REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 35 | janeiro | 2013

 
 

 

 

 

 

NICOLAU SAIÃO

 

Cidade múltipla

Nicolau Saião (Portugal). Poeta, publicista, actor-declamador e artista plástico. Efectuou palestras e participou em mostras de Mail Art e exposições em diversos países. Livros: “Os objectos inquietantes”, “Flauta de Pan”, “Os olhares perdidos”, “Passagem de nível”, “O armário de Midas”, “Escrita e o seu contrário”.
 

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   Os lugares e o espírito dos lugares…Um dia, no nosso futuro de jovens, entendemos, sentimos a profunda ligação que a eles tivemos, a marca que eles deixaram em nós e o que para nós representaram. “Foi então assim?” – interrogamo-nos nostalgicamente, compreendendo de súbito que a nossa história pessoal se encadeou com eles, com os sítios que nos rodearam na nossa deambulação ou na nossa permanência no pequeno mundo que foi o nosso cenário de vida plena e que achamos sempre breve.

   Parafraseando Luiz Vaz, tive a vida em pedaços repartida por uma cidade que conheci de diferentes perspectivas – à medida que ia morando nesta e naquela casa. Pois sendo a mesma, ficava contudo diferente à medida que eu ia de ceca para meca dentro dela ao sabor dos ritmos de inquilino, até finalmente chegar à morada que é agora minha por residente  proprietário.

   E na qual, frente à folha de papel, agora evoco a Cidade sempre igual e sempre diferente devido aos ritmos e detalhes do Tempo que nela vai transcorrendo.                                                          

   
 
   
  Introdução
   
 

    Hoje sou a fotografia solene e difusa duma cidade impossível: e o muro onde a mão sábia e trémula dum fugitivo anónimo traçou os sinais indecisos da cabeça de um animal solitário, lobo ou gavião, um gelado bicho inquieto ante o negrume intenso sobre a boca do dia na hora agitada em que os homens saem entontecidos para as ruas do mundo.

    E os telhados e os terraços e o povo de estátuas plasmadas no halo absoluto da manhã enegrecida e a poltrona numa sala ao lado duma lareira e o fogo crepitando arteiro e manso enquanto um locatário medita na sua existência sem palavras derradeiras.

    Hoje sou talvez o rasto de um pano preto no suor de um rosto junto de uma porta entreaberta, o vidro fosco dum relógio de parede, um risco convulso numa frase de uma carta que ninguém receberá, um pássaro negro coroado pela claridade sobre uma árvore inerte, o arrepio amargo do vento numa esquina de rua: porque é necessário que das janelas se contemplem os campos e a sua solidão no inverno ou a quentura estival dos olivais onde nunca haverá lendários tesouros enterrados ou encontros pecaminosos de amantes.

    E a todas as horas o haverei de ser porque as horas são por vezes magníficas como pensamentos repentinos ou tortuosas como os exílios interiores, são como a estranha erva que cresce nas margens dos ribeiros empestados pelos resíduos de fábricas e de herdades onde o gado se multiplica para os ritos cruéis das tardes de massacre e onde os olhos se baixam melancólicos no remorso das manhãs de alegria.

    Mas algures na cidade que sou agora há-de haver de repente uma hora quase excessiva em que serei o outro minuto, o minuto que não se diz nunca, que nunca brilha nas faces nem se vê nos movimentos, que jamais se desvenda, o minuto sufocado em que o fremente soluço de amor ou de morte é um enorme sol secreto passando além das barras duma cancela num campo solitário, os passos afundando-se num oceano torvo de ruelas ou de azinhagas ou de becos onde a pobreza tinha o seu poiso de humilde tristeza silenciosa.

   Porque as primeiras estrelas da tardinha vão a pouco e pouco ancorando nos velhos bosques sobre as ramagens que se diluem no pausado surgir da noite e nos largos e praças onde a escuridão crescente é como que um salto de escada a escada e as vozes dos transeuntes ganham de repente um outro som mais claro e deixam antigos vestígios de  conversas rememoradas.

   Porque o vício e a virtude se assemelham então ao reflexo dum fruto maduro na água do tanque duma quinta que desapareceu e é agora apenas a lembrança do ondear dos ramos de um pinheiro no caminho habitual de outrora, a sombra da copa duma cerejeira num pomar ardido pelos anos, o som assustador dum tiro na mata e depois o regresso dos caçadores sob a lua quando a criança já dormia.

    Assim a fotografia esquiva de uma cidade eu irei ser, no crepúsculo silente em que lá muito ao longe e ao cimo os cometas correm num périplo selvagem desconhecido e o rumor das locandas nocturnas se alarga pelos recantos do universo.

 No murmúrio suspeito dos prédios de granito velho. No salão onde estrugem as palmas. No beco onde silvou um som gorgolejante. Sobre a mão cortada e a mão queimada. Na raiz do bem e do mal. Na gota de sangue infantil derramado pelo vento sujo, pelo negrume dum momento envilecido,

   No silencio dos quartos onde já nada existe. No sono atormentado e no que se esqueceu, nos retratos de tudo o que desaparece lentamente há séculos e no entanto ainda é puro e novo, nas batalhas e nos seus mortos, nas batalhas e nos seus vivos.

   À hora incerta e inclemente em que o fumo das casas dos homens começa pouco a pouco a recortar as figuras do dia na orla do campo ou nos muros citadinos e se sente que tudo pode revivescer como uma flor, uma pedra ou um pão sobre a mesa da infância ou da existência sulcada de contentamento, de mágoas e de uma saudade sem limites.

   
 
   
  Primeira morada: Vila Nova (1950)
   
 

      Na orla da Cidade, a Vila Nova. Se há sempre quem receie a sedução da vida, que ninguém se equivoque: é da infância que vos falo e dos seus deuses inertes. Ao cimo o fumo da Fábrica da Rolha as pontas negras dos ciprestes do cemitério um barranco do lixo para o lixo da cidade o sol a repentina passagem de campo para lugar de casas e pessoas as mais pobres de ali e sinais indistinguíveis mas reais de solidão. Uma perna atrás da outra o corpo bambo secreto viajando no pequeno largo antes das escadinhas junto ao muro de cal separado dos perigos da estrada do outro lado as crianças vizinhas a bola trapeira e depois de borracha azul e amarela as cavalgadas em banquinhos de madeira corcéis raspe-que-raspe na poeira da terra batida os carros eram uma presença já sabida adivinhada antes de tudo ainda em sonhos em sonos mal dormidos os lembro ao rés da janela do quarto com a cama de ferro pequena. Os mais velhos vigiavam o portãozinho de tábua sempre aberto o calor subia nas tardes imensas por enquanto, mais tarde meses afora iria chover fazer frio e brincadeiras só em casa.

   No pequeno boque de oliveiras por detrás da casa dizia-se constava houvera outrora uma igreja amaldiçoada ou palacete mouro ao pé duma ribeira perdida seca destroçada inexistente. Inexistente talvez. Contudo se o passado é nada mais que um espaço de espera é imperioso lembrar a padaria pouco moderna profissional embora do primo António padeiro Nicau de seu apelido, primo de bigode o cheiro pungente do pão os braços dele eram pedaços de mármore enfarinhados as mãos repletas de massa moldava torcia e depois eram papossêcos e carcaças grandes finas para os de maiores posses e marrocates para todos na cara uma que outra borradela de farinha e o forno resplandecente moagem assadura de incógnitos infernos de anos indevassados pacíficos para quem cria o que se vai comer. A mão do Pai estendida sabia demonstrar que não era aquele um lume mortal, primo António em troca saudava estendia um dedo para não a macular e o sorriso brilhava sob o bigode.

   Nos pequenos meandros das ruas da Vila Nova me ia perdendo por vezes. Primeiro casulo, primeiro lugar de conhecimento. Um candeeiro na parede pública punha reflexos amarelados na face redonda da Mãe no azul escuro suave da tardinha. “Come tudo filho para seres grande e gordo como o primo António”, pobre primo agora depois morto de enfarte à entrada da velhice uma tardinha o soube, primo do pão das pás postas lá bem dentro do forno vindo do mistério das coisas adultas, muitos poucos anos depois vindo da Casa de Saúde Madalena Sampaio antes do fim por acaso eu passava tomou-me da mão e apertou-ma mão minha agora só de adulto e os olhos estavam percebi depois já noutro lugar “Até depois primo António, as suas melhoras” - e o forno já sem luz de chama que não assustava e as lágrimas depois do ocaso – as suas melhoras  passados quatro dias partiu rebentou secou como grilo tradicional em forno de padaria de província.

    A casa com vinha virgem à porta uma gaiola de um pássaro qualquer canário? pintassilgo? e a gente gentinha que passava descia a estrada entrava em outras casas, polícias operários trabalhadores marceneiros gente vinda da Fábrica dos longes perto da Cidade antes dos carros e das carroças, do burro cinzento e do burro negro do homem dos “desperdícios” que me assustou um dia o terror para quem aí uns quatro anos tinha, para quem arranca do mundo a primeira imagem realmente agreste.

   E eram duas entre outros as minhas companheiras de brincadeira cavalgadas nos tais banquinhos montados como alazões poldrinhos mansos: algumas esfoladelas raspadelas nos calçudos. Uma era mais pequena que eu um dia bati-lhe não sei porquê, o rostinho contraído chorou lacrimejou na minha frente aprenderia mais tarde naquela hora talvez não se bate em mulheres só em gajos sacanas aprenderia digo era tão só companha para corridas soltas para um dia de crianças sem jogos canalhas de gente grande, lembro: a sua mãe era dizia-se ouvi fixei mulher sem homem marido companheiro certo imutável. Coisas do coração da existência algures no mundo o pai selara adeus para outros diferentes locais. E uma vez essa mãe viera à nossa minha casa buscar sal emprestado. “Quer uma colher, vizinha? Ou papeluço? . Levou papeluço. “Tão pobre te vejas que nem sal tenhas” comentou a Mãe enquanto a outra levava de empréstimo dado o embrulhinho cinzento. Apenas esquecimento na loja,  claro. E frase só ao desfastio, claro está. Mas pobre a outra mãe de não ter pai amante inadiável, cimentado. Por isso aos quatro anos se lembra se esquece sem esquecer. O nome era creio Cegonha. Ou anexim. Nome de ave voando sobre o claro céu da Cidade, ave real com ninho e marido decerto na torre da Sé e no Convento das freiras das moças sem família. Depois, anos e viagens volvidos, rostos e lembranças quando as cegonhas já não existem não moram pensionistas do Convento as via passando nos longes dos arredores para a estrada de Monforte e da estação de comboios, o nome era branco como o sal as paredes a recordação do larguinho e da casa pobre e sem marido: mulher abandonada, duas ou três filhas, o rosto entre moreno e sisudo, um ar de receio nas lojas e nas convivências. Cegonha, pássaro e nome perdido na Vila Nova da minha chegada ao lugar perto da Cidade.

    A Cidade na Vila Nova: das tabernas como a taberna da prima Maria do primo Nicau padeiro taberneiro de bigode lavado nas horas fora do forno, na quitanda ao rés da estrada onde à noitinha depois da labuta os homens gargalhavam mandavam vir carapulos de tinto e merendinhas de toucinho frito e copinhos de branco e cálices da ginjinha rija com todos para todos.  Para mim era sem avarezas sem manha sem detença nos domingos o cartuchinho de rebuçados de fruta rebuçados caseiros baratos tão suaves ao paladar e os cartuchos de ervilhanas bem medidos e um piparote amável no toutiço, que esperto! tem quatro anos? pois parece ter mais, o que era elogio de pedreiro ou marçano de folga ou talvez trabucador de passagem talvez operário da Lanifícios ou carreiro dos Fortios, cinquentas e tais suponho bigode ralo na beijoca sem maldade, que esperto!, manga curta sobre o bicípete rijo encordoado colete calça em sacarrolhas um sorriso cumprimentador ao Pai um olhar de quem se esforça na cortesia e o Pai em resposta “Tinto. Dois tintos, um para este senhor. Para mim, pequeno”, a estrutura da fraternidade a minha mão lambuzada o Pai e os homens amigáveis trocando minutos, só meu o Pai e protector  a garantia de tabernas e tabernas e cartuchos de rebuçados e ervilhanas para anos e anos de viagem nas horas domingueiras.

   Um dia um tractor passou roncando era já noite leve embora por detrás da janela vi na noite os faróis pouco a pouco sobre o silencio era noite poucaterra poucaterra como na estação dos comboios e o ruído encheu a noite que se pôs a tremer e depois lentamente passou e lá se foi como um animal pré-histórico um mamute escuro e encantado arfando e as estrelas continuaram pairando pairando. E na manhã seguinte ao almoço disse a Mãe “Já sabes? Foi o filho da senhora Justina que veio visitar os pais, mal parou o  tractor no barracão e antes de entrar em casa cai-lhe um barrote de lenha na cabeça levaram-no muito ferido p’ró Hospital. Credo, olha que coisa disse o Pai e a Mãe assentiu. É como elas se arranjam, chiça.

    E foi assim na Vila Nova nesse dia no dia seguinte jogando com a bola dura dura de cauchú com os outros putos pedaços de humanidade bocadinhos como eu de sangue e carne foi assim que suspeitei que a morte passa por cima dos animais imensos das lembranças das cabeças dos homens de olhos inocentes como faróis nocturnos distantes e não deixa sequer lugar a dúvidas sobressaltos:  porque entre nós e a morte nem os anos da infância se interpõem para valer. Só mais tarde no entanto o saberia mesmo. Mas não na Vila Nova das orlas do meu começo dentro fora de portas.

   
 
   
  Segunda morada: Azinhaga do Atalaião (1952)
   
 

   Naqueles tempos Portugal ganhava sempre no hóquei-em-patins. Havia alegria para dar e vender, sobretudo porque sem caneladas cabeçadas não se enrolavam em ligaduras os membros dos que imitavam no terreiro do lado os heróis daquelas batalhas desportivas.

    O rádio em segunda mão de luzente baquelite castanha apanhava tudo: futebóis e outros mimos, as canções da Amália e do Tristão da Silva, serões da Emissora, folhetins e, no esconso da noite, no quarto do fundo, algumas vozes proibidas de homens de longe falando coisas complicadas e que parece queimavam o éter falando estranho e novo. Não entendia, ouvia apenas e por alto perto do Pai atento, afiz-me como que por companheirismo filial percebi que andavam por ali palavras para esconder. Ao Pai ficara-lhe o hábito das noites de parlenga noticiosa da BBC quando à socapa se escutavam as batalhas pela Europa, pela casa do mundo na terra no mar e no ar. Sorte que nunca o tivessem surpreendido nesses transes, um gêéneérre tocava sempre supunha-se pela batuta do governo. Supunha-se. Ainda eu não era nascido quando a metralha assolava a terra das nações levada em mãos de homens de bichos de máquinas mortais, o Pai adquirira a telefonia num lojista monfortense da rua da paragem da camioneta, antes de se virar para a avenida Marquês da Praia onde ficava a casa do Posto em que nasci. Sempre era um bem a mais, um descanso para saber como era a marcha do país e do estrangeiro que chegava como um vento soprado de fora. E depois havia também a música  por vezes com discos pedidos e o resto, novelas teatrais a granel e a Tia parava a costura quando era o Francisco José e o Guilherme Kjolner e fadistas de sustância, a minha Irmã saberia mais um dia com as canções imitadas nos bailes da Euterpe, da Robinson, da Sociedade Vintém, o vocalista do conjunto bem penteado de popa erguida pelos primores da brilhantina, de voz tremeluzindo e olho maganão posto sedutor no ondear das dançantes com seus vestidos airosos cheirosos e cabeleiras tratadinhas para a função em soirée.

    Lembro. Lembro os golos homéricos do Jesus Ferreira o grito espanejado do golo do locutor, gooooolooooo tanto na nossa telefonia como na do vizinho Azeitona, o da taberna o da adega adjacente, no alambique objecto misterioso que nunca via sem me espantar seu tanto pingue-pingue caía o fio de aguardente um cheiro telúrico pelo ar, entontecia maravilhava. Vizinho Azeitona por detrás do balcão de mármore manchado e de madeira escura, rios e lagos de vinhos diversos depois limpos com o trapejo de quadrados, largava as ervilhanas avulso, tantas por tantos tostões e os caramelos de anis e tinha sempre, confeccionados por sua esposa dona Domitília, petiscos de se lhes tirar o boné para os fregueses beberrões e não só encartados e lambareiros. Não enganava, continhas certas e seguras de mágico antigo no mester de vender copázios iguarias e humaníssimas jóias culinárias.

    Vendas, tasquinhas, modestas locandas: em toda a parte companheiras úteis, comoventes e miraculosas para o quotidiano dos sabores e dos repastos dos humildes habitantes da vida.

   E na rampa, no lado direito da azinhaga cortada saída da estrada da Serra as galinhas debicavam buscando alento alimentos terrestres grãos bichinhos ao deus dará. E a Mana jogava a macaca, a Tia limpava varria e a Mãe se trovejava punha a minha mão na sua mão e dizia “Santa Bárbara bendita/ que no céu estais escrita/ com papel e água benta/ livrai-nos desta tormenta/ Levai-a lá pra bem longe/ levai-a lá prá moirama/ onde não haja pão nem vinho/nem flor de rosmaninho/ nem se oiça cantar o galo/ nem repenicar o sino”. Santa Bárbara que remédio obedecia às vezes. 

   No pequeno entreposto de vizinho Azeitona, passada a tormenta, os homens de fatos pardos fatos de ganga ou de cotim retomavam o jogo do chito, a farra adequada nestes casos: o banco encostado à parede sob a figueira, se era fora, ou sob os quadros com as equipas do Benfica, do Sporting, do Lusitano e do Guimarães e os outros mais, que vizinho Azeitona era democrata nas coisas da bola e tinha olho para acatitar todos os adeptos. E era um vê se te avias de braços certeiros e pontarias finas com a moeda placa de cobre no tronquinho de metal, reminiscência de invólucro de bala militar que fôra em espingardas obrigadas à feitura da tropa, objecto mortal agora virado para negócios de paz: ganhar, não ganhar, ficar de bem com o dever cumprido pundonoroso de jogador leal.

   Um certo dia um de fora, fora do jogo, por bebedeira irritação brava exaltação esfaqueou um conviva. Levaram em braços o agredido, vinda a polícia o outro, lívido e já em tremeliques, de gravata pingada foi de cana, paradeiro se calhar de ódios solapados e raivas na cabeça esquentada.

     E um dia era Carnaval e manipansos passando na estrada para os lados de São Cristóvão. E um dia a catrefa de gente passando para cima rumo à Festa dos Aventais ou na Páscoa da gulodice do ensopado da carne de chibo nos tempos de Março Abril, Páscoa citadina campestre páscoa de pessoas dando ao dente ao ar livre no verde mato alentejano no desafogado da Fonte dos Amores provável e requerida, na Curva do Caminhante, no Miradouro, árvores rochas e matagais propícios floridos e silvestres. De nós o mistério se faz de nós é o mistério propagado. Gente, gente que nunca mais afinal verei. Não fazendo da vida uma vida metade desenho metade invenção afinal repleta estava de serenidade e concidadania. E eu estava a crescer: via o mundo a Cidade as buzinas dos carros paravam-me nos tímpanos e ai ficavam muito tempo. Eu via erguer-se o futuro do que um dia pensava que iria ser, rapaz de calças compridas e sapatos reluzentes de polimento  como nos engraxadores do Rossio do grande plátano sombreado. A Mãe a Tia a Mana sentadas de noite na saleta cosendo e bordando trapejando dizendo memórias da terra das pessoas transparentes opacas na contemporaneidade da cabeça. Por isso, sei lá porquê, deixou-se um dia a casa onde o rádio bichanava coisas dos lugares da imaginação real, penosa ou luminosa, futebóis e realidades sinfónicas, era necessário partir. E parti. Desta vez para o campo, a quintarola das nuvens e dos pinheirais ao entardecer ao alto da estrada do Chancrão ainda não macadamizada, dos bosques de castanheiros e dos ventos em torno do lar. Do lar que agora o era. Chegara o tempo de aprender que as noites são na infância como castanheiros e cerejeiras num Verão de conversas à lareira, de pios de pássaros desconhecidos.

   Como um anoitecer vivido passo a passo, no campo não havia electricidade. Naquele tempo.

   
 

Nota – Estas são as primeiras duas entradas dum rol de 12 moradas.

   
 

 

© Maria Estela Guedes
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