| Vislumbrou através da copa do castanheiro o prédio da 
		Maison des ÉtatsUnis, do outro lado do Boulevard Jourdan, que formava 
		um u que se dissolvia e tornava a reaparecer por entre os galhos. 
		Abaixando a vista, Lucien deparava o alambrado da Cité Universitaire 
		que se interrompia para dar lugar às escadarias sob o pórtico da entrada 
		principal do campus. Lucien procurou novamente a presença do jardineiro, 
		mas não o encontrou mais. Deu as costas para a avenida e tomou uma aleia 
		lateral do parque. Pensou nas estações interiores de cada espécie e 
		observou como cada uma reagia de modo diverso ao fim do inverno; como os 
		plátanos, quase nus, sua seiva acordando lentamente do letargo. Deixou a  aleia e  cortou  o  parque em diagonal, na 
		direção da Rue de L’Amiral Mouchez. No meio do caminho, encontrou dois 
		exemplares de cerejeira japonesa, já carregados com suas enormes flores 
		 rosicler, num esbanjamento de vida  e  de alegria  que contrastava com 
		a severidade dos olmos que, próximos ao pequeno e quase delicado coreto 
		do parque, espreitavam seu telhado em forma de cone. Castanheiros, 
		freixos, plátanos, cerejeiras japonesas, olmos. Cinco diversas 
		manifestações sobre a passagem do tempo. Lucien contornou o lago, onde galinhas d’água e patos 
		incursionavam pela lâmina de água tecendo rastros prateados e retornou 
		na direção do Boulevard Jourdan. Chegou novamente ao pé do castanheiro. 
		Postandose abaixo da copa, podia agora perceber que uma intensa 
		luminosidade se projetava sobre a árvore, que decompunha, afiava e 
		direcionava os raios de sol; era como se suas folhas estivessem 
		mergulhadas em uma borbulhante substância leitosa com tons amarelos e 
		vermelhos, formando espirais, redemoinhos e crispações alaranjadas que 
		pareciam saltar na direção de seus olhos. Tomou a direção da porta de saída mais próxima e 
		alcançou a calçada, dandose conta, agora sim, de que dera uma longa 
		volta ao redor do parque, e que voltara àquele mesmo ponto de partida 
		como se estivesse fadado a cumprir alguma espécie de ritual inadiável 
		que nem sequer figurava em seu consciente. À sua frente, outra vez, o prédio da Maison des 
		ÉtatsUnis, formando um u, agora nítido, que abrigava bicicletas, um 
		pequeno pátio e as escadarias frontais. Mais acima, os arcos da entrada 
		principal do campus internacional, que deixavam entrever, ao fundo, 
		erguendo‑se do piso de cerâmica, canteiros de buchinhos talhados a 
		pique. Assemelhavam‑se a ziguezagueantes muralhas anãs, quando vistos a 
		uma certa distância. Como se precisasse ganhar tempo para se decidir, 
		Lucien retirou do bolso um caderno de notas, no interior do qual 
		encontrou uma folha solta, dobrada, quadriculada, que dizia: dia 15 de 
		abril: 10h30 – Paris/Lisieux; chegada às 12h36. 12h46 – Lisieux/Deauville, 
		chegada às 13h13; dia seguinte, 16 de abril: 8h24 – Deauville/Lisieux, 
		chegada às 8h49. 8h57 – Lisieux/Paris, chegada às 10h50. 12h34, saída de 
		Paris a Le Havre, chegada às 14h40. A princípio, esse roteiro parecia mais seguro que o 
		outro, que aventara, e que passaria por Deauville/Lisieux; Lisieux/Rouen 
		e finalmente Rouen/Le Havre. É que este último, embora não o obrigasse a 
		voltar a Paris, fazendo‑o se desviar apenas até Rouen, forçaria Lucien 
		a correr para alcançar sua última conexão. Além do mais, Lucien nunca 
		estivera na Estação de Rouen, e agastava‑o ter de correr por uma gare 
		que não conhecia. De todas as alternativas de que dispunha, e já que 
		Lucien pretendia de qualquer maneira permanecer algumas horas que fosse 
		em Deauville, o mais confortável e inteligente roteiro era mesmo seguir 
		para lá por Lisieux, no dia 15 de abril, continuando o trajeto, no dia 
		seguinte, a partir dali, de ônibus até Le Havre, passando por Honfleur. 
		Além da comodidade, o percurso de ônibus pelas estradas vicinais entre 
		Deauville e o porto Le Havre era mais convidativo do que o trajeto pela 
		via férrea – e Lucien não teria que voltar a Paris, nem mesmo retroceder 
		até Rouen. Mais tarde, Lucien descobriria que estavam corretas suas suposições – e 
		quando passasse por Honfleur, com suas pequenas casas e albergues 
		sólidos e convidativos, à beira dos penhascos, sentir‑se‑ia ao mesmo 
		tempo enternecido e exultante, lembrando‑se de que aquele vilarejo, com 
		sua orla construída a pique e entalhada pela força persistente do vento, 
		abrigara os pincéis de Monet, Pissarro, Seurat. Lucien dobrou novamente o papel quadriculado, fazendo a folha deslizar 
		para o interior do caderno de notas. Seus dedos finos e sua palma da mão 
		esbranquiçada se fecharam sobre o pequeno caderno, que desapareceu no 
		bolso externo do paletó. Atravessou o Boulevard Jourdan, sentindo nas narinas um odor pesado de 
		gases que furgões, camionetas e automóveis despejavam no ar. Caminhou 
		em direção ao edifício de convivência internacional, entrou pela porta 
		lateral direita, que leva aos refeitórios, e tomou um lugar na fila que 
		leva ao guichê. À sua frente, a volumosa cabeça de um marroquino fincada sobre uns 
		ombros caídos. Impaciente, o jovem estudante vibrava o tacão da bota 
		sobre o piso. O ruído percutia nos ouvidos de Lucien, que girou o corpo 
		para a esquerda, procurando, na distância em que se encontrava, decifrar 
		o cardápio do dia, pregado à direita e à esquerda dos refeitórios 
		contíguos.
		 Subitamente o marroquino encara Lucien nos olhos e para de repicar o 
		chão. – Tem cigarro? – ele pergunta com viva naturalidade. A atitude do estudante interrompeu a concentração de Lucien, que 
		buscava refazer uma antiga sintonia com aquele lugar, o qual frequentara 
		anos atrás. A franca espontaneidade do marroquino pareceu‑lhe uma 
		espécie de variante do comportamento agressivo demonstrado instantes 
		atrás ao repinicar o chão do hall. Uma infantil necessidade de 
		reafirmação social, ao lado de uma até certo ponto ingênua 
		imprevidência, refletiu Lucien, poderiam sem dúvida explicar aquele 
		gesto do marroquino.
		 Ele pensou ainda muitas outras coisas, ocupando sua mente de modo a 
		evitar que a pergunta do jovem provocasse nele uma atitude explosiva. Não obstante, o jovem voltou à carga, falando um francês que sem grande 
		sucesso parecia querer perseguir o sotaque parisiense e o dialeto de sua 
		faixa etária, e recolocou a pergunta, lamentando que se esquecera de 
		comprar cigarros quando passou pela cafeteria. – Não, não tenho nenhum – Lucien respondeu, sem tirar os olhos do 
		cardápio. Às suas costas, dois alemães conversavam com os ombros colados 
		um ao outro, as mãos esquecidas nos bolsos.
		 A fila alongava‑se e engrossava rapidamente, Lucien sentiu‑se 
		comprimido e estrangeiro em meio a tipos aparentemente desempregados, 
		vadios, estudantes e gente da própria Cité Universitaire. Havia uma enorme distância entre eles e Lucien, a começar pela idade, e 
		a terminar pela higiene pessoal, que em Lucien era uma marca quase 
		obsessiva desde os tempos em que, também estudante, trabalhara por 
		alguns meses naquele imundo bistrot da Rue Mabillon. E, embora se 
		sentisse atraído pelo viver sem compromissos ou horários, acreditava 
		que não seria capaz de abandonar inteiramente a rotina. A fila avançava e Lucien ainda não conseguira decifrar o menu. O vulto 
		policialesco e agigantado da mulher que vendia os vales do refeitório 
		crescia atrás das barras douradas do guichê, com seu ar desconfiado e 
		rude, e Lucien ainda não se decidira se almoçaria no refeitório da 
		esquerda ou da direita. Seria, provavelmente, a última vez em que comprava uma refeição ali, já 
		que tudo o que o fizera visitar o campus com regularidade outrora já 
		não estava mais lá. Toda aquela manhã luminosa, de fato, não passara de um nostálgico e 
		dolorido estratagema de visita ao passado através da recuperação de 
		velhos hábitos, muito embora Lucien facilmente percebesse que de nada 
		lhe adiantavam os antigos lugares quando um enorme fosso se havia 
		formado entre sua vida de agora e aquela dos tempos de Su Ian. Lucien recebeu o bilhete passager, modalidade utilizada por 
		frequentadores não residentes no campus universitário. A mulher do 
		guichê entregou‑lhe o troco como se Lucien tivesse acabado de assaltá‑la 
		e aquele fosse o último dinheiro de que ela dispunha. Com o troco e o 
		bilhete entre os dedos, Lucien se afastou da fila, dirigindo‑se para o 
		local onde estava exposto o cardápio dos refeitórios. O refeitório cujas janelas davam para o gramado do centro de convivência 
		internacional oferecia uma entrada de salada verde, canard avec purée, 
		além de outros acepipes mutuamente excludentes, como couscous, 
		andouille ou choucroute garni. O eclético e multinacional cardápio 
		terminava com queijos (Munster ou Chèvre), ou ainda gateau vanille.
 O outro salão, cujas janelas davam para o jardim dos arcos, oferecia uma 
		miserável salade de concombre de entrada, e a escolher: thon sauce 
		américaine ou pavé de rumsteack avec de ris, finalizando com um medíocre 
		ananas melba, que poderia ser inteligentemente preterido, imediatamente 
		pensou Lucien, em nome de uma cascate au citron.
		 Era enorme o risco de provar um pato enjoativo e passado demais, mas 
		Lucien resolveu arriscar, assim optando pelo refeitório que descortinava 
		o verde  gramado do campus. Deslizou a bandeja ao longo do balcão de serviço. Com afetado pudor 
		alcançou com a ponta dos dedos o prato de canard e afetadamente, ainda, 
		impediu que a servente despejasse sobre a temível escolha uma nova 
		colherada de um purê moribundamente alvar.
		 Serviu‑se de uma pequena porção de salada verde e se decidiu 
		francamente por uma generosa fatia de Pont L’Evêque, queijo que lhe 
		pareceu uma miragem gastronômica uma vez que não constava do cardápio 
		fixado à entrada. Arrematou sem pestanejar uma garrafa de Gamais, haja vista que as outras 
		duas alternativas: um Gaillac e um Côte du Rhône ordinário – não o 
		seduziam de modo algum, o primeiro por sua evidente impropriedade; o 
		segundo por sua áspera palatabilidade. Sob tais condições, o rótulo 
		daquela bebida ligeira, esportiva e descompromissada chegava a ser quase 
		atraente. Lucien pagou a garrafa de Gamais e alçou a bandeja, dirigindo‑se até 
		onde sarcofagicamente se amontavam, em cestas de vime, pães cortados em 
		pedaços desiguais. A pesquisa arqueológica próxima da superfície era 
		lamentável e Lucien somente encontrou pães com o miolo cinzento, a casca 
		ressecada e sem o saudável brilho do pão fresco. Enfiou o antebraço até 
		o fundo do cesto, revirando seu conteúdo, até que a metade de uma 
		bisnaga é finalmente desenterrada. Escolheu um lugar em uma das mesas, 
		próximo à janela, sentou‑se e alçou até a altura dos olhos o 
		arqueológico pedaço de pão, examinando‑o com semblante desabonador. 
		Em seguida serviu‑se de vinho, prelibando o inocente toque de veludo do 
		Gamais; sorveu o primeiro gole e notou seu aroma quase inconsistente e 
		seu retrogosto juvenil.
		 Observa agora o copo e através da mortiça refração da luminosidade que 
		perpassa o vidro percebe uma coloração indefinida, levemente arroxeada, 
		que ganha brilho e uma profundidade ligeiramente alucinatória quando 
		Lucien inclina a borda do copo em sua direção, de modo a examinar a 
		textura e o corpo da bebida, sem a interferência do recipiente.
		 Lucien enche novamente seu copo, dando agora uma forte tragada no 
		líquido, em busca de uma resposta mais ativa da bebida. Com falsa 
		segurança, deixa o copo de vinho sobre a bandeja e gira a cabeça em 
		movimento panorâmico. Dezenas de rostos ao seu redor crispam‑se à 
		medida que braços nervosos executam a tarefa de levar a comida do prato 
		à boca. Manoplas atacam os bocados de pão; facas, garfos e copos 
		orquestram magistralmente uma espécie de ópera de desterrados 
		comensais.
		 Enquanto tangem, retinem e esgrimam com metais e vidros, com variado 
		nível de impetuosidade e destreza, Lucien passeia os olhos pelo salão. 
		Depara rostos, esgares, olhos tristes, imobilizados por longínqua 
		memória, por longínquos e saudosos afagos familiares. Não o agrada o que pressente no ar, muito menos o que vê. Paris assoma 
		quase impiedosa com seus estrangeiros mais modestos. Nisso ela mudou 
		muito pouco, pensa Lucien. A cidade do gosto, do fausto e da beleza 
		mostra sua impaciência de mundana. Para os desprivilegiados, o céu da 
		cidade é mais baixo, as vitrines ardem nos olhos, ofuscam, intimidam. Ele deixa tais considerações de lado, e pela primeira vez analisa a 
		composição de formas e cores que tem sobre a bandeja. O contraste entre 
		o panorâmico e o detalhe sempre o entusiasmou, e Lucien se sente por 
		vezes como um cineasta sem sua câmera, andando pelas ruas, em busca de 
		atores e cenários ao acaso; filtrando e capturando aqui e ali um 
		enquadramento, uma surpresa da luz. Nesse sentido, a bandeja inebria‑o. Antes de experimentar o pato, porém, Lucien se ergue e se encaminha até 
		a mesa de temperos. Apoia o prato sobre o tampo e se serve de mostarda. Um campo dourado e perfumado brota de sua memória. De uma janela de um 
		trem imaginário descortina os campos floridos de mostarda de Dijon. Os 
		pequenos capítulos das flores vibram sob os revérberos da luz, 
		enlouquecem à passagem do trem, como se a locomotiva abrisse à força um 
		caminho por entre os pedúnculos delicados da mostarda. Suas hastes 
		infletem para trás e para frente, para trás e para frente, sob o 
		deslocamento da massa de ar.
		 Já de volta a seu posto, Lucien come sem pressa, examina o grande 
		gramado interno, àquela hora vazio. O lugar lembra a Lucien um campo de 
		golfe inglês, não o peripatético reduto de suas incursões no debate 
		filosófico e político que ali tiveram lugar outrora. Mirando esse 
		panorama imóvel, Lucien não consegue nem mesmo extrair sua solitária 
		figura sob a neve daquele Natal em que Su Ian estivera ausente.Lucien passa uma generosa porção de mostarda sobre o pão e leva‑a à 
		boca. Em seguida bebe mais um gole de vinho, que alivia a ardência 
		sensual da mostarda e confunde as papilas, fundindo o intenso aroma da 
		mostarda ao despojado bouquet do discreto Gamais.
 Estala a língua e sorri, deslizando a seguir a polpa áspera superior da 
		língua entre as gengivas e o lábio inferior. Ergue depois a ponta 
		avermelhada da língua, deslizando‑a pelo céu da boca, como se buscasse 
		aspirar algum recôndito sabor mal‑explorado. Na parte superior da boca repete a operação que realizara na arcada 
		inferior. 
		 Volta a passar uma generosa porção de mostarda sobre o bocado de pão, 
		segurando‑o com a extremidade dos dedos de modo que o miolo embebido de 
		mostarda toque de leve a superfície castanho‑clara do molho do canard. 
		Laivos de mostarda marcam agora a cremosa e brilhante gelatina que se 
		forma ao redor da ilha de purê. Lucien leva o pão tingido de castanho e 
		ouro à boca, alcança a faca com a mão direita e retém com o garfo 
		inclinado e pressionado pelo indicador esquerdo uma fatia de carne, 
		abordando‑a pelo flanco com a faca serrilhada.
		 Separa o pedaço cortado com o garfo, acomodando entre o naco e o cabo 
		uma parede de purê. Cuidadosamente o garfo ascende até sua boca, 
		enquanto o antebraço e o pulso de Lucien fazem o garfo girar 45 graus, e 
		encontrar os lábios semiabertos. Enquanto mastiga demoradamente o alimento, Lucien examina o purê que 
		restara sobre o prato. Paisagem lunar movente, estranho Mont‑Blanc em 
		trágico degelo, dissolvendo‑se em planura lacustre alaranjada e 
		castanha, como um iceberg plantado sobre lavas fumegantes.
		 A carne do pato sugere areias de uma praia, tendo à frente um mar de 
		sargaços e óleo densos. Lucien traga mais um gole do Gamais e seus olhos 
		mergulham na inconsciência súbita daquela paisagem gastronômica que se 
		formou em seu prato, e que invadiu sua imaginação.
		 A paisagem evoca cores outonais solapando volumes glaciais antes 
		estáticos e eternos, estimulando em Lucien um incômodo e opressivo 
		sentimento de solitude. Ele ataca mais uma porção da praia de acastanhada mousse, em que se 
		transformou o canard. Incontinenti reduz o volume glacial da paisagem 
		sobre a bandeja, cavando com a ponta do garfo uma pequena cova no purê, 
		que logo é escamoteada quando então a estrutura finalmente parece querer 
		ceder, afundar e se fundir ao magma que cerca o iceberg.
		 Lucien tira os olhos de seu exercício cenográfico e se apercebe de que 
		à frente se encontra uma jovem oriental, provavelmente coreana, sentada 
		ao lado do que parece ser seu companheiro, que por seu turno gesticula 
		muito. A jovem tem a cabeça apoiada de leve sobre o ombro esquerdo do 
		rapaz, de forma que a cada impetuosa contração de seu expressivo bíceps 
		sua cabeça feminina perde por instantes o ponto de apoio. Sem se incomodar aparentemente com os modos do rapaz, a coreana mantém o 
		pescoço dobrado, a cabeça inclinada, aguardando até que um novo espasmo 
		muscular do namorado viesse favorecer o contato entre o ombro dele e o 
		queixo e o meio‑rosto dela. Tal fato não ocorreu, e a vibrante 
		gesticulação do coreano, contrastada com a ilimitada solicitude de sua 
		companheira, ou ambas as coisas em separado, acabaram por exasperar 
		Lucien. Era inevitável que a jovem coreana sentada à frente, no amplo 
		restaurante universitário, lembrasse a Lucien, de pronto, o rosto oval e 
		neutro de Su Ian. Era também inevitável que a paisagem gastronômica em 
		seu prato, que há pouco o fizera recordar‑se do Mont‑Blanc, evocasse 
		agora aqueles dias em St. Gervais‑les‑Bains, estação de esqui plantada 
		numa das faldas do maciço do qual o Mont‑Blanc se projeta em seus 
		majestosos 4.807 metros de imensos paredões de neve. Ali, dois anos atrás, o etéreo branco da neve da Savoie recortara o 
		rosto marmóreo e impassível de Su, um pouco encoberto por um capuz 
		forrado de lã, por sinal castanha, que formava uma crespa moldura 
		penugenta e adolescente ao redor do esfíngico rosto de olhos rasgados e 
		incisivos, de narinas minúsculas e pomos salientes, estupendamente 
		harmonizados com a linha da testa, do nariz e do queixo. E, para além 
		daquele rosto, um pescoço afilado e despudoradamente alvo, plantado 
		ereto como um aspargo, envolto por uma gola alta e de cor vulcânica. E 
		para além dele o corpo delgado de Su Ian, envolto em lãs e depositado no 
		branco leito de um patamar em Le Betex; e, para além de tudo aquilo, o 
		bovino e desarmado olhar de Lucien. E para além de Lucien, e de sua 
		bovina felicidade, novamente a montanha de neve, franqueando sua mais 
		íngreme escarpa gelada ao olhar do francês. E mais adiante, ainda, para 
		além da notável engenharia dos Alpes, novamente Su Ian, planta pronta 
		para ser tocada entre flocos de neve, agora com seus braços abertos:– Lucien, m’embrasse, alors! – dizia, como uma miragem.
 E ao fundo, e em todos os lugares, o Mont‑Blanc, e dentro e fora e em 
		todos os lugares, Su Ian. Su Ian e a coreana à frente, o purê e o Mont‑Blanc, 
		o refeitório e suas colunas e suas janelas até o alto, paredões 
		íngremes, por onde entra a luz. A coreana acompanhada do namorado se levanta e com os braços arqueados 
		empunha a bandeja para fora da mesa. O purê no prato de Lucien funde‑se 
		ao molho, a neve desaparece, toma seu lugar um sopro de vozes, um 
		tilintar de copos, uma orquestração de metais, enquanto vapores da 
		cozinha espiralam e um cheiro de repolho, creolina e um ranço de ave e 
		de carnes cozidas toma conta do ar, impregnando tudo, infiltrando‑se 
		corrosivamente na memória, sob as mesas e nas passagens.
		 Lucien solta o garfo na bandeja e a seguir move lentamente a base do 
		copo, girando‑a como se buscasse a sintonia de uma emissora de rádio.
		 Afunda o polegar da mão esquerda no miolo de um bocado de pão, e a 
		seguir comprime fortemente a casca enrijecida do pedaço de baguette com 
		o indicador, segurando com a outra mão o restante da fatia, em busca de 
		apoio. Um movimento horizontal do pulso esquerdo completa a tarefa.
		 Depois, corta com a mão direita uma fatia de Pont L’Evêque. E com o 
		auxílio do polegar e da lâmina transporta o pedaço de queijo por sobre 
		a bandeja, em um movimento atento e firme como o de uma grua deslizando, 
		acomodando‑o em seguida sobre o pedaço de pão que sustinha na ponta 
		dos dedos da outra mão. Após se servir da sobremesa, Lucien dispara seu ataque na direção do 
		Gamais, que neutraliza a textura emoliente e pouco refinada do queijo. 
		Gira a cabeça na direção dos janelões do refeitório e encontra o gramado 
		vazio como antes. Pronuncia o nome de Su Ian com o sotaque que lhe 
		pareceu apropriado para fazer com que aquele nome, dito em voz alta, 
		tivesse o poder evocativo que Lucien buscava. A luz mortiça sobre o gramado, recalcitrante realidade de agora, 
		resiste à evocação de Su Ian. Ela continua deitada sobre a neve, em um 
		patamar do Le Betex, pedindo a Lucien que a abrace. Contudo agora, suas 
		feições não são nítidas, e a voz de Su Ian vibra não mais colada aos 
		ouvidos de Lucien, mas teatralmente distante. Ele fixa o olhar sobre o pano verde do campus, e finalmente consegue 
		plantar sobre o gramado a figura da oriental em uma tarde ensolarada, 
		quando se despediram um do outro, aparentemente como sempre o faziam. 
		Algo sucedera, no entanto, que tornava aquela despedida especial. O que 
		teria havido ali, que não se repetiria mais? Lucien não sabia, pois em 
		seu convívio com Su Ian era frequente a impressão, ao se despedirem, de 
		que o liame que os unia se esgarçara e se fendera.
		 Sente agora dificuldade de abandonar a geografia da Cité Universitaire 
		e alcançar novamente o inverno nos Alpes, rever o rosto de Su Ian, ouvir 
		bem de perto sua voz. O verde do gramado é uma cortina que esconde o passado e o futuro, e que 
		caprichosamente consente em revelar a Lucien imagens pouco 
		significativas ou confusas, que Lucien preferiria ver substituídas por 
		outras que desafiassem sua sensibilidade. Lucien se serve de mais uma fatia de queijo e sorve nova golada de 
		vinho. Definitivamente não se sente capaz de erguer o tapete verde que 
		recobre tudo, e extrair da memória, debaixo das raízes da grama pujante, 
		a razão secreta que movia Su Ian, sempre, para fora do eixo de sua vida, 
		e que naquela vez quase se manifestara por intermédio de palavras.  Estudantes atravessam o gramado, em busca de seus alojamentos. Apesar 
		da primavera, algumas folhas cruzam o ar, vítimas de uma nevasca tardia 
		de abril. Abaixando o tronco, Lucien consegue ver, através do requadro 
		da janela, uma nesga de céu pérola. Ao descer os olhos, subitamente Lucien vislumbra Su Ian, sentada sobre o 
		parapeito da janela, as pernas cruzadas contra os seios. Um novo esforço 
		de Lucien e a pérola de céu é a pérola da neve ao redor da face de Su, 
		que pede a ele que a abrace, mas para tanto Lucien deve deixar de ser um 
		mero espectador. Deve sair de si, projetar‑se sobre a miragem da neve, 
		debruçar‑se sobre aquele corpo oriental, colocar seus braços ao redor. Lucien no entanto se mantém onde está e o corpo de Su Ian, com os braços 
		abertos, deitado sobre o campo de neve, está estático e imóvel, quase 
		artificial como em uma fotografia.
		 Novamente Lucien vê sobre o céu pérola um retábulo de janela e nele, 
		sentada, pernas recolhidas contra o seio, Su Ian, e ao fundo, ainda, o 
		Mont‑Blanc. Pérola. Abaixo o vilarejo de St. Gervais‑les‑Bains, e em 
		um ponto dele o balcão da taberna do barbudo Wolf e da linfática Adèle e 
		sobre o balcão uma flute de vin pétillant e, ao redor da taberna de 
		Wolf e Adèle, casas e lojas e ruas com marcas castanho‑escuras, como o 
		molho que restou sobre o prato de canard, e ao longe pinheiros, 
		castanheiros, faux ébéniers, e sobre a vila o platô de Le Betex, e um 
		pequeno hotel com janelas para o Mont‑Blanc, e um retábulo da janela do 
		hotel de poucos quartos. Sobre o parapeito, Su Ian se encontra 
		enquistada no silêncio, suas mãos cruzadas sobre os joelhos, os joelhos 
		cruzados contra o peito, os cabelos atirados para o lado de fora da 
		janela, de modo que seu rosto se constrói na mente de Lucien ampliado e 
		próximo. Um rosto maior que o maciço do Mont‑Blanc e seu majestoso 
		cenário. E ela não encara a montanha, tampouco Lucien. Seu olhar é um 
		projétil que não ultrapassa o enquadramento da diminuta janela em que se 
		alojou. Lança‑se contra os batentes, vai e vem, estanca neutralmente 
		sobre a película gasta da madeira do velho hotel, estiola no mistério.
		 Su Ian está sentada sobre a borda da janela no pequeno hotel em Le Betex, 
		suas pernas recolhidas contra o peito, tamborilando com as unhas 
		pintadas de vermelho o vidro da janela‑guilhotina. Lucien recorda‑se 
		de que os pés de Su Ian eram feios, moldados à pressa por um pasteleiro 
		aprendiz e desengonçado, que depreciava a aparência, embora valorizasse 
		o sabor e a consistência da massa. A carne do corpo inteiro de Su Ian, a 
		exemplo de seus pés, cedia à pressão dos dedos até um passo aquém da 
		flacidez. Uma tensão convidativa se impunha ao dedo invasor, 
		estabelecendo uma alquímica correlação entre a suavidade da pele, a 
		compressão dos dedos e a resposta física; agentes magnéticos entravam 
		em ação para que todo o corpo, inclusive o olhar de Su Ian, se 
		mantivesse sobre a linha divisória entre o estranhamento frígido e 
		inabalável e o acolhimento dócil e demoníaco; uma espécie de inércia de 
		combatente, que sabe explorar o ímpeto do opositor e transformar o 
		impulso do atacante em arma de defesa. Logo em seguida, eles estavam abraçados na neve, no Mont Joli, e Su Ian 
		acolhera Lucien em seu burnous branco, de modo que os dois quase que 
		desapareciam, confundidos com o branco da neve ao redor. – É o final dos tempos – lembra Lucien de haver ouvido Su Ian 
		dizer‑lhe; e desta vez ela sorria sem um enigma. – Você acha possível que tudo isto em volta de nós possa acabar de uma 
		hora para outra? – recordara Lucien de haver objetado em tom teatral.
		 Sua pergunta ecoara no espaço desabitado em volta. Lucien segurara as 
		abas do burnous de Su Ian, sacudindo‑a, como se tivesse tomado de 
		pânico. Depois, ainda experimentando o frágil script que imaginara, 
		Lucien se lembra de haver acrescentado: – Veja, Su, os pinheiros imóveis e o fumo que sai das chaminés das casas 
		ao longe, ouça o ruído das águas lavando o cascalho e as pedras dos 
		rios. Como é concebível agora, neste exato momento, admitir que tudo o 
		que aqui se encontra termine? Não parece que tudo está em seu mais exato 
		lugar? Lucien abrira os braços, num gesto que açambarcava tudo e Su Ian sorrira 
		sem conviccão. A seguir, recolheu os braços. Lucien repetiu a indagação que fizera, agora mais diretamente, o dedo 
		em riste sob a luva: – Como você pode crer que tudo isso termine, Su? É preciso estar repleto 
		de pessimismo. O corpo esguio de Su então se ergueu sobre os cotovelos. Su Ian deteve o 
		olhar na ponteira de suas botas. Depois, displicentemente, sem se 
		preocupar com aquela débil arma apontada contra ela como salvação de um 
		argumento, voltou‑se na direção de um grande galpão de madeira com 
		freixos e pinheiros ao redor, com aparência de absoluto abandono. 
		Depois, ainda, moveu o queixo para a esquerda, até deparar um telhado 
		avermelhado, de onde subia uma fumaça branca. Lucien retraiu o dedo e o 
		antebraço, percebendo que Su Ian não estava mais no jogo, e que seu 
		teatral dedo em riste apontava para o vazio. Lucien cedeu o corpo, atirou‑se de costas sobre a neve, colocou as 
		mãos atrás da nuca, fechou os olhos e ouviu nitidamente o gorgolejo de 
		água que detectara há pouco. Transcorreu algum tempo até que Lucien se pusesse de pé. Su Ian cruzara 
		as abas do casaco sobre o ventre, permanecendo imóvel sobre a cobertura 
		de neve. Adiante de Su Ian, algumas dezenas de metros encosta abaixo, pinheiros 
		volteavam uma tulha agregada a uma cocheira. Um filete de água escura 
		abrira uma canaleta na espessa neve e escavava o gelo pela borda, 
		correndo celeremente sobre o leito. As águas, pensara Lucien, pareciam 
		ser o único elemento vivo na estação hibernal. Lembra‑se também de que 
		baixou os olhos na direção de Su Ian, e os olhos dela não estavam 
		voltados para o mundo imediato. Encontrou a bandeja de comida, o último bocado de queijo, a garrafa 
		quase no fim. O imenso salão do refeitório estava praticamente vazio. 
		Da cozinha e da copa vinham frases incompreensíveis, bater de bandejas, 
		ruído de pratos; uma serviçal erguia as cadeiras sobre o tampo das 
		mesas, avançando metodicamente na direção de Lucien. Concentrou sua mente naquele quadrilátero de madeira no qual o corpo 
		inteiro de Su Ian se desenhara. À frente, o Mont‑Blanc. A leste o túnel 
		do Grand Saint‑Bernard. Ao sul, Curmayeur, mas antes dele, Entrèves. A 
		oeste, Saint‑Gervais e, mais adiante, Megève. A sudoeste, Notre‑Dame 
		de Bellecombe, Beaufort; Albertville e Chambéry; e, subindo sempre, 
		Annecy, Genève e o lago Léman.
		 Ele via agora, implantado sobre o quadrilátero de madeira da janela do 
		pequeno hotel de Le Betex, um mapa regional que, no entanto, não 
		encobria o vulto de Su Ian com os olhos fixos nos batentes da janela. Assim é que os olhos de Su Ian estavam à altura do lago Léman; seus 
		ombros à altura de Megève; seus quadris plantavam‑se em Grenoble, de 
		modo que suas longas pernas cruzavam Albertville e os joelhos infletiam 
		em Beaufort. As canelas de Su Ian passavam pelo burgo de St. Maurice, 
		Val D’Isère e o monte Cenis – e seus calcanhares em algum ponto antes de 
		alcançar Almese, talvez no caminho de Viù. Su Ian volta‑se para Lucien e diz: – Está próximo. O Japão será a nova Atlântida. Você e eu seremos 
		pássaros, voando sobre os Alpes, será o encontro entre Ocidente e 
		Oriente, você e eu. O Japão mergulhará sob as águas. Veremos as ondas 
		enormes que se formarão quando estivermos voando bem alto. 
		 Um filete dourado saía da ponta dos dedos de Su Ian, executava uma 
		parábola sobre o cume de um plátano e desaparecia atrás daqueles galhos 
		de nudez absoluta. Por um curtíssimo instante, o cepo da árvore ganha uma película 
		dourada, crepitante e macia. Su Ian volta‑se para Lucien e no centro da 
		palma de sua mão esquerda, que ergue aberta até a altura dos olhos, 
		Lucien visualiza uma esfera luminosa, às vezes branca, às vezes dourada, 
		às vezes vermelha, às vezes azulada. A esfera na mão esquerda de Su Ian 
		parece querer dizer alguma coisa, comunicando‑se através das cores que 
		cambiam em uma escala de cromos com intervalos desiguais e que se 
		repetem a um ritmo constante.
 Lucien fecha os olhos no canto da mesa do restaurante universitário, e 
		os olhos de Lucien se fecham no quarto do pequeno hotel em Le Betex. Su 
		Ian está dizendo algo com aquela esfera luminosa, mas ele não consegue 
		entender. Agora está ouvindo a voz de Su Ian, uma voz moldada de acordo 
		com o compasso ditado pela esfera colorida: vermelho, ao sol; azul, sob 
		o sonho; branco, amanhã; ouro, viagem.Deitado sobre o édredon da precária cama do albergue, ele abre novamente 
		os olhos. A esfera luminosa pisca a espaços: vermelho, azul, branco, 
		dourado: Su Ian diz sol, sonho, amanhã, viagem. Vermelho, ao sol; azul, 
		sob o sonho; branco, amanhã; ouro, viagem e muito mais.
 Lucien vê o rosto de Lucien comprimido entre os cotovelos. As mãos se 
		escondem atrás da nuca. Lucien tem as pernas esticadas e calça uma 
		botina de couro preta, de cujo salto desponta uma estalactite cinzenta. 
		Encostando o queixo no peito semiencoberto por um cachecol castanho e 
		vermelho, Lucien pode ver os pés, a biqueira de couro das botas. Mas 
		não se dá conta da estalactite cinzenta. – Estou com fome – diz Su Ian, ainda sentada sobre o parapeito da 
		janela, agora com um cálice de Calvados entre os dedos. – Nada de Atlântida, Su. Nada de bancarmos os pássaros – diz Lucien em 
		sua cadeira no refeitório agora inteiramente vazio. Interpondo‑se à sua voz de agora, Lucien rememora sua própria voz com 
		a empostação de dois anos atrás: – Vamos telefonar para Andrés e dizer que não vamos encontrá‑lo na 
		Suíça – dizia a voz de Lucien como um eco na cabeça de Lucien. O 
		companheiro de Su Ian, depois de haver pronunciado a frase, inclinara 
		sua cabeça para o lado esquerdo, na direção do pequeno lavabo do quarto. Recorda‑se ainda de que antes de formular o desejo de não mais ir ao 
		encontro de Andrés, preferindo a solidão do albergue em Le Betex, 
		entremeada por uma ou outra eventual descida até Saint‑Gervais para um 
		brandy com Wolf e Adèle, Lucien experimentara como era penoso, muitas 
		vezes, o ter de ingerir o discurso frio de Su, com seu verbo escasso e 
		pouco elucidativo, em meio ao contraste da embriaguez branca e lunar 
		daquela região.
		 Após alguns instantes em que a ideia de uma catástrofe a oriente chegou 
		a minar seu ocasional envolvimento com as coisas da natureza, Lucien 
		voltou‑se para Su, com o objetivo de encerrar o assunto: – Nada de mortes, Su, nada de Atlântidas, de pássaros apocalípticos, ou 
		sei lá mais o quê. É a humanidade que imola seu futuro, não um destino 
		impermeável à ação humana. Se quisermos, todos, evitar a catástrofe, 
		evitaremos. Lucien havia gostado da frase que construíra, até porque conseguira 
		imitar quase perfeitamente um oriental falando, lentamente, 
		inexpressivamente, quase como se tudo fosse sucumbir sob um lento 
		borbulhar de sílabas, e isso desconcertava Su Ian.
		 Depois então, e já que Su fizera um grande esforço para fingir que não 
		escutara absolutamente nada do que Lucien dissera, ele emendou, ainda 
		fazendo uso da modulação oriental: – Preciso de mais tempo aqui. Vamos telefonar para Andrés e dizer que 
		não vamos mais encontrá‑lo. Perdi inteiramente a vontade de esquiar. Não satisfeito com a forma como definira sua posição, voltou à carga: – A neve dos Alpes foi feita para a contemplação, mesmo que mórbida. 
		Apenas para isso. Decididamente não quero mais esquiar. 
		 – Andrés nos espera, Lucien – lembrou Su. – Para esquiar. Apenas para esquiar, e isso é muito pouco – retrucou 
		ele. – Você era um bom esquiador – respondeu Su Ian, retirando a perna 
		direita do esquadro da janela e apoiando a sola do pé no chão, enquanto 
		massageava a coxa. Ele recorda‑se de que a entonação da amante lhe parecera agradável, 
		quase escolar. Antes porém que Lucien pudesse cartesianamente verificar 
		como Su Ian pudera fazer aquela afirmação sem jamais tê‑lo visto com um 
		par de esquis nos pés, ela espontaneamente aduziu:
 – Andrés me disse. Su Ian está sentada no interior do esquadro da janela, imóvel, sem luz. 
		Sobre seu corpo plasmam‑se estradas e nomes de cidades. Fronteiras 
		cruzam seu copo. Os bicos dos seios, sob a roupa, róseos e perfumados, 
		não coincidem perfeitamente com nenhuma expressiva cidade no mapa que 
		de memória Lucien desenha agora, sobre uma das colunas que sustentam o 
		teto em arcos do restaurante universitário.Sobre a coluna surgem agora os rostos de Wolf, de Adèle, de Andrès, que 
		se juntam ao rosto de Su Ian, como numa fotografia em que cada um se 
		esforçou para ostentar o mais lúbrico e debochado desenho labial, sendo 
		que o restante do rosto não acompanhou a mímica, de modo que os lábios 
		de cada um deles parecem um estranho e caricato implante facial, uma 
		colagem mal realizada ou imprópria.
 Lucien concentra‑se em Su Ian. Ela aparece agora de corpo inteiro, 
		recostada na pilastra central do refeitório. O braço esquerdo apoiado 
		sobre o direito, ambos sobre o ventre; a perna direita cruzada sobre a 
		perna esquerda. Su Ian veste uma calça de lã grossa afunilada nos 
		tornozelos e com amplos bolsos laterais. Traz os cabelos sobre os ombros 
		e tem uma fita branca acima da testa. Seu pai, que era chinês, de Santai, 
		além de dar a ela o nome, deu‑lhe aquele porte e, muito provavelmente 
		ainda, aquele olhar, que sempre afrontava o horizonte. O resto, porém, 
		como o modo ambíguo de enfrentar a dor, ou o gestual minimalista e 
		preciso, pensa Lucien sem muita convicção, viera talvez da mãe japonesa.
		 A pilastra sobre a qual a imaginação de Lucien imprimira a imagem de Su, 
		agora traz um Mont‑Blanc, só que compactado, reduzido ao geometrismo da 
		pilastra, como se a montanha tivesse sido concebida por um deus criador 
		monótono, com a espiritualidade rasa de um pedreiro. – Andrés me disse que você esquia bem – diz uma vez mais a voz de Su, 
		agora emitida do interior da pilastra. Era desconcertante a maneira como Su repisava seu ponto de vista, 
		recorda‑se ainda Lucien. Sem dúvida contributo do lado chinês, que 
		realçava a independência e cultuava a personalidade. Su ressurge parcialmente à flor da cantaria, Lucien não enxerga seus 
		ombros, nem seus cabelos. Apenas uma parte de seu nariz curto e 
		arredondado aflora diminuto, empoado como o de uma cortesã oriental. Aquela visão cambiante de Su parecia a Lucien mais um jogo da amante, 
		que mesmo não estando a seu lado, conseguia armar arapucas em sua mente 
		e imprimir seu temperamento, mesmo no território da mais armada vontade 
		de Lucien. Só não era uma exímia jogadora, porque jogava sem consciência de que o 
		fazia. Assim mesmo, parecia aplicar‑se nessa tarefa ininterruptamente e 
		sem trégua. Com esse notável predicado, submeteu Lucien, sem 
		dificuldades, forçando‑o a jogar como eterno perdedor. E Lucien 
		deixava‑se conduzir pelo mundo congestionado de indagações ao vazio, 
		declarações obscuras, quase pérfidas, e que o francês tragava como 
		tragava seus gauloises em disputados cafés ao redor do Carrefour Odéon.
		 Assim, sem se dar conta, era envolvido pelas preleções escatológicas de 
		Su sobre a vida, sobre o furor do destino, sobre o refrigério da morte 
		oriental, sobre a decomposição do planeta para um novo nascimento – e 
		quando Lucien finalmente sucumbia, fustigado pelos acordes dissonantes 
		dessa música sem fugata, Su dava a Lucien a oportunidade de escapar 
		daquele beco sem saída. Franqueava‑lhe uma janela de onde se 
		descortinava um oásis. Ou simplesmente fazia desaparecer o muro que 
		interrompia o curso das coisas, como ao insistir em lembrar a Lucien que 
		ele esquiava bem, para assim fazê‑lo recobrar a lembrança do 
		encantamento e da magia dos momentos de seu passado que lhe foram 
		gratos. Com tais procedimentos, Lucien tornava‑se presa fácil para Su Ian, que 
		o retirava do cotidiano parisiense e sem piedade o acorrentava a seu 
		mundo.
		 Ali, a estudada e sufocante prosopopeia de Su, temperada de ímpetos 
		ocidentais, que também formulava em benefício de salvaguardar o carisma 
		do gen chinês, dava lugar a um vernáculo econômico, árido, erigido 
		sobre a pedra do silêncio, haicai jamais escrito. Desde essa nova perspectiva, o corpo de Su, ao mesmo tempo 
		anatomicamente oriental, esguio, quase esquálido, mas firme e dengoso, 
		se tornava então o eixo momentâneo em redor do qual a energia de Lucien 
		gravitava e se dissipava. Nesses encontros, muitas vezes Su Ian retinha o corpo de Lucien junto 
		ao seu – e ambos naufragavam, paralisados durante horas em uma absoluta 
		inércia física. A mente de Su assemelhava‑se a uma bateria sendo 
		carregada sem pressa. Seu cenho se contraía, e se o pensamento de Lucien 
		fosse uma mosca, esta não atravessaria incólume o território de força 
		que a jovem oriental soubera edificar para tornar ainda mais grave sua 
		soberania. A imagem da companheira do passado mergulha novamente na cantaria da 
		pilastra do restaurante universitário. Restam as coisas sólidas, 
		presentes: o ruído de copos e louça triscada, a luminosidade quente, 
		opressora e imobilizante que torna o panorama do campus, visto através 
		das janelas do refeitório universitário, tão definitivo e monumental; 
		resta o chamamento das ruas, convocação do mundo. Lucien sente‑se pesado, abandona sua vista em uma coluna mais ao fundo, 
		sobre a qual cresce uma sombra violácea. Subitamente se lembra de que 
		no auge do inverno aquela coluna, a essa hora, estaria já inteiramente 
		mergulhada numa tintura acinzentada. Agora, entretanto, nesses dias de 
		abril, prenunciadores da primavera, a luz impregna mais longamente os 
		esmaltes, e mais lentamente escorre para a noite. À sua frente, o gramado vazio, uma realidade em suspensão, inconstruída, 
		impessoal. Volta a pensar em Su Ian. Misturado ao gosto adocicado 
		deixado pelo vinho, Lucien filtra com esforço o olor denso das narinas 
		da oriental, recolhe a textura porosa e réptil da língua da amante 
		rolando no interior de sua boca, contorcendo‑se ágil num dueto com sua 
		própria língua, recuando estrategicamente para logo depois voltar a 
		pulsar, projetanto‑se para depois retroceder e se aninhar no centro da 
		boca, agora à espera de que o pas‑de‑deux recomece.
		 É inútil; advém um sabor amargo, deliquescente e estéril – e Lucien por 
		instantes reconhece que escapar de Su Ian fora também extirpar o risco 
		de perder sua identidade e seus objetivos mais íntimos. E que persistir 
		no isolamento, no afastamento dela – embora minado por contundentes 
		imagens de uma convivência quase improvável agora –, era afastar do 
		centro de sua vida um fator de desequilíbrio. Ademais seu traço francês 
		fustigava‑o, acicatava‑o como um avozinho impaciente, ansioso por 
		encontrar no neto as marcas do ancião; e essa vertente de seu caráter, 
		quase sempre dominante, não tinha qualquer piedade para com semelhante 
		miscigenação; e tanto isso era verdade que, sabedora disso, Su Ian, com 
		tato e empenho obstinado, delicadamente mas com certa ousadia e 
		atrevimento, vinha procurando minar, abalar as certezas civilizatórias 
		que ornamentaram o berço de Lucien Sorel, com seu sobrenome stendhaliano, 
		mas tradicionalmente anticlerical e materialista. Tanto era assim que a contrapelo de seu caráter oriental, zeloso, 
		pudico e reservado, a companheira oriental por vezes ostentava, dir‑se‑ia 
		para desconcertá‑lo mais, ares parisienses, brandindo uma quase cômica 
		indiferença para com o que se movimentava imediatamente à sua volta, e 
		demonstrando uma ingênua e quase infantil preocupação com o que não lhe 
		dizia de modo algum respeito. Quando assumia a primeira postura, a pele 
		de Su Ian ganhava a textura de uma máscara de porcelana, e sua expressão 
		corporal refletia a contento o novo papel. Com o tórax imóvel, dando 
		mostras de que o espírito se cansara da mesmice daquela vida; a região 
		lombar afundada na cadeira do café, à maneira da rive gauche, as pernas 
		cruzadas e o joelho despontando irreverentemente do mantô, Su parecia 
		uma francesinha adolescente, cansada de ser protegida.
		 Nesses momentos, Su Ian cuidava com esmero que o mármore dos olhos 
		permecessem sempre indefinidos; a retina, insensível para o mundo, 
		enquanto o café, sorvido no máximo até a metade, esfriava 
		inapelavelmente na xícara. Quando, todavia, entretinha‑se com aspectos 
		exóticos, distantes da vida parisiense, como amiúde faziam suas 
		colegas, tratava deles como se integrassem seu cotidiano e postulava, 
		como convinha ao modelo, bizarros proselitismos e sectarismos 
		descabidos. Era contudo de raro em raro que Su assumia essa última 
		atitude, preferindo, na maior parte das vezes, o primeiro papel.
		 Lucien exasperava‑se todo o tempo com os alentados silêncios de Su, com 
		sua caricata encenação da decepcionante fragilidade dos franceses, que 
		quando ousavam não se pronunciar, simulavam reter entre os lábios um 
		conceito definitivo e espirituoso sobre a existência, conceito esse que 
		seria emitido em momento mais oportuno, quando ouvidos tarimbados e 
		atentos dele pudessem verdadeiramente se beneficiar. Tal fragilidade 
		caíra como uma luva na arrogância chinesa de Su Ian, e ela sem esforço a 
		incorporara como estratégia de defesa, de modo que Lucien não sabia 
		mais se deveria ouvir a voz avoenga da raça ou fazer coro para o 
		desempenho da amante – ou, ainda, largar todos os conflitos debaixo do 
		pires do garçom e escapulir para o studio sem móveis, onde habitou antes 
		de se mudar para a Rue Berthollet. A vontade de escapulir da mise en scène dos cafés se manifestava nele. 
		Lucien recolhia o maço de cigarros e o isqueiro, empurrava o pires com 
		o dinheiro para o centro da mesa, passava em revista a cadeira onde 
		sentara e num arranco atabalhoado, como alguém que tivesse se libertado 
		de um escafandro, punha‑se de pé, acenava na direção de Su Ian, dando 
		adeus a tudo aquilo, e avançava para a calçada. Su, incontinenti, 
		saltava por sobre o álgido muro que ela própria erguera em sua 
		planificada impassividade e se punha também de pé, sem consultar se 
		Lucien queria tê‑la a seu lado.
		 Com tantos atributos, não era difícil para Su Ian municiar os cordéis da 
		trama amorosa, apesar de não haver jamais previsto que o relacionamento 
		entre eles, ao qual talvez desse um nome mais sólido e mineral, tivesse 
		um fim. Há sempre um outro lado da questão, e, a seu modo, Su Ian dependia 
		intensamente de Lucien para poder sobreviver em território inimigo e, 
		ao mesmo tempo, cultivar alguns princípios de raiz, que destilava com 
		perícia, sem ser molestada por isso.
		 Inegavelmente, Lucien concedera‑lhe um espaço de manobra generoso, e a 
		oriental alargara suas fronteiras e se instalara sem ruído, sem 
		violência, sem causar alarme.
		 Numa manhã em que descera no metrô Trocadéro, e caminhara na direção do 
		apartamento dos pais, na Avenue Georges Mandel, Lucien chegou a se 
		comprazer com a súbita constatação de que Su Ian também dependia dele; 
		de que ela não era tão independente como seus modos davam a entender, 
		mas essa descoberta era tardia e inútil. A despeito de diversas constatações acerca de ambos, a ausência de Su 
		Ian era por vezes opressora, ainda mais porque Lucien admitia que havia 
		falhado com Su Ian, ou, melhor, que havia falhado pour cause de Su Ian; 
		e que sobretudo havia falhado com ele mesmo.
		 O refeitório da Cidade Universitária Internacional estava prestes a 
		fechar. Lucien abandonou novamente o olhar sobre o gramado do campus, 
		onde agora, aqui e ali, surgem, aos pares, jovens que iniciam suas 
		tarefas do período da tarde. Esses sintomas de atividade lembram a Lucien que é o momento de sair 
		dali. A garrafa de Gamais está quase vazia sobre a bandeja. As cadeiras 
		vão sendo erguidas e emborcadas sobre as mesas.
		 A primavera subitamente parece‑lhe sufocante e Lucien sente‑se 
		confundido em seu próprio estratagema de embaralhar vozes, diálogos, 
		tempos, no intuito de manter acordada a percepção sobre o fluir dinâmico 
		da vida. De qualquer modo, o resultado de seu pequeno esforço é 
		medíocre. Findo o repasto, iniciada a digestão dos alimentos ingeridos, 
		uma sonolência sem virtude dilui as imagens mentais e toma conta de 
		Lucien Sorel, que se ergue da mesa e se afasta com a bandeja na direção 
		do balcão de serviço, não sem antes inspecionar, como de hábito, a 
		cadeira onde se acomodara há pouco.
		 
 São onze horas da manhã. Antes de alcançar a esquina da Rua Almeida e 
		Souza com a Praça da Quarta Parada, Manoel vê passar, quase ao alcance 
		das mãos, o autocarro que o levaria ao Largo do Rato, onde tomaria 
		outro, para Entrecampos.
 São onze horas da manhã e justamente quando seu coração se agita ao ver 
		seu transporte seguir em frente, sem sequer parar no ponto, encontra‑o, 
		vindo em direção oposta, o Sr. Albano Aires, seu pai, que se posta à 
		frente, de forma tão decidida e grave que parecia, com efeito, pretender 
		a qualquer custo barrar‑lhe a passagem. – Perdi o autocarro – diz Manoel, como se pensasse em voz alta e 
		estivesse desamparadamente sozinho em Lisboa. Seu pai não lhe dá ouvidos, e não demonstra interesse pelo fato. Com as 
		gordas mãos enfiadas no jaleco do bar, interpela‑o: – Não me faltes à tarde. Vossa mãe ausenta‑se algumas horas após o 
		almoço. Quero‑te de mãos limpas a atender ao balcão dentro de duas 
		horas. – Sim, sempre afirmei‑te que sim – respondeu o ex‑jogador do Benfica, 
		em um tom de quem se sentira melindrado. – Se tu me faltas, é que são elas – acrescenta o Sr. Albano antes de 
		continuar em seu passo afogado, de pernadas curtas e nervosas, como se 
		estivesse a ponto de correr e uma força estranha, uma espécie de pudor, 
		o obrigasse a apenas andar. Manoel não retrucou, nem acompanhou com os olhos o tronco socado 
		daquele homem, tão parecido com o seu, afastar‑se na direção do Bar e 
		Tabacaria da Quarta Parada, estabelecimento do outro lado da rua, onde 
		dona Maria Luíza Carvalho Souza, naquele exato instante, passava um 
		pano úmido sobre um tampo de mármore de uma das mesas do salão. Ele estava melhor quando por sua conta e risco se acomodara no 1o andar 
		daquele residencial próximo ao Jardim da Estrela, pouco acima do 
		parque, em um cômodo com janelas voltadas para o oitão de cima, de onde 
		aos finais de semana ouvia o rilhar de ferros do 28, que tomando embalo 
		na Saraiva de Carvalho trazia visitantes do Cemitério dos Prazeres, ou 
		que, saindo da Graça, passava por São Vicente, Santa Luzia, Chiado, São 
		Bento, recolhendo e redistribuindo, com parcimônia e pouca pressa, 
		ociosos em apertados trajes domingueiros.
		 Ao menos ali, na Pensão Estrela, não era forçado a enfrentar a 
		curiosidade maledicente dos velhos conhecidos seus e de sua família, que 
		volta e meia o obrigavam a relembrar sua última e desastrosa 
		apresentação como goleiro do Benfica, quando o país inteiro, exceto seus 
		pais e o oculista, que já o sabiam, tomou conhecimento de que Manoel 
		tinha uma deficiência visual grave. De fato, as paredes encardidas, o roto cortinado das janelas, o ranger 
		do piso ao mais leve movimento, numa sinfonia intérmina que povoava o 
		casarão em todas as horas, sinfonia essa executada com um acompanhamento 
		de tosses catarrentas e vozes a meio‑tom, pareciam‑lhe, agora que por 
		conveniência voltara à casa paterna, algo muito mais suportável do que 
		a rotina familiar dos Souza Aires. Sabia, contudo, que regressara por pouco tempo, e o fizera não pela 
		necessidade de aliviar as despesas, e mais, muito mais, porque sentia 
		que era preciso regressar e arrancar com as próprias mãos as raízes 
		plantadas no solo paterno. E era melhor fazer com força, de uma vez, 
		como estava fazendo, do que deixar que apodrecessem lentamente. De outra parte, sua resolução de regressar à casa paterna fazia‑o por 
		algum tempo mais jovem, como se jamais tivesse passado pelo amargor que 
		o futebol lhe trouxera. 
		  Residindo por alguns dias com os pais no andar da Almeida e Souza, 
		trabalhando a poucos metros dali, no café paterno; fazendo suas 
		refeições ao pé do balcão, beliscando um rissol, furtando discretamente 
		uma e outra cerveja do frigorífico, iria experimentando a vida que 
		quase teve quando muito mais jovem; quando ainda não se 
		profissionalizara no futebol. E Manoel se sentia quase como um 
		colegial, como esses que se empregam temporariamente para fazer uma 
		pequena economia, ou poupar parte do dinheiro para alguma aventura 
		secreta. Para completar a encenação, os proventos de seu trabalho 
		chegavam‑lhe com dissimulada má vontade pelas mãos de Seu Albano, todos 
		os domingos, pontualmente, em um envelope pardo. Era um pagamento 
		modesto, que Manoel muitas vezes recebia sem conferir, abandonando o 
		envelope sem abrir na gaveta do criado‑mudo de seu quarto.
		 Já estava nisso há dois meses, mas parecia muito mais. No jaleco que 
		habitualmente vestia, e que o tornava, diga‑se de passagem, mais 
		parecido com o pai, Manoel mantinha, por zelo e sigilo, certa 
		correspondência, da qual não se apartava. Vez por outra, quando o balcão 
		ficava vazio e não havia ninguém por perto, extraía, de um envelope 
		guardado no bolso esquerdo superior, uma folha de papel muito amassada e 
		que já principiara a se rasgar na dobra central.
		 Furtivamente lia um e outro parágrafo, relia e treslia certas passagens. 
		Ali, em um inglês quase literário, o autor, que apenas assinara J. B. 
		H., dizia‑lhe como e por que concebera o jogo de Dublin e também lhe 
		explicava que a ficha com seu nome fora selecionada dentre muitas 
		outras, e fazia parte de um acervo da empresa Irish Ferries que 
		continha o nome de consulentes em busca de informações turísticas sobre 
		a Irlanda.
		 Na ficha da companhia, Manoel declarara compreender e falar o inglês, 
		por força de haver jogado na Liga Inglesa. Isso chamara a atenção do 
		missivista, uma vez que o domínio do inglês era imprescindível em seu 
		plano. Só assim cada participante iniciaria o jogo com as mesmas chances 
		de sucesso. O fato de Manoel ter 31 anos completos, observou ainda o 
		missivista sem maiores explicações, era fator decisivo, e favoreceu 
		grandemente a escolha de seu nome e o posterior convite de participação. 
		Mas o autor da carta alertava: o jogo de Dublin não seria fácil, não 
		bastaria resolver com sucesso todas as charadas, decifrar as armadilhas, 
		interpretar os múltiplos enigmas propostos. Seria imprescindível, para 
		que o jogador tivesse direito à recompensa, demonstrar especiais 
		talentos.
 O ex‑jogador arrasta‑se até o ponto de autocarros. De onde se encontra 
		enxerga um pedaço da praça, os táxis verde‑pretos estacionados no 
		ponto, defronte justamente do estabelecimento da família. Daquele ponto, 
		mas mais próximo do centro da praça, alguém gesticula, apontando em sua 
		direção. Será alguém que o conhece e de longe o está saudando, ou o 
		gesto é para outrem?
 O Autocarro 18, que vai para Chelas, para no ponto. Àquela altura do 
		trajeto, ainda se encontra vazio de passageiros. Manoel sobe os 
		degraus do ônibus. Mostra seu bilhete de assinatura mensal ao 
		motorista e atravessa o corredor até um assento próximo à última janela, 
		na parte traseira do autocarro. Com certa relutância, ergue os olhos à 
		procura do passante que acenara em sua direção, mas não o encontra mais.
		 Quando o ônibus recomeçou a circular, Manoel retirou os óculos de grau 
		do rosto, esfregou os olhos com a ponta dos dedos, massageou o nariz e 
		voltou a colocar as lentes em seu lugar. Ainda uma vez refletiu sobre o 
		aceno do meio da praça. O homem que gesticulara tinha estatura média, 
		era obeso e vestia um chapéu negro enfiado na cabeça. Apesar da 
		distância, pareceu a Manoel que o transeunte trazia o chapéu inclinado 
		para o lado, como o fazia Mário de Sá‑Carneiro. No Largo do Rato, há uma confusão à porta de uma papelaria. Ao redor de 
		dois homens, atracados numa dupla chave de pescoço, curiosos em cerco 
		instigam os contendores.
		 Manoel avança até a escada do autocarro. De qualquer modo, o ex‑jogador 
		deve descer ali e fazer uma baldeação. Quando está prestes a descer o 
		primeiro degrau, vislumbra o rosto avermelhado de um dos contendores. 
		Parece o Bombarda, diz para si, sem saber se o socorre, ou se ignora a 
		porfia.
		 O mostrador do relógio de pulso do ex‑jogador marca 11h20. Tem um 
		encontro às 12h45, no portão principal do Estádio da Luz, com um 
		jornalista do Diário de Notícias; um almoço, em troca de uma 
		entrevista, provavelmente com fotos. A ideia da entrevista 
		incomodava‑o um pouco, e Manoel relutou alguns dias até assentir em se 
		encontrar com o Paiva, mas deixar‑se fotografar decididamente não o 
		agradava; preferia manter seu rosto fora das páginas esportivas.
		 Com ou sem fotos, a questão estava posta. O que fazer agora? Ser pontual 
		em seu compromisso, deixando o amigo para trás, em apuros, ou ficar e se 
		atrasar? Se fosse apartar a briga, perderia com certeza a hora. Além do 
		mais, detestava apupos; temia ser reconhecido por algum torcedor de boa 
		memória.
		 No entanto, Bombarda estava ali, não poderia haver dúvida, se alguma 
		dúvida ainda persistisse na mente de Manoel; um dos brigões, justamente 
		o que parecia estar em desvantagem, era o seu colega do liceu, com quem 
		conversava sobre poesia e de quem se afastou quando supôs que o relvado 
		do futebol era mais macio e promissor que a estrada marginal, sem 
		asfalto ou sinalizações de percurso, reservada aos poetas. Bombarda 
		também não persistiu na poesia, embora continuasse a fazer versos até 
		hoje, mais como higiene espiritual do que por profissão de fé. Em vez da 
		penosa obra de construção e lapidação do verso, engajou‑se na indústria 
		de ferragens de seu pai, e lá ficou, como uma edição nova, mas 
		falsificada, de Cesário Verde. Por acaso, o departamento comercial da 
		empresa do Sr. Bombarda, pai, era na Rua dos Fanqueiros, justamente onde 
		aquele outro pai, o de Cesário, tivera um dia seu negócio de ferragens. Mas agora não estava em jogo o mal aproveitado vezo poético de Bombarda, 
		e sim a dignidade que a custo, difusamente, em seu rosto os que estavam 
		no anel interior do tumulto mal podiam vislumbrar agora.
		 Com a vista esquerda intumescida, e com sangue escorrendo do nariz e da 
		junção do lóbulo da orelha com a face, o colega de liceu de Manoel 
		parecia entregue à fúria do oponente, que não obstante continuava a 
		acertar‑lhe murros ora no estômago, ora no rosto. Do instante em que Manoel pisou o primeiro degrau da escada do ônibus, 
		até o momento em que decidiu intervir diretamente na batalha, o rosto de 
		Bombarda havia se transformado em uma posta de sangue. Não haveria 
		muito mais tempo para salvá‑lo embora de onde estava agora, já no plano 
		da rua, Manoel não pudesse mais enxergar o amigo, cuja visão se escondia 
		atrás de uma valorosa barricada humana. Por esse motivo, deixou de 
		presenciar, estampado no rosto de Bombarda, o sentimento de humilhação e 
		vergonha que com suas últimas forças conseguiu por instantes deixar 
		transparecer, antes de perder os sentidos.
		 Com determinação, dando‑se conta de que algo muito grave estava para 
		acontecer, enfiou os óculos no bolso do paletó, e avançou como um 
		desbravador para o centro do tumulto. No caminho, aos repelões, foi 
		extraindo e atirando longe ombros e braços daquele estranho corpo vivo 
		em agitação, como alguém que arrancasse, com ímpeto e precisão, coxas e 
		asas de um frango assado, de forma que logo chegou ao coração, ao 
		epicentro do embate. Quando finalmente acercou‑se dos lutadores, encontrou o amigo 
		desfalecido, sem reação, à mercê do rival, que o mantinha ainda preso na 
		chave de braço. Manoel não vacilou, e com o punho esquerdo desferiu um 
		golpe cruzado contra a lateral direita do rosto do oponente. Em seguida, 
		quando o rival, surpreso com o golpe, afrouxou o laço fatal que prendia 
		a cabeça de Bombarda, buscando aprumar o tronco, Manoel, prontamente 
		acertou um direto em seu queixo, que o levou à lona, onde o amigo 
		despencara um segundo antes. Todavia os apupos, que em sua maioria revelavam um sentimento de júbilo 
		pela demonstração convincente de animalidade dos competidores, ao invés 
		de diminuir após a intervenção decisiva de Manoel cresceram 
		enormemente. O que acontecia era que o organismo vivo, que se desenvolvera até ali 
		alimentando‑se do sangue dos desavindos, não recebia bem o invasor. O 
		cerco parecia se fechar sobre ele, para assim expurgá‑lo, como célula 
		doente de um organismo que queria voltar ao estado dinâmico 
		imediatamente anterior.
		 Um tipo raquítico, barba branca por fazer, cabelo espesso nas ventas e 
		um pano vermelho no pescoço, espalmou‑lhe as costas. – Vai‑te daqui, homem! Em seguida, desferiu um murro à traição, embora sem resultado prático.
		 Quando Manoel se voltou, o sujeito não estava mais ali, havia escapulido 
		na direção da Rua de São Bento. – Baderneiro – gritou‑lhe alguém perdido em um dos anéis humanos que o 
		circundavam. – Covarde – ouviu de um rosto bexiguento, plantado sob um chapéu de 
		feltro de abas caídas, que despontou um palmo acima de sua cabeça. Tal 
		opinião a maioria dos presentes, de uma forma ou de outra, 
		compartilhava, convencidos estavam de que Manoel estragara a festa, 
		roubando‑lhes o entretenimento. Sem tempo para pensar, Manoel desferiu uma direita contra a testa do 
		porta‑voz, que foi despencar sobre duas senhoras que engrossavam o anel 
		intermediário de cabeças. No deslocamento do tronco, o porta‑voz 
		atingiu com o cotovelo o rosto do condutor de um elétrico que, movido 
		pelos mesmos nobres instintos dos que ali se encontravam, havia largado 
		seu posto e atravessado todo o largo, posto que se dirigia aos Prazeres, 
		deixando em imobilidade desesperadora o bonde com seus passageiros e 
		compromissos vários, já agora adiados, e se enfiara no meio do tumulto, 
		com seu espírito dividido entre dois sentimentos ambíguos: o de 
		engrossar a assistência, e o de apaziguar os ânimos. Do elétrico sem o condutor ouviam‑se vozes exaltadas, de pessoas para 
		as quais o tempo tinha alguma importância. Outras ameaçavam descer, 
		tomadas pela curiosidade, que era mais premente que o futuro. No 
		entanto, acicatadas pelo receio de perder o direito já adquirido de 
		transporte, hesitavam entre saltar à rua e permanecer espojadas sobre os 
		bancos. Assim mesmo, alguns passageiros desceram, ofegantes e comovidos; foram 
		os primeiros. Logo em seguida o mesmo se deu em outros pontos de paragem 
		do largo, de tal sorte que os transportes coletivos foram sendo 
		esvaziados de seu conteúdo, e quase todo ele era vertido sobre o foco de 
		interesse maior, defronte da papelaria. Os automóveis, que normalmente cruzam o Rato com certo vagar, uma vez 
		que em meio a autocarros estacionados, elétricos em lenta manobra e 
		gente comprimida às portas dos coletivos, agora não avançam mais. No 
		Rato, já são vistos alguns motoristas com seus engenhos desligados; 
		outros, agastados, parecem não acreditar no que veem e mordem o cigarro 
		aceso entre os dentes, estapeando a direção em sinal de protesto. Os 
		mais atrevidos já abandonaram seus automóveis e se dirigem ao centro do 
		conflito. Engrossam os anéis humanos, ao redor dos pelejadores, 
		representantes de praticamente todos os andares do edifício social.
		 O congestionamento alcança as artérias que costumeiramente alimentam o 
		fluxo através da praça; na Braancamp, na Álvares Cabral, na Rua de São 
		Bento e na da Escola Politécnica, o trânsito está totalmente paralisado 
		na mão de direção de quem se dirige ao Rato. Ao longe, sirenas ouvem‑se, perdidas no engarrafamento, emulando com a 
		orquestração de buzinas dos arredores, sem que contudo surgisse um só 
		representante da lei e da ordem. 
		 No núcleo difusor de tudo, os contendores são sacudidos pela 
		assistência, que não se conforma com o aparente encerramento do 
		espetáculo. O oponente de Bombarda, após os murros de Manoel, 
		desmontou‑se de seus propósitos, e agora jaz combalido ao colo de uma 
		conhecida frequentadora do largo, que ganha ali sua vida apregoando 
		cautelas e revistas velhas, envolta em surrobecos gastos. Bombarda começa a acordar agora e, embora ainda estirado sobre chão 
		frio, consegue aos poucos se recobrar, em seguida aprumar o tronco e 
		abrir um dos olhos, sob as vistas do condutor do elétrico que recebera a 
		cotovelada involuntária no rosto, aplicada pelo homem grande de rosto 
		bexiguento. O contendor derrotado procura decifrar o que está acontecendo a seu 
		redor. Quando vislumbra com dificuldade o corpanzil do marido traído por 
		Leocádia, no colo da cauteleira Floripes, se anima e diz com voz 
		abafada: – Cabrão. A turba se agita com essa palavra mágica. – Olhem o safado, ainda está vivo – diz um sujeito que tomou o partido 
		do marido chifrudo, contra o amante. Antes, porém, que as coisas piorassem ainda mais, Manoel agarrou com as 
		duas mãos as abas do paletó do amigo e num golpe, como se este não 
		passasse de um saco de farinha, atirou‑o sobre suas costas e, forçando 
		aos trancos e barrancos sua passagem, conseguiu romper um a um os anéis 
		humanos de curiosos. Tomou a Rua de São Bento e, vertiginosamente, sempre a descer, foi 
		carregando o Bombarda sobre os ombros por dois quarteirões, até que, 
		não suportando mais o esforço, entrou na primeira porta aberta que 
		encontrou. Era uma tasca. Ali, numa cadeira a um canto, pousou o antigo colega de 
		liceu, que só agora o reconhecia, encarando‑o com aquele único olho 
		viável. – Mas és tu, ó Manoelzinho! – Não me chames assim, sabes que não gosto – repeliu o ex‑jogador, 
		tentando retomar o fôlego. Manoel retirou seu par de óculos do bolso e firmou‑os sobre o nariz. 
		Agora via bem o estrago que o marido de Leocádia fizera no rosto de 
		Bombarda. Confere o mostrador do relógio de pulso. Tinha apenas alguns minutos 
		para ir ao encontro de Paiva 
		– Estou muito mal? – perguntou‑lhe o outro, agora procurando um lenço 
		no bolso do paletó, para passar em seu rosto. E sem aguardar a resposta, aduziu: – Pedes água, para que possa umedecer um lenço, faz favor. – Está bem – disse‑lhe Manoel, vendo‑o extrair o quadrado de alva 
		cambraia do casaco. – E eu? – insistiu o amigo, comprimindo com a palma da mão o antebraço 
		de seu defensor. – Estou muito mal? Dize francamente, Manoel. – Estás. Estás deveras mal – responde‑lhe Manoel, já arrependido de se 
		haver envolvido na briga. Contudo, ao invés de sair e largar o amigo ali, cuidando de seus 
		ferimentos e de seu orgulho, deixa‑se ficar e pede um copo de água e 
		duas cervejas ao encarregado da tasca. – Espero que o moço traga rápido. Tenho uma entrevista em instantes – 
		diz Manoel. – Mas o que é que fizeste para merecer tantos carinhos? – 
		acrescentou, tentando sorrir. – Tu te feriste? – indaga Bombarda, como se não tivesse ouvido uma só 
		palavra do amigo, enquanto enfiava a ponta da cambraia no copo que o 
		garçom lhe trouxera. – Estou bem, apenas os nós dos dedos incomodam‑me um pouco. Mas vamos 
		aos fatos: em que enrascadela te meteste? – Tive um caso com a mulher daquele cabrão. Ele ficou sabendo. É só 
		isso. Mas valeu a pena. Manoel avalia as palavras do amigo, depois coloca as mãos em paralelo, 
		sobre o tampo da mesa. Deixa os dedos esticados e abertos e abaixa os 
		olhos como se os fosse examinar clinicamente.
		 Bombarda retira de sobre o olho esquerdo o emplastro improvisado que 
		fizera com o lenço e imita o gesto do amigo, projetando o corpo sobre a 
		mesa e encarando com consternação as falanges do outro. Seu defensor sente a respiração irregular e sobretudo desagradável de 
		Bombarda, com as narinas tão próximas assim do dorso de suas mãos. Manoel recolhe o braço e recua o tronco, comprimindo‑o contra o 
		encosto da cadeira.
		 Entorna o líquido da garrafa no seu copo, e no de Bombarda. 
		 – Não te preocupes. Estou bem. Tu é que deves te consultar com algum 
		médico. Nunca se sabe – diz Manoel. – Claro, naturalmente, mas antes de mais nada apetece‑me brindar e 
		agradecer a presença tão prestante do amigo, que salvou a vida daquele 
		cabrão do marido de Leocádia. Dizendo isso, Bombarda segurou o copo de Sagres e ergue‑o à 
		meia‑altura, sorvendo‑o de um trago, não sem simultaneamente gemer 
		baixinho, enquanto bebia, acusando os ferimentos nos lábios. Manoel 
		imitou o gesto. – Efetivamente não posso ficar mais – diz Manoel, jogando sobre a mesa 
		uma nota de cem escudos. – Ao menos deixa que eu pague – apressa‑se em dizer Bombarda, 
		devolvendo a nota ao amigo. Em seguida, disse‑lhe: – Dá‑me a direção de tua morada. Sempre estás em Saldanha? – Não, isso foi há muito tempo. Morei em outros lugares depois – 
		responde Manoel, recolhendo o dinheiro e enfiando‑o no bolso. – Agora 
		resido com meus pais, no Campo de Ourique, mas é por poucos dias mais. A 
		bem da verdade, horas. – Na velha morada, do tempo em que estudávamos juntos? – Sim. Essa mesma. Aparece para uma visita. Meus pais gostam muito de 
		ti. – Está bem, lá ir‑vos‑ei ver. Mas deixa que me entenda com o moço 
		sobre a conta – insistiu Bombarda ao ver que o amigo fizera novamente 
		menção de pagar. Ao ver o ex‑jogador se distanciar da mesa, Bombarda disse ainda: – Sabes de uma coisa? Apesar de tudo, tinha piada ver‑te jogar – e 
		soltou uma risada com a parte da boca menos danificada, servindo‑se em 
		seguida da outra garrafa de cerveja que ficara intacta sobre a mesa. Manoel não falou mais nada. Acenou apenas, ganhado a calçada e a luz do 
		dia. Naquele exato instante, descia um dos integrantes da malta que 
		assistira à briga. Por estar ainda engasgado com as últimas palavras que 
		o Bombarda dissera, Manoel não reconheceu o outro, com quem cruzara 
		logo que desceu do autocarro no Largo do Rato. Por sua vez, o tipo, 
		embora tivesse assistido a toda a cena, também não reconheceu o protetor 
		de Bombarda, quiçá por conveniência, quiçá por causa das lunetas que 
		Manoel agora estava usando, e que davam ao ex‑jogador do Benfica um ar 
		de conciliadora gravidade. Suas têmporas latejavam após o desforço físico de há pouco. Olhou 
		novamente no relógio. 12h35. Se fosse de autocarro à entrevista com 
		Paiva, teria que tomar dois. Mas para fazê‑lo, teria de subir ao Rato, 
		novamente. De lá, tomaria o primeiro deles, que o deixaria em 
		Entrecampos, e ali tomaria outro para o Estádio da Luz. No entanto, 
		refletiu, voltar ao Rato não era aconselhável.
		 A poucos metros da tasca, no sentido da Calçada da Estrela, Manoel 
		decidiu parar um táxi e entrou nele. Um sol de primavera infletia sobre as vidraças e os metais. As pessoas, 
		mais despidas, caminhavam atirando braços e pernas para o ar, 
		diferentemente do úmido inverno lisboeta, quando todos sentem nos ossos 
		a frialdade e o povo andava pelas ruas com o queixo enfiado no tórax. Do assento traseiro do veículo, Manoel se dá conta da intensa 
		luminosidade daquele dia. Começa já a fazer calor em Lisboa, embora mal 
		tivesse começado oficialmente a primavera. Os olmos e os cedros da 
		Praça Real já ensaiam as roupagens da nova estação. Alguns tímidos 
		beberrões sentam‑se já nas mesas ao ar livre da praça. Quando cruzou a Faculdade de Ciências, a luz parecia reverberar com 
		mais força sobre os muros e paredes brancas do casario, ofuscando seus 
		olhos e seu pensamento. O vento ligeiro e álgido da manhã se diluíra 
		numa brisa suave e quase morna, que trazia a reboque o olor ácido da 
		maresia. Manoel procurou organizar suas ideias, concluir apressa-damente um 
		balanço do encontro estapafúrdio que tivera com Bombarda, e ao mesmo 
		tempo entender seu próprio ato de violência, disfarçado em gesto de 
		compaixão para com um colega de infância. Sobretudo porque nesse 
		incidente de há pouco, havia muito mais do que um ato de legítima defesa 
		do mais fraco; havia talvez uma espécie de resposta contra a opinião 
		pública, contra os que escarneceram dele sem piedade, e que se 
		esqueceram de todos os anos em que defendeu as traves do Benfica; em que 
		honrou a camisa jogando no exterior, para condená‑lo por um único lance 
		de um jogo.
		 Além do mais, como se não bastasse tudo isso a mente de Manoel 
		agitava‑se no sentido de desvendar quais eram as intenções de Paiva. 
		Qual o porquê de tão repentino interesse por ele, passados três anos de 
		ostracismo completo, em que sobre o Manoelzinho do Benfica não se 
		escreveu uma só linha, nem se formulou, na imprensa televisiva, um só 
		comentário, mesmo que breve?
		 Foi um período em que sequer teve como consolo o suporte, mesmo que 
		discreto, dos colegas de profissão. Nem mesmo sua família importou‑se 
		com seu afastamento definitivo do futebol, exceto na medida em que 
		Manoel, sem as expressivas rendas do futebol, acabasse se tornando 
		dependente do dinheiro familiar, o que era improvável, mas nem por isso 
		menos preocupante. O táxi contornou vagarosamente a Marquês de Pombal, mas em vez de subir 
		a Antônio Augusto de Aguiar, em direção à Praça de Espanha, 
		matreiramente tomou a Avenida Fontes Pereira de Melo, engrossando o 
		congestionamento da Praça Saldanha. Ali, arrastou‑se metro a metro, 
		competindo por espaço com outros veículos, até alcançar a Avenida da 
		República, onde finalmente trafegou sem esforço, logo atingindo o 
		cruzamento desta com a avenida Estados Unidos da América.
		 Enquanto o táxi passeava por Lisboa, seguindo um itinerário nada 
		recomendável para quem tinha pressa e respeito pelo próprio dinheiro, 
		dançavam na cabeça de Manoel dois distintos estratos da realidade 
		vivida. O primeiro devolvia a lembrança de seu passado estudantil, e de 
		seus débeis projetos literários. E remetia Manoel para os anos da 
		adolescência, anos em que não soube urdir com os fios de ouro da vida 
		seu melhor sonho; anos esses que, de maneira repentina, retornaram com 
		nitidez, saindo da dimensão do tempo pretérito para uma dimensão de 
		quase existência presente, no momento em que Manoel ergueu o corpo 
		desfalecido de Bombarda do chão. Sim, porque o corpo do ex‑colega de 
		liceu, que Manoel protegera, e ao qual, de certo modo, devolvera a vida, 
		era simbolicamente a própria palavra poetizável, quase revolucionária, 
		de tão intempestiva e dominadora, instrumento primordial de gozo e 
		prazer daqueles tempos, e que havendo ficado submersa, desde então, 
		voltava a marcar presença; a se fazer, embora quase moribunda como o 
		próprio Bombarda, estirado no Largo do Rato, plenamente audível. O 
		segundo estrato de realidade vivida era justamente a memória de seu 
		passado mais recente, em que fracassara, ou, talvez melhor, em que a 
		vida e a sorte fizeram‑no fracassar, porque arriscara‑se demais e 
		perdera; porque não pesara as consequências de sua farsa; porque criara 
		um modelo na arte de representar que fugia aos parâmetros estabelecidos. 
		Um deficiente visual não poderia jamais assumir a responsabilidade de 
		adivinhar a rota da bola e a esta se antecipar, de modo a 
		interromper‑lhe a fatal trajetória.
		 Quando a voz desafinada e quase feminina de Paiva ecoara em seus ouvidos 
		dias atrás, e o convocara para aquela entrevista, todo o pesadíssimo 
		silêncio à sua volta, silêncio que envolvera sua existência e sua 
		carreira profissional nos últimos três anos, parecera ter ficado ainda 
		maior, mais pleno e mais insuportável. Esse silêncio agora ganhava 
		forma, expandia‑se, ocupando o peito de Manoel, e dificultando o 
		respirar. O táxi avança, mantendo um quase evidente propósito de retardar a 
		viagem. 
		 Após Entrecampos, o ar se torna mais leve e perfumado. O largo passeio 
		público entre as duas mãos de tráfego expõe uma vegetação que se torna 
		espessa aqui e ali, com árvores e arbustos espalhados em canteiros, de 
		forma que a custo se vislumbra o edifício da Biblioteca Nacional, na 
		outra mão de direção, com seu gramado frontal, onde já se podem ver 
		minúsculas papoulas eclodindo.
		 Se Manoel estivesse a pé, e caminhasse pela aleia central da avenida, 
		veria também o baixo casario na mesma margem da biblioteca. Aquelas 
		eram edificações modestas, que já nasceram acanhadas, geminadas à beira 
		da estreita calçada, e hoje corroídas pelo tempo e pelo esquecimento; 
		algumas com as portas cerradas há anos, à espera de serem demolidas; mas 
		a primeira do renque de casotas traz uma pequena porta sempre aberta 
		àquela hora; é uma minúscula tasca, com um balcão gasto de fórmica verde 
		sem lustro, e uma televisão pendurada sobre uma alta prateleira; o prato 
		do dia está gizado numa lousa à entrada. Adiante, em uma esquina, a 
		Livraria Lácio, do falante e solitário Antônio André, rodeada de 
		pequenas tascas e concorrentes. Ao meio‑dia, as crianças atiram‑se 
		pelo portão do estabelecimento de ensino, localizado ao fundo da rua, e 
		ganham as calçadas, em seus costumes azul‑marinho, espalhando sons 
		álacres. As mais crescidas agarram‑se e deslizam pela rua fazendo 
		confidências. Seus olhos cintilam à luz solar; de seus rostos brotam 
		ruges; trazem, em incansável movimento, os lábios trincados pelo frio 
		matinal. É como se quisessem compensar, naqueles instantes de liberdade 
		recobrada, o silêncio imposto pela disciplina escolar durante toda a 
		manhã. Seus dentes alvos despontam, estrelas embarcadas realçando a 
		boca. Manoel, contudo, não pensa em nada disso, nem nos tempos em que mantinha 
		conta‑corrente com o proprietário da livraria, nem mesmo nas tascas em 
		que à saída do Liceu comia uma sande e um copo de cerveja, enquanto 
		entretinha colóquios exaltados numa mesa de alunos. Compassivo, procura 
		controlar o desabamento silencioso de seu espírito.
		 Nesses momentos que antecedem seu encontro com Paiva, dissipam‑se de 
		sua mente os pormenores do incidente matinal, agora existem apenas seu 
		peito em surda sufocação, seu estômago intumescido, e um sentimento de 
		comiseração, como se acarinhasse a si próprio e a seu destino. E seu 
		destino e sua vida eram agora dois gatos siameses afofados sobre o colo. 
		Um pouco doentes, um pouco cansados, um pouco apreensivos. – Já se está quase ao pé do estádio – assegurou o motorista. Manoel saiu do letargo. – Pedi‑lhe que fosse ao Estádio da Luz, mas vejo agora que o senhor 
		preferiu um passeio turístico pela capital – disse Manoel decepcionado, 
		logo que percebeu onde estava. – Às vezes o trajeto mais longo não é o pior. Quando chegar ao estádio, 
		pode pagar‑me o que quiser, que não estou aqui para querer enganar 
		ninguém. Manoel limitou‑se a concordar.
		 Instantes depois, olhando com suas grossas sobrancelhas através do 
		retrovisor do Mercedes‑Benz, o motorista indagou: – Não vos conheço? 
		 Os olhos de Manoel encontraram os do homem ao volante.
		 – Já fui ao estádio de táxi várias vezes – respondeu o ex‑jogador, 
		buscando demonstrar uma cortês naturalidade. O motorista pareceu satisfazer‑se com a resposta. Desinteressou‑se por 
		instantes de seu passageiro e pressionou o acelerador. Ao ouvir um 
		incomum rugido do habitualmente silencioso motor de sua joia verde e 
		preta, o motorista lembrou‑se de que deveria fazer reparos no 
		escapamento. Nem bem ocupava‑se com tais comezinhas considerações, o 
		senhor ao volante ouviu a voz um pouco abafada de seu passageiro, que 
		repetia a instrução que dera ao tomar o táxi.
		 – Vou descer no portão principal, faz favor. 
		 O condutor do táxi voltou a exibir no retrovisor suas grossas 
		sobrancelhas ao passageiro do carro. Estas contudo desapareceram das 
		vistas de Manoel quando o motorista, empurrando o espelho levemente para 
		a direita e para baixo, enquadrou quase todo o rosto do jovem senhor de 
		lunetas. É muito pouco provável, quase impossível, que o motorista, mesmo que 
		torcedor do Benfica, guardasse em sua memória registros da voz daquele 
		que envergara a camisola número um de sua esquadra preferida. O mais 
		certo e provável é que o itinerário ao estádio de futebol, associado ao 
		ronco nervoso de sua Mercedes‑Benz, fê‑lo lembrar‑se da desgraciosa e 
		febril engrenagem vocal das torcidas, em domingo de grande jogo. Somando 
		todo o intenso clima futebolístico, propiciado pela simples compressão 
		dos artelhos, no à‑vontade das chinelas gastas, sobre o aceleredor, às 
		feições de seu passageiro, agora estampadas quase por inteiro no 
		espelho, como uma rara estampilha de colecionador, só havia um resultado 
		possível: Manoelzinho do Benfica.
		 – Manoel, Manoelzinho, não é verdade? – disse o motorista, fazendo 
		surgir as lascas de ouro de sua boca – Isto foi há muito tempo – defendeu‑se Manoel. – Pretende voltar a jogar? – perguntou ingenuamente o homem ao volante. 
		– Acho que devia, se permite a indiscrição. Manoel já ouvira isso antes. Mas já ouvira também torcedores fanáticos, 
		que jamais perdoaram sua farsa, dizendo‑lhe desaforos nem bem o 
		reconheciam. Por isso, respondia com prudência, buscando encerrar 
		rapidamente o assunto. – Não, aquilo acabou. Agora só assisto aos jogos pela televisão. – Mas hoje você vai ao estádio – disse o homem, mudando a forma de 
		tratamento. – Apenas para encontrar uma pessoa. Nada mais. Chegaram finalmente ao estádio. – Aqui estamos – diz o motorista, virando‑se e colocando o braço 
		direito sobre o encosto do banco a seu lado. – Chamo‑me Oliveira. E 
		tive muito prazer em transportar você. – E acrescentou: – A corrida não é nada. O Manoelzinho já a pagou. O ex‑jogador do Benfica agradeceu e desceu do carro. Alguns ademanes 
		desgraciosos se perderam no ar.
		 Encostado em uma árvore, está Paiva, apoiando o pé direito no tronco. O 
		cigarro entre os dedos tesos, como os de uma lady. Ao seu lado, um tipo 
		que Manoel não distingue de imediato. – Vais desculpar‑me pelo atraso, Paiva. É que tive que dar assistência 
		a um amigo. – Dizendo‑lhe isso, Manoel estica o braço quase 
		militarmente, e aperta os dedos moles e suados do repórter. – Não faz mal. Chegaste a tempo – diz Paiva, que desde que vira o 
		ex‑jogador descer do táxi fixara seu olhar na pesada armação de 
		tartaruga dos óculos de Manoel, como se esta fosse um objeto incomum, ou 
		uma ferida não cicatrizada. E acrescentou: – Este é Nuno, lembras‑te dele? Manoel conhecia superficialmente o fotógrafo que acompanhava Paiva; era 
		um homem silencioso e esquivo, com um rosto enrugado e sempre crestado 
		de sol, que trabalhava sem paixão, obedecendo maquinalmente às ordens do 
		repórter. Desde quando o conheceu, tempos atrás, no meio da imprensa 
		futebolística, Nuno dera‑lhe a impressão de alguém que estava sempre 
		realizando seu trabalho pela última vez, e que logo em seguida deporia 
		para sempre sua máquina fotográfica e demais petrechos, abandonando‑os 
		sem remorso.
		 – Já nos vimos, não é certo? – perguntou Manoel, enquanto esperava, com 
		seu braço esticado, que o sujeito libertasse uma das mãos do equipamento 
		e o cumprimentasse. Nuno inclinou a testa para frente em um movimento lento, mas não emitiu 
		qualquer som audível. Seu aperto de mão foi rápido como um furto. – Claro está que já se conhecem. Nuno está no jornal há mais de dez anos 
		– disse Paiva, atirando longe o toco do cigarro. Manoel reparou no paletó de veludo justo e levemente empinado nas 
		ombreiras, que Paiva está usando, e que davam a ele um ar ainda mais 
		afetado que o habitual. Essa vestimenta realçava a baixa estatura e a 
		compleição frágil do repórter, que parecia se mover em um apertado 
		ateliê de costura. – Muito agradecido por teres vindo – disse ele. – Vou dizer‑te qual é 
		minha proposta. Primeiramente, faremos algumas fotos no centro do 
		relvado, depois começamos a entrevista, propriamente dita. Parte dela no 
		relvado, ainda em meio a fotos, parte dela no restaurante. Concordas? – Não vejo problema – respondeu Manoel, constrangido, deixando‑se 
		levar pelo repórter. O fato é que logo que vira Nuno em companhia de 
		Paiva, Manoel pensara em recusar a sessão de fotos, peremptoriamente, 
		mas nada fez, além de um aflito esgar facial, que o entrevistador não 
		percebeu ou dissimulou não haver notado.
		 Paiva uniu os calcanhares, alçou‑os do solo, ergueu teatralmente os 
		dois antebraços e uniu o polegar e o indicador de cada uma das mãos, 
		como se estivesse esticando um fio invisível à altura do peito. – O administrador do estádio já nos autorizou a fazer as fotos. Podemos 
		ir? – perguntou ele. 
		 Paiva desfez o gesto; Nuno ergueu a sacola que depusera no chão e rumou 
		na direção de um acesso lateral, à entrada do portão maior. Manoel 
		caminhava lado a lado com Paiva. – Sem parar, até o centro do relvado – avisou o repórter. O fotógrafo atravessou o centro do campo, virou‑se na direção de Manoel 
		e disparou as primeiras fotos, sem que o ex‑jogador tivesse tempo de 
		retirar os óculos.
		 – Já começamos? – lamenta Manoel, sentindo‑se surpreendido pela lente 
		de Nuno. – Sim, já começamos – diz Paiva. – É tudo muito natural – acrescentou, 
		com as duas mãos nos quadris, buscando a direção da luz do sol. Paiva voltou‑se para Nuno. – Quero algumas fotos escuras, sombreadas, para dar ideia de isolamento 
		e tristeza. Talvez daquele outro lado, com Manoelzinho nas 
		arquibancadas. – Para que tudo isso? – perguntou o ex‑goleiro, retirando 
		discretamente os óculos. – Sou eu quem faz as perguntas – advertiu amistosamente a voz de falsete 
		sempre desafinada de Paiva. Manoel enfiou as mãos nos bolsos largos das calças e se deixou 
		fotografar, como alguém que acabasse de acatar o conselho médico e 
		permitisse que lhe aplicassem a injeção salvadora. – Agora, senta‑te bem ali – disse Paiva. 
		 Manoel enfiou novamente os óculos para localizar o lugar apontado pelo 
		repórter. – Queres que me sente naquele sítio? 
		 – Sim, na faixa em que não bate sol, mas podes ficar com os óculos, não 
		faz mal – diz Paiva. – Não, espera, vamos fazer uma sequência sob as 
		traves, antes. Vamos, Nuno, vamos. Manoel se afastou do repórter e caminhou na direção apontada. O 
		fotógrafo foi atrás, sem pressa, resistindo aos estímulos de uma mão 
		invisível que o empurrava para diante. Feitas as fotos sob os arcos, ambos voltaram. – Agora, sim, Manoel, faz favor de sentares ali. Muito bem. Agora dobra 
		o tronco para frente, coloca as mãos no queixo, como se estivesses 
		pensativo – acrescentou o repórter, elevando a voz para se fazer ouvir 
		pelo ex‑jogador. Nuno seguiu maquinalmente o movimento do entrevistado. – É essa a ideia de naturalidade que tu tens? – perguntou 
		maliciosamente Manoel, enfiando as lunetas no nariz. – Vamos, vamos, é só por um segundo. 
		 Depois de bater algumas fotos, Nuno aproximou‑se lentamente das 
		arquibancadas, sentou‑se alguns degraus abaixo de Manoel, permanecendo 
		ali, no aguardo de novas instruções. Paiva retirou um pequeno gravador do bolso e se dirigiu também até onde 
		se sentara Manoel. – Quantos anos jogaste no Benfica? – Dois anos e meio. – E antes? – Sheffield Wednesday. Três anos. – E antes? – Oh, pá, tu não sabes já tudo isso? – repeliu Manoel. – É só para testar o gravador. 
		 – Se é só para testar, respondo‑te que não sei em que clube joguei 
		antes, porque não conseguia perceber o escudo na camisola. – Tem paciência, aí está – diz Paiva, voltando a gravação e verificando 
		o volume. – Pronto, está bem assim, começamos de verdade – aduziu o 
		repórter. – O que representou para ti o afastamento do futebol, na 
		altura em que eras reconhecido em todo o país? – O futebol era o que melhor sabia fazer; com ele conquistei respeito; e 
		com o dinheiro ganho, conquistei independência. – E acrescenta: – Era, 
		em suma, tudo, ou quase tudo o que eu tinha. – Tu te arrependeste de haver iludido os que confiaram em ti? – 
		perguntou Paiva, indo direto ao ponto. Manoel retirou os óculos do rosto e os apertou discretamente entre as 
		mãos. – No último clube em que joguei, o Benfica, defendi seis penalidades 
		máximas em menos de um ano, algumas dezenas de bolas dificílimas e uma 
		centena de outras. Fiz o que qualquer bom guarda‑redes faria pelo seu 
		clube. Não traí ninguém. – Não quis dizer isso – retrucou Paiva. – Mas não podes negar, 
		permite‑me a franqueza, que tu escondeste o fato de seres cego como uma 
		topeira. O tom de voz de Paiva não escondia um de seus graves defeitos: a 
		incapacidade de se controlar quando o momento o exigia. E, junto com 
		esse defeito, outro, que era o de antagonizar todo aquele que se 
		encontrava próximo dele, e de exagerar o peso do braço, em situações em 
		que para obter o que pretendia seriam necessárias justamente doçura e 
		lhaneza. O entrevistado recolocou os óculos, olhou ao redor do estádio vazio, 
		acusou o golpe, mas reagiu. – Com ou sem o problema visual, vesti a camisola com profissionalismo. 
		Se não fosse aquela partida contra o Sporting, talvez estivesse fazendo 
		um papel melhor do que os sucessores do meu posto têm feito desde então. – Sem dúvida, não contesto. Achas então que a diretoria do clube não te 
		deveria multar e afastar?
		 – Francamente creio que não. Pois não era minha responsabilidade 
		avaliar minhas próprias condições físicas, mas do departamento médico, 
		que, se não sabia que eu enxergava mal, ao menos desconfiava. – Achas realmente que deveriam dar‑te novamente a camisola de arqueiro 
		no jogo seguinte? É isso o que tu pensas? – insiste o entrevistador, 
		levando a conversa por uma vereda perigosa. – Há corredores de carros de corrida sem visão perfeita. Há mesmo alguns 
		com deficiência de visão, como o Bob Rahal, e que terminam na dianteira.
		 – Corredores de carros trabalham sentados, não têm contato físico com os 
		outros competidores – argumentou Paiva. – Joguei aproximadamente 90 partidas pelo Benfica, mais de 100 pelo 
		Sheffield Wednesday. E não sei mais quantas por outros clubes. Apenas 
		uma vez, uma única vez, em centenas, cheguei a perder a lente de contato 
		em um jogo.
		 – E foi fatal! – acrescentou Paiva, exaltado. O pequeno gravador com 
		microfone embutido tremia em suas mãos. – Era para dares tua opinião que me chamaste aqui? Se soubesse disso, 
		não teria vindo! Pois a tua opinião e a de teu jornal pouco me importam! 
		– rebateu Manoel arrancando os óculos do nariz. Paiva bateu com a palma da mão direita na própria perna. – Façamos o seguinte: mudemos de assunto. O motivo desta entrevista não 
		é tua deficiência visual. – E qual é então o motivo? – perguntou Manoel. – Dir‑te‑ei ao almoço. Tu almoças comigo? – perguntou Paiva. – É um 
		convite do jornal – disse, finalmente conciliador. Agradava a Manoel impor sua existência, desiderato que imaginava 
		alcançar enfrentando o lado perverso do mundo com as armas da sua 
		verdade. E, naqueles instantes, esse mundo maligno estampava‑se por 
		inteiro na cara ictérica de Paiva.
		Contudo, ao mesmo tempo em que as palavras do entrevistador 
		afrontaram‑no – como uma espécie de simulacro da opinião pública, e em 
		que, ao ouvi‑las, sentira‑se motivado para o embate, instigado para 
		lutar –, a quase intimidade com o oponente e o jogo melífluo e 
		intrigante, que parecia começar agora, excitavam sua imaginação. Era 
		como ter o atrevimento de esfregar as mãos na focinheira de um leão 
		faminto. Por essa razão, a resposta de Manoel não poderia ser outra. – Pode ser, por que não? 
		 – E o que tu tens feito para sobreviver? – perguntou Paiva, segurando o 
		braço do ex‑jogador, ao mesmo tempo em que se levantava do degrau em 
		que se encontrava. O fotógrafo guardou seu equipamento e seguiu o 
		jornalista.
		 – Vivo das minhas magras rendas – respondeu evasivamente Manoel. – Podes ser mais explícito? – Na ocasião em que parei de jogar, era sócio de uma pequena pensão no 
		Gerês, e ainda sou; possuía, além disso, uma casota no Algarve e dois 
		andares em Lisboa. 
		 – Tinhas seguro para a eventualidade de não poderes jogar mais? – Sim, tinha – respondeu Manoel, enquanto caminhava ao lado do repórter 
		para fora do estádio. – Então vives bem, apesar de não trabalhares mais? – pergunta 
		conclusivamente o entrevistador. – Não vivo como vivia antes, nem tenho mais os dois imóveis aqui em 
		Lisboa, que comprei com o dinheiro de minha transferência para o 
		Sheffield. Mas não estou mal. – Portanto, vives de renda – insistiu Paiva. – Não vivo inteiramente no ócio. Algumas vezes auxilio meus pais no 
		negócio da família. Mas a bem da verdade não preciso disso. – E que negócio é esse, exatamente? – Um estabelecimento comercial, um café com sala de almoço, ao pé da 
		Quarta Parada, no Campo de Ourique. Os três atravessam a ampla calçada em frente ao estádio. O carro do 
		jornal os aguarda. – E de onde és? – perguntou Manoel, já no carro do jornal, a caminho do 
		restaurante. – Nasci em Amarante, em uma morada humilde, quase ao pé do Zé da 
		Calçada, na 31 de Janeiro. Conheces? – Penso que cheguei a entrar na cidade, mas não me recordo se cheguei a 
		permanecer lá por mais do que alguns minutos. O repórter continuou: – Aos quinze anos, mudei‑me com a família para Viseu, antiqua et 
		nobilissima cidade. – Essa eu conheço bem – disse Manoel, acomodando‑se no fundo do assento 
		do automóvel. – E conheço não só porque lá joguei, mas porque lá voltei 
		inúmeras vezes. Hospedava‑me no Hotel Avenida, de onde, a pé, saía ao 
		encalço de uma Lídia que não era a do Ricardo Reis.
		 E a voz do ex‑jogador se tornou mais branda:
		 – Vem sentar‑te comigo, Lídia, à beira do rio, sossegadamente fitemos o 
		seu curso e aprendamos que a vida passa, e não estamos de mãos 
		enlaçadas. 
		 Manoel olhou para fora do carro, como se a observação da paisagem 
		pudesse prolongar as sensações que o poema de Reis evocara. – Então, gostas de poesia! – exclamou Paiva desconcertado, acentuando as 
		sílabas com afetação. – A poesia veio antes do que o interesse pelo futebol. Ficou todavia 
		abandonada, esquecida em benefício de coisas mais práticas, mas não nego 
		que aprecio muitíssimo. – E eu também – acrescentou Paiva. – Quando recitavas o verso falando 
		do rio, lembrei‑me novamente de Amarante, e de seu rio, que como tu 
		sabes é o Tâmega; rio que passava defronte de minha casa, e lá ainda 
		passa, com seus carvalhos e plátanos nas margens; com seus salgueiros 
		beijando a água, numa mansuetude que não era a dos meus quinze anos.
		 Paiva interrompe‑se por um instante e prossegue: – A casa defronte do rio é que não é mais minha, infelizmente. – Sim – balbuciou Manoel, ainda fitando as ruas através da janela do 
		carro.
		 Voltou‑se em seguida para o repórter: para onde me levas? Paiva, que por distração nada dissera ao motorista do carro, curvou‑se 
		sobre o encosto do banco dianteiro. – Seu Moraes, vamos a uma marisqueira na Praça do Chile. Ao chegar nas 
		proximidades, mostro‑lhe o sítio. O motorista balançou a cabeça 
		afirmativamente. – Não é o restaurante do Castelo de São Jorge, nem tem 
		seu luxo, mas come‑se bem, e isto é o que importa – disse, 
		dirigindo‑se a Manoel. Sem saber ao certo se foi a menção que Paiva acabara de fazer do 
		restaurante ou se foi pelo fato de este haver mencionado seus pais, ou, 
		ainda, por causa das duas coisas combinadas, o fato é que a lembrança do 
		compromisso de substituir a mãe nos afazeres do bar, enquanto esta se 
		ausentasse, veio à mente de Manoel como um soco na testa. – Paiva, ao chegarmos à marisqueira, dar‑me‑ás licença de telefonar, 
		pois não? – E acrescentou, como se estivesse endereçando ao repórter as 
		desculpas devidas à mãe: 
		 – É que não vejo como estar em dois sítios ao mesmo tempo. Vou avisar 
		que me atraso. Razões profissionais. – É assim que se fala – disse Paiva, estimulante, sem contudo 
		compreender exatamente a que se referia Manoel ao dizer da 
		impossibilidade de se encontrar em dois lugares diferentes. O carro contornou a Saldanha e virou na direção da Avenida Casal 
		Ribeiro. Manoel calou‑se, nutrindo uma ideia fixa: telefonar, telefonar 
		assim que puser o pé na calçada. Uma hora deve bastar para o as 
		palrações de Paiva, considerou. Depois, é tomar um táxi e desabalar para 
		o Campo de Ourique. Mais uns trinta minutos. Não mais do que isto. – Já estamos na Almirante Reis – avisou Paiva, compelido pela 
		necessidade de preencher o silêncio que se instalara dentro do carro.
		 Ao lado do motorista, Nuno olhava absorto à frente, segurando, como se 
		embalasse um cesto de bebê, a sacola com seus petrechos de trabalho. O 
		carro afastou‑se da Alameda Afonso Henriques.
		 – Moraes, deixa‑nos mesmo ao pé da Praça do Chile. Depois procura uma 
		vaga em uma travessa da Morais Soares ou da Pascoal de Melo, e nos 
		encontra no restaurante. – Qual o nome? – pergunta Moraes. – Olha, é bem ali. Podes parar. Podes parar, homem de Deus! Estás vendo? 
		– bradou Paiva, gesticulando energicamente. – Marisqueira Chimarrão? – Pronto. Aí tens – disse o repórter, ainda arrebatado. – Desçamos, 
		antes que o Senhor Moraes nos leve de volta ao Estádio da Luz.
		 A iluminação é débil e tons vermelhos predominam na marisqueira que, 
		diferentemente das outras, exala um intencional ar afrancesado de 
		bistrot. Quando a porta da rua se cerrou atrás de Manoel, também ficaram 
		do lado de fora a orquestração de ruídos da Praça do Chile – com seus 
		bondes, seus comerciantes à soleira das portas, sua clientela simples, 
		de modos apressados e fala ácida – e o dia de luminosidade 
		incandescente.
		 Paiva avançou na semipenumbra e escolheu uma mesa redonda e ampla, no 
		centro do salão, de modo que todos se acomodaram perfeitamente ao redor 
		dela.
		 Quando o garçom ameaçou tirar os talheres em frente à única cadeira 
		vazia, Paiva advertiu: – Aguardamos mais alguém, podes deixar como está. 
		 Em seguida dirigiu‑se a Nuno: – Quero ver quanto tempo levará para o Moraes estacionar o veículo. Esta 
		cidade está a entupir‑se de latas. Manoel, nem bem se sentara, saltou como uma mola de sua poltrona e se 
		pôs de pé, aflito. – Vou telefonar à casa. Já volto. 
		 Enquanto o ex‑jogador despachava‑se marisqueira adentro, no intuito de 
		localizar um telefone, Paiva e Nuno manuseavam o cardápio. O garçom traz três buchas em um cesto. Os dedos de Nuno pinçam uma 
		delas, nem bem tocam a mesa. Paiva olha desinteressadamente os modos do 
		fotógrafo. Do outro lado do restaurante, ao canto de um balcão cheio de pratos e 
		copos sujos, Manoel ouve seu pai atender ao telefone, e diz: – Aqui é Manoel.
		 Seu pai não responde de imediato, como se esperasse a construção do 
		sentido da frase. Manoel continuou: – Infelizmente vou atrasar‑me deveras. Quero pedir desculpa à mãe. – Tua mãe já saiu – diz o sr. Albano Aires. – E tu me fizeste mais esta! 
		Não posso mais confiar em ti. – Eu irei, prometo que irei. É só mais uma hora, talvez menos – 
		defende‑se Manoel. – Tu vais me obrigar a fechar em pleno dia o bar, coisa que jamais me 
		aconteceu antes! 
		 – E se eu não estivesse aqui, como o senhor se arranjaria? – Não me faças rir. Tu sabes bem que não empreguei o Fonsequinha porque 
		tu me deste tua palavra que ficarias algumas semanas a atender o 
		balcão. – E arrematou: – O bar é nosso sustento, não nosso passatempo! – Eu já vou. Tem paciência, sim? 
		 Quando Manoel chegou à mesa, já lá estava o motorista, abocanhando a 
		última bucha que sobrara. Os comensais faziam seus pedidos e Paiva 
		encomendava o vinho. – O que vai ser? – perguntou o repórter a Manoel. – Qualquer coisa – disse o ex‑jogador.
		 – Queres uma sugestão? – Sim, faço gosto que me escolhas o prato – respondeu Manoel. – Pede umas ameijoas a Bulhões Pato e uma posta de cherne com grelos – 
		sugeriu Paiva. – Estou sem apetite, ademais não posso demorar‑me demais. Só o peixe, 
		está bem? – Como quiseres. O repórter em seguida dirigiu‑se ao garçom e encomendou um vinho branco 
		do Douro.
		 O serviço avançava com lentidão. A impaciência de Manoel aumentava e o 
		ex‑jogador exibe‑a agora arrancando os óculos do nariz e 
		recolocando‑os entre uma e outra mirada no mostrador do relógio de 
		pulso. Paiva apercebe‑se disso. – Antes que teu descompassado coração pare de bater, vamos ao que 
		interessa. Em primeiro lugar, quero que o Nuno deixe de lado a sopinha e 
		faça‑me o favor de trabalhar. E tu, quero que me ouças, está bem? Manoel assentiu. Incontinenti, o fotógrafo limpou os beiços e abriu o zíper da maleta, 
		dali extraindo a câmera fotográfica.
		 – De que se trata então? – perguntou o ex‑goleiro. – É simples. Queremos‑te novamente em circulação. É por isso que a 
		editoria de esportes incluiu‑te na pauta.
		 – E para quê? – O jornal acha que uma matéria favorável sobre ti bastaria para que o 
		país inteiro voltasse a ver‑te com simpatia, e até com saudade. 
		 – Sim, mas repito: ainda não percebi qual a finalidade. – Queres um pouco de vinho? – pergunta Paiva, sentindo‑se sutil. – Basta, assim está bem – diz Manoel, levantando o copo da mesa, mas não 
		escondendo sua ansiedade para que o repórter pusesse de uma vez as 
		cartas sobre a mesa. – O que o jornal pretende é oferecer‑te uma crônica esportiva semanal. 
		Uma coluna, para escreveres sobre o que tu conheces. E com inteira 
		liberdade de opinião, como convém a uma coluna assinada. Mas antes de 
		mais nada, como te disse, precisamos devolver‑te ao mundo, fazer teu 
		nome ouvido aqui e ali, compreendes? O ex‑jogador recolocou os óculos que havia retirado segundos antes. À 
		sua frente, o rosto de Paiva, com seus olhinhos de rato, seus modos de 
		pequeno roedor, endereçando‑lhe uma proposta salvadora e inteiramente 
		inesperada. – Queres dizer que o convite está condicionado à receptividade de meu 
		nome? O flash da máquina de Nuno espocou na retina de Manoel. – Não é bem assim. Achamos que uma matéria jornalística simpática sobre 
		ti daria maior segurança a teu regresso; prepararia, por assim dizer, 
		teu caminho de futuro cronista. – Garantiria o empreendimento do jornal, isto é o que queres dizer. – Se entendes assim – respondeu Paiva, reticentemente. – Estão por acaso os senhores imaginando que em benefício do bom nome do 
		jornal e sucesso da seção eu consentirei em fazer publicamente um mea 
		culpa relativo a um incidente ocorrido há três anos atrás, e do qual não 
		tenho qualquer remorso? – De modo algum, tu estás sendo precipitado e leviano, se me permites a 
		franqueza – atalhou o repórter. – Não admito que me dirijas a palavra desta maneira! – contra‑atacou 
		Manoel. – Tu pensas, ao que parece, que o mundo inteiro gasta seu tempo a 
		preparar‑te uma peça? O pequeno roedor defendia seu patrão com as armas da ironia, pensou 
		Manoel. – Todo ele, não – redarguiu o ex‑jogador. O repórter serviu‑se de mais vinho, atacou uma lasca da batata cozida 
		que acompanhava as lulas, deixou sabiamente escoar alguns segundos e 
		respirou fundo. Manoel tinha os cotovelos abertos como se fosse voar; os 
		dedos contraídos, os punhos sobre a mesa. – Independentemente de tua opinião e de tua má vontade, penso que é uma 
		oferta tentadora que o jornal te faz. Basta seres prático e 
		desarmares‑te. Lucrarás muito com tudo isso – profetizou. – E a parte financeira? – Agora, sim, falas bem. Ora, a parte financeira não deixa a desejar. 
		Garantote – diz Paiva. – Se teu nome repercutir bem, com certeza não 
		precisarás vender mais nada daquilo que é teu, para pagares tuas contas. 
		E ainda reconquistarás a celebridade. – E para quando é isso, quero dizer, qual é o próximo passo? – Breve tu serás chamado – afiançou o repórter. – Deixa tudo comigo, 
		está bem? Tua matéria sairá com grande destaque, verás. Mas acalmate. 
		Não tenho raiva de ti.Eram 14h45 quando o exgoleiro entrou num táxi rumo a seus relegados 
		afazeres no Bar e Tabacaria da Quarta Parada.
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