mão de luzente baquelite
castanha apanhava tudo: futebóis e outros mimos, as canções da Amália e
do Tristão da Silva, serões da Emissora, folhetins e, no esconso da
noite, no quarto do fundo, algumas vozes proibidas de homens de longe
falando coisas complicadas e que parece queimavam o éter falando
estranho e novo. Não entendia, ouvia apenas e por alto perto do Pai
atento, afiz-me como que por companheirismo filial percebi que andavam
por ali palavras para esconder. Ao Pai ficara-lhe o hábito das noites de
parlenga noticiosa da BBC quando à socapa se escutavam as batalhas pela
Europa, pela casa do mundo na terra no mar e no ar. Sorte que nunca o
tivessem surpreendido nesses transes, um gêéneérre tocava sempre
supunha-se pela batuta do governo. Supunha-se. Ainda eu não era nascido
quando a metralha assolava a terra das nações levada em mãos de homens
de bichos de máquinas mortais, o Pai adquirira a telefonia num lojista
monfortense da rua da paragem da camioneta, antes de se virar para a
avenida Marquês da Praia onde ficava a casa do Posto em que nasci.
Sempre era um bem a mais, um descanso para saber como era a marcha do
país e do estrangeiro que chegava como um vento soprado de fora. E
depois havia também a música por
vezes com discos pedidos e o resto, novelas teatrais a granel e a Tia
parava a costura quando era o Francisco José e o Guilherme Kjolner e
fadistas de sustância, a minha Irmã saberia mais um dia com as canções
imitadas nos bailes da Euterpe, da Robinson, da Sociedade Vintém, o
vocalista do conjunto bem penteado de popa erguida pelos primores da
brilhantina, de voz tremeluzindo e olho maganão posto sedutor no ondear
das dançantes com seus vestidos airosos cheirosos e cabeleiras
tratadinhas para a função em
soirée.
Lembro. Lembro os golos homéricos do Jesus
Ferreira o grito espanejado do golo do locutor, gooooolooooo tanto na
nossa telefonia como na do vizinho Azeitona, o da taberna o da adega
adjacente, no alambique objecto misterioso que nunca via sem me espantar
seu tanto pingue-pingue caía o fio de aguardente um cheiro telúrico pelo
ar, entontecia maravilhava. Vizinho Azeitona por detrás do balcão de
mármore manchado e de madeira escura, rios e lagos de vinhos diversos
depois limpos com o trapejo de quadrados, largava as ervilhanas avulso,
tantas por tantos tostões e os caramelos de anis e tinha sempre,
confeccionados por sua esposa dona Domitília, petiscos de se lhes tirar
o boné para os fregueses beberrões e não só encartados e lambareiros.
Não enganava, continhas certas e seguras de mágico antigo no mester de
vender copázios iguarias e humaníssimas jóias culinárias.
Vendas,
tasquinhas, modestas locandas: em toda a parte companheiras úteis,
comoventes e miraculosas para o quotidiano dos sabores e dos repastos
dos humildes habitantes da vida.
E na rampa,
no lado direito da azinhaga cortada saída da estrada da Serra as
galinhas debicavam buscando alento alimentos terrestres grãos bichinhos
ao deus dará. E a Mana jogava a macaca, a Tia limpava varria e a Mãe se
trovejava punha a minha mão na sua mão e dizia “Santa Bárbara bendita/ que no céu estais escrita/ com papel e água
benta/ livrai-nos desta tormenta/ Levai-a lá pra bem longe/ levai-a lá
prá moirama/ onde não haja pão nem vinho/nem flor de rosmaninho/ nem se
oiça cantar o galo/ nem repenicar o sino”. Santa Bárbara que remédio
obedecia às vezes.
No pequeno entreposto de vizinho Azeitona,
passada a tormenta, os homens de fatos pardos fatos de ganga ou de cotim
retomavam o jogo do chito, a farra adequada nestes casos: o banco
encostado à parede sob a figueira, se era fora, ou sob os quadros com as
equipas do Benfica, do Sporting, do Lusitano e do Guimarães e os outros
mais, que vizinho Azeitona era democrata nas coisas da bola e tinha olho
para acatitar todos os adeptos. E era um
vê se te avias de braços certeiros e pontarias finas com a moeda
placa de cobre no tronquinho de metal, reminiscência de invólucro de
bala militar que fôra em espingardas obrigadas à feitura da tropa,
objecto mortal agora virado para negócios de paz: ganhar, não ganhar,
ficar de bem com o dever cumprido pundonoroso de jogador leal.
Um certo dia um de fora, fora do jogo, por
bebedeira irritação brava exaltação esfaqueou um conviva. Levaram em
braços o agredido, vinda a polícia o outro, lívido e já em tremeliques,
de gravata pingada foi de cana, paradeiro se calhar de ódios solapados e
raivas na cabeça esquentada.
E um dia era Carnaval e manipansos passando na estrada para os lados de
São Cristóvão. E um dia a catrefa de gente passando para cima rumo à
Festa dos Aventais ou na Páscoa da gulodice do ensopado da carne de
chibo nos tempos de Março Abril, Páscoa citadina campestre páscoa de
pessoas dando ao dente ao ar livre no verde mato alentejano no
desafogado da Fonte dos Amores provável e requerida, na Curva do
Caminhante, no Miradouro, árvores rochas e matagais propícios floridos e
silvestres. De nós o mistério se faz de nós é o mistério propagado.
Gente, gente que nunca mais afinal verei. Não fazendo da vida uma vida
metade desenho metade invenção afinal repleta estava de serenidade e
concidadania. E eu estava a crescer: via o mundo a Cidade as buzinas dos
carros paravam-me nos tímpanos e ai ficavam muito tempo. Eu via
erguer-se o futuro do que um dia pensava que iria ser, rapaz de calças
compridas e sapatos reluzentes de polimento
como nos engraxadores do Rossio
do grande plátano sombreado. A Mãe a Tia a Mana sentadas de noite na
saleta cosendo e bordando trapejando dizendo memórias da terra das
pessoas transparentes opacas na contemporaneidade da cabeça. Por isso,
sei lá porquê, deixou-se um dia a casa onde o rádio bichanava coisas dos
lugares da imaginação real, penosa ou luminosa, futebóis e realidades
sinfónicas, era necessário partir. E parti. Desta vez para o campo, a
quintarola das nuvens e dos pinheirais ao entardecer ao alto da estrada
do Chancrão ainda não macadamizada, dos bosques de castanheiros e dos
ventos em torno do lar. Do lar que agora o era. Chegara o tempo de
aprender que as noites são na infância como castanheiros e cerejeiras
num Verão de conversas à lareira, de pios de pássaros desconhecidos.
Como um
anoitecer vivido passo a passo, no campo não havia electricidade.
Naquele tempo.
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Nota – Estas são as primeiras duas entradas dum rol de 12
moradas.
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© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
PORTUGAL |
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