Uma palavra sobre a
fotografia... simultaneamente ponto de chegada e ponto
de partida. A fotografia cruzou todo o percurso
multidisciplinar de Ernesto de Sousa (1921-1988),
funcionando simultaneamente enquanto documento e
pensamento, sem definição de fronteiras entre o registo
das experiências de outros e os objetos artísticos que
compuseram a sua bio-bibliografia. Os materiais
fotográficos inéditos desta exposição demonstram o seu
continuado interesse pela arte popular e a escultura
portuguesa de expressão popular durante os anos
sessenta. Sem prejuízo da especificidade desses mesmos
objetos, evidenciamos o uso da fotografia enquanto
ferramenta e expressão do seu pensamento, através de
três assemblagens de meios e objetos: a realização de um
filme, a curadoria de uma exposição e a edição de um
livro. Esta análise confronta o olhar do autor com o
objecto (referente) fotográfico e com os meios de
produção e edição da imagem fotográfica, num exercício
que revela a intimidade do trabalho de Ernesto de Sousa,
tanto na aproximação às temáticas de estudo como nas
condições materiais do seu trabalho, testemunhando a
complexidade e experimentalismo do seu universo visual.
Encontram-se em exposição as
fotografias rasuradas da rodagem do filme Dom Roberto
(1962), as fotografias da exposição
Barristas e Imaginários: quatro artistas portugueses do
Norte organizada na galeria da livraria
Divulgação (Lisboa, 1964), fotografias publicadas no
álbum Para o Estudo da Escultura Portuguesa
(Lisboa: ECMA, 1965) e material ainda inédito do
levantamento sobre a “Escultura Portuguesa de expressão
popular, histórica e atual”, que Ernesto de Sousa
compilou durante os anos que foi bolseiro da Fundação
Calouste Gulbenkian (1966-68).
A prática fotográfica de
Ernesto de Sousa e a representação gráfica dos pequenos
contactos em páginas soltas compiladas em álbuns remonta
à transição dos anos quarenta para os cinquenta do
século passado, constituindo possíveis guiões visuais
para os documentários e filmes publicitários que
realizava para a Shell e para a Ford, muitos dos quais
ainda se encontram por identificar. São documentos
amadores, que transmitem uma narrativa social e política
e já demonstram um sentido estético. A simbiose que o
cinema documental opera entre diferentes artes e
disciplinas: entre a fotografia e a literatura, entre a
investigação social e histórica, levaram Ernesto de
Sousa a desistir do Curso de Ciências Físico-Químicas e
a ir estudar História do Cinema e Cinematografia na
Sorbonne (Paris) entre 1949 e 1952. No plano teórico, a
reportagem e edição fotográficas relacionar-se-iam
diretamente com o seu envolvimento profissional, já
enquanto chefe de redação, em revistas especializadas em
“Fotografia, Cinema, Som, Rádio, Artes Gráficas e
Propedêutica da Publicidade”, como a Plano
Focal, da qual se publicam apenas quatro números
entre Fevereiro-Maio de 1953.
No ano seguinte, dirigindo a
segunda série da revista Imagem,[1]
Ernesto de Sousa documenta fotograficamente uma série de
reportagens jornalísticas sobre filmes e realizadores e
entrevistas a atores que realizara em Paris. Foi em
Fevereiro de 1959 que Ernesto de Sousa publicou uma das
fotografias (não identificada) que primeiro nos remetem
para a temática da arte popular: uma imagem da guarita
do bonecreiro António Dias (1920-1983). A fotografia é
publicada juntamente com um conto inédito de Leão
Penedo, dando continuidade à publicação de uma série de
textos que a revista Imagem iniciara com as
crónicas de Eurico da Costa (Diário de Férias) e
de Alves Redol (Carnaval na Nazaré), a pretexto
de “atrair a atenção para uma realidade nacional [que
estaria] na base de um cinema verdadeiramente português
e novo, e [que queria] mostrar, também, como essa
realidade [era] rica, atraente e, sobretudo, imperiosa.”[2]
Em Maio de 1959, Leão Penedo registava o título Dom
Roberto, que se destinava ao argumento
cinematográfico com a realização de Ernesto de Sousa. A
associação entre ambos ficaria registada graficamente
através da associação entre texto e imagem, na pág. 467
da revista Imagem.[3]
No final dos anos cinquenta
Ernesto de Sousa dedicava um dos seus estudos sociais e
etnográficos aos espetáculos de fantoches e
particularmente a António Dias, cuja guarida publicitava
o “Teatro Dom Roberto”. Esta e outras fotografias estão
agora expostas na XIX Bienal de Cerveira, juntamente com
um conjunto inédito de fotolitos[4],
para onde Ernesto de Sousa transferiu mais de uma
centena de negativos que retratam a rodagem de Dom
Roberto, com o propósito de destruir, de forma
experimental, o seu suporte e enquadramento
pré-definido. A intervenção química na imagem
fotográfica é abrupta. Numa atitude claramente crítica
da capacidade interventiva dos media, Ernesto destrói o
múltiplo fotográfico e provoca um recuo perante um mundo
falsamente real.
Contemporaneamente, e até ao
início da rodagem de Dom Roberto (Agosto 1961),
Ernesto publicou regularmente as suas fotografias
numa série de 15 artigos que dedicou aos “Aspectos da
Escultura em Portugal” na revista Seara Nova
(entre Março 1959-Agosto 1961). Desta forma, começou por
enumerar alguns exemplos da escultura portuguesa de
expressão popular; domínio das artes que considerava
histórica e esteticamente menos estudado. Assume assim à
escala nacional o seu interesse pelo espaço social
da arquitetura e pelo carácter discursivo da
escultura que lhe está associada. Ernesto de Sousa
incorporou estas fichas num estudo mais amplo
apresentado na publicação Para o Estudo
da Escultura Portuguesa (1965), um
álbum onde o estudo imagético e a análise estética se
complementam. Afirmando uma iconografia que não é objeto
da crítica e da especialização historiográfica, Ernesto
de Sousa consegue ser “visualmente polémico”. A arte
popular permite-lhe explorar uma metodologia
comparativa, associando livremente “memórias” e figuras
de diferentes regiões e períodos históricos .
Neste estudo sobre a
“significação profunda da escultura portuguesa”, Ernesto
de Sousa dedica todo um capítulo ao “Problema visual:
discussão sobre as virtudes e as características da
interpretação e reprodução fotográfica nos estudos de
escultura. Estética do fragmento. Iluminação e valores
tácteis. Sugestões para a utilização da fotografia como
método indispensável dos estudos iconográficos e
estéticos. Comparativismo e visão polémica.” A
fotografia permite-lhe identificar e simultaneamente
descobrir, sem nunca perder a noção do potencial visual
e cultura material que lhe é próprio. Dessa forma,
evidencia a abstração da mediação estética –nomeadamente
através da iluminação ou do enquadramento– tornando-a
objecto explícito do seu trabalho intelectual. Imagem e
discurso são conscientes da sua mediatização e
consequentemente contemporâneos e autocríticos:
“Uma figura num capitel de
igreja românica, não era apenas objecto de demorada
contemplação e espanto para o camponês de
Entre-Douro-e-Minho, era-lhe um valor íntimo, uma íntima
maneira de ele ser no espaço e no tempo. Para nós tudo
isso tem que ser reedificado segundo valores mais
abstractos, na mediação estética ou filosófica da nossa
modernidade; valores no entanto, não menos ardentes,
quando reedificados no futuro.” (p.12)
Apesar da sua crítica
intelectual apurada, os meios com que reproduz as obras
tridimensionais são tecnicamente restritivos, mas
coerentes. Embora a fotografia sofra um trabalho de
reenquadramento na edição dos conteúdos que publica, ela
nunca é apresentada enquanto a arte neutra da suposta
“fotografia de estúdio”. Ernesto assume que a sua
fotografia não é estática nem documental (transparente),
mas subjetiva. O seu enquadramento relaciona-se
diretamente com o suporte da publicação e com a sua
mensagem e por essa mesma razão não deve ser
pré-definido para a posteridade.
Contrariamente ao sucedido em
publicações emblemáticas como Les voix du silence
(1951)[5]
ou Le Musée imaginaire de la sculpture mondiale
(1952-54) de André Malraux, Ernesto de Sousa assume as
mudanças de percepção provocadas pela fotografia de
reprodução e as suas consequências epistemológicas.
Enquanto André Malraux afirmava que em escultura o
“fragmento é rei” e os enquadramentos fotográficos, as
ampliações e as deslocações visuais serviam o seu
discurso homogeneizador da história modernista, o
arquivo de Ernesto de Sousa demonstra a consciente e
crítica produção dos respectivos documentos visuais.
Mesmo tratando-se de uma fotografia de reprodução, que
muitas vezes é reenquadrada para servir uma função
imediata na página impressa das publicações, o seu
arquivo fotográfico transporta-nos por histórias
paralelas de produção da imagem e por conseguinte, para
novas plataformas de representação.[6]
Perante uma incompleta
inventariação e deficiência documental, face aos raros
estudos de ordem estética e à ausência de estudos
comparativos, Ernesto de Sousa propôs-se prosseguir o
levantamento sobre a “Escultura Portuguesa de expressão
popular, histórica e atual”, concorrendo a uma bolsa da
Fundação Calouste Gulbenkian (1966-68). O arquivo
fotográfico, fílmico, sonoro e bibliográfico que
construiu em viagem pelo território português a partir
de Outubro de 1966 permaneceu inédito e é na sua quase
totalidade desconhecido.
Portugal era ainda um país
predominantemente rural, que passava por um processo
irreversível de aculturação para uma sociedade de
consumo, mediatizada e tecnologicamente avançada, mas
que era censurada por questionar essa transformação.[7]
À medida que esse território desaparecia, o estudo da
cultura popular corria, de forma pontual, a cargo de
etnólogos, geógrafos e arquitetos. Interessando-se
particularmente pelo domínio da estética e
apercebendo-se que o conceito de obra de arte
estava limitado pelo campo oitocentista da arte erudita,
Ernesto de Sousa formula o desconhecimento sobre “O que
é a arte popular? Qual a origem desta importante
manifestação do pensamento e do sentir, mais ou menos
espontâneos, das populações rurais?”[8]
Este estudo visual e cultural
acontece inserido numa profusão de movimentos
aparentemente isolados, mas simultâneos. Será a
acumulação de abordagens de uma série de investigadores
– etnólogos, geógrafos, arquitetos, músicos e
historiadores – que permitirá conhecer melhor a história
social e cultural do país e construir ferramentas
críticas sobre as responsabilidades cívicas e culturais
das várias classes profissionais. Consciente da
necessidade da articulação interdisciplinar para
combater o isolamento cultural e intelectual fomentado
pela política do “orgulhosamente sós”, Ernesto de Sousa
circula livremente entre os territórios literários,
musicais, cinéfilos, teatrais, jornalísticos,
ensaísticos e artísticos, procurando torna-los
diferenciadores, plurais e discursivos.[9]
Cruzou imaginários, histórias e memória, eternizando
visualmente os objetos efémeros e conferindo pensamento
a vozes que, sem terem lugar na História nacional, foram
figuras emblemáticas do seu povo.
A contra-pêlo da política do
Estado Novo que encenava e promovia turisticamente uma
imagem acrítica da ruralidade portuguesa – nomeadamente
através do concurso da “Aldeia mais portuguesa” (1938) e
da Exposição do Mundo Português (1940) – figuras como
Orlando Ribeiro, Lima Basto, Jorge Dias, Francisco Keil
do Amaral, Ernesto Veiga de Oliveira ou Fernando Lopes
Graça (entre outros) ensaiavam uma abordagem crítica
sobre o território, o povoamento, a paisagem e a cultura
nas suas várias vertentes diferenciadoras.[10]
Dois levantamentos, embora não diretamente relacionados,
são particularmente contextualizadores do investimento
intelectual depositado na identificação, documentação,
divulgação e estudo da cultura popular levado a cabo por
Ernesto de Sousa entre 1959 e 1969: os Arquivos
Sonoros Portugueses (1959-1970) – trabalho de campo
conduzido por Michel Giacometti e Fernando Lopes Graça,
que consistiu no registo e recolha da música regional
portuguesa – e o Inquérito à Arquitectura Regional
Portuguesa (1955-60) – proposto pelos
Arquitetos José Huertas Lobo e Francisco Keil do Amaral
em 1947 mas apenas apoiado a partir de 1955 e publicado
pelo Sindicato Nacional dos Arquitetos em 1961.
Paralelamente, mas à escala internacional, é de
salientar a tentativa de Asger Jorn (1914-1973) para
constituir o Scandinavian Institute of Comparative
Vandalism (1961-65).[11]
Inserido num Ciclo de
Etnologia e Cultura Popular,[12]
Ernesto de Sousa daria forma à sua investigação sobre
arte popular através da organização da exposição
Barristas e Imaginários: quatro artistas populares do
Norte, na galeria da Livraria Divulgação (Lisboa,
1964). Elegendo a obra de Rosa Ramalho, Mistério
(Domingos Gonçalves Lima), Quintino Vilas Boas Neto e
Franklin Vilas Boas, Ernesto de Sousa assume um estudo
personalizado e intimista, que se revela nas fotografias
das visitas que realiza às oficinas e no relacionamento
que mantém com estes artistas e canteiros. No catálogo
escreve:
“Mas não será melhor
conhecer, primeiro e diretamente o povo, realmente
criador (quaisquer que sejam as influências e as
determinações) e, também, sofredor? De certo modo, é
cada vez mais isso –observação e experimentação–que
orienta a moderna etnologia. Conhecendo-o pelo cinema, e
por vocação pessoal talvez, o meu interesse pela arte
popular é antes de mais humano. Nesse contexto,
interessa-me saber quem são e como são os barristas e os
canteiros que ainda hoje –apesar de tudo– lá vão
persistindo (talvez sem saberem porquê, talvez até
forçados por razões bem alheias a qualquer necessidade
estética pura) a serem originais e genuínos artesãos, ou
mesmo artistas.”
Ernesto de Sousa admite que
ainda não é tempo para diferenciação, mas caracteriza o
trabalho de canteiro da Oficina de Quintino Vilas Boas,
onde se “trabalha como na Idade Média, em perfeita e
digna humildade artesanal: os filhos aprendem o ofício
com os pais, e a noção da originalidade apaga-se
inteiramente diante do realismo do trabalho.” Em
contrapartida, identifica Franklin como um escultor de
madeira: “Franklin é um ‘outsider’: a sua maneira de
trabalhar e conceber o trabalho corresponde a uma outra
preocupação criadora, a par de marcadas características
lúdicas.” E já depois da morte deste em 1968,
acrescenta:
“Franklin correspondeu e
ampliou com precisão toda uma teoria do imaginário
ingénuo e primevo, que nos propúnhamos investigar.
Artista e não artesão, até certo ponto excluído do seu
meio –precisamente por inapetência artesanal e
desregramento das normas sociais -, constituiu um caso
típico de investigação estética, num meio não culto no
modo literário. Com uma cultura, pelo contrário,
forçosamente oral e mnemónica, as suas concepções
correspondiam a uma informação ingénua –que constitui a
base das nossas verificações teóricas. (...) O encontro
com as coisas, com o mundo, era sempre um encontro
primeiro, uma origem. Em Franklin realizavam-se assim as
condições de um olhar ingénuo; (...) Como o propósito de
todo artista ingénuo, e, aqui incluído, todo o artista
popular, podemos a seu respeito falar de um
cogito pré-reflexivo. O seu caso (entre muitos
outros diversamente significativos) tornou-se assim
paradigmático – dum meio rural determinado.”[13]
Ernesto de Sousa assume a sua
perspectiva de estudo sobre a “Escultura Portuguesa de
expressão popular, histórica e atual”, como sendo da
ordem da “deontologia de conhecimento estético”, que não
é a do etnógrafo, nem do arqueólogo ou mesmo do
historiador.[14]
Em vez de partir dos pressupostos destas disciplinas,
procurou nos artistas populares o imaginário e as
técnicas que caracterizam a “escultura portuguesa de
cariz popular” de “meios rurais determinados”. Ao mesmo
tempo que conheceu artistas como Franklin Vilas Boas,
Mistério e Rosa Ramalho, que caracterizou como
“simultaneamente singulares e paradigmáticos”, também
descreveu ser capaz que identificar autores e escolas na
escultura portuguesa mais anónima. Distinguiu a
escultura de expressão popular do artesanato e
interessou-se pelas análises das suas influências
“cultas”. Paralelamente, estudou o academismo e uma das
suas manifestações particularmente viva no Norte do
país: a atividade dos escultores-santeiros.
Entre Janeiro e Março de 1968
deslocou-se por duas vezes a S. Mamede do Coronado
(Santo Tirso) onde visitou, pela mão de Alberto Carneiro
(1937-2017), as oficinas dos escultores-santeiros José
Ferreira Thedim (1892-1971) –conhecido por ter feito a
imagem de Nossa Senhora de Fátima– e de Adelino Moreira
Vinhas. Apesar de terem uma origem sócio-cultural
popular, a sua escultura é “culta” e canónica. Ernesto
de Sousa associa-os com a cultura académica do séc.XIX e
isso deve-se provavelmente ao facto de fazerem cópias.[15]
Nas suas fotografias são evidenciadas as reduções ou
ampliações próprias dos copistas, mas Ernesto de Sousa
sublinha a questão do “acabamento” na arte académica e a
sua associação com o “belo ideal”, em contraposição com
a gestualidade das superfícies da arte moderna. É pelo
empobrecimento do acabamento dito “académico” que
Ernesto de Sousa menospreza a arte “culta” do
escultor-santeiro relativamente à espontaneidade do
artista popular, evidenciando por sua vez, a preocupação
criadora deste último, a par de marcadas características
lúdicas que o diferenciam igualmente do artesão, onde a
noção da originalidade se apaga inteiramente diante do
realismo do trabalho.
A frase de Almada Negreiros
“Sou um ingénuo voluntário”, ficou registada
precisamente no texto que Ernesto de Sousa publicou
sobre Franklin Vilas Boas Neto, identificando-o como o
ingénuo involuntário. Ernesto de Sousa exalta o
valor deontológico dessa memória cultural ingénua,
identificando a história desta redescoberta com a
história da arte moderna, livre dos academismos. Esta
redescoberta da ingenuidade é salientada no final de um
capítulo do relatório de bolseiro que entrega à Fundação
Calouste Gulbenkian em 1968, onde relata o trabalho de
Alberto Carneiro:
“... o jovem escultor
português, que tendo sido santeiro desde os dez anos de
idade, se tornou um artista verdadeiramente criador e
Moderno. Essa vitória de Alberto Carneiro, é
evidentemente, uma complexa vitória contra a ‘cultura’
(académica), que inclui, além de um eminente e
apaixonado autodidatismo, a passagem pelos cursos
noturnos das escolas técnicas, e a formação como
escultor pela Escola Superior de Belas Artes do Porto
[1961-67]; mas também uma vitória contra a tecnologia
cujo longo processo vamos descrever. Entenda-se que esta
vitória só pode entender-se dialeticamente. É como a
afirmação do humano contra a natureza: uma conquista da
natureza sobre si própria.”
Nesse mesmo ano de 1968 em
que Ernesto de Sousa visitava, pela mão de Alberto
Carneiro, os santeiros-escultores onde fizera a sua
primeira formação, o escultor partia para Londres num
momento representativo da recomposição das populações
(nomeadamente da emigração portuguesa), numa vaga de
artistas que saiam do país subsidiados pela Fundação
Calouste Gulbenkian. Ernesto de Sousa descreve esta
passagem:
“Desde 1966 que descubro
Alberto Carneiro. Com ele visitei e estudei os
‘imaginários’ de S. Mamede do Coronado. E fui tendo a
surpresa e alegria (o espanto) de ir conhecendo
as suas esculturas, até 1968. Chama e ternura,
estruturas vegetais e terra, aquelas peças ainda hoje me
fazem lembrar as próprias produções de S. Mamede do
Coronado quando na fase do desbaste (antes do acabamento
académico), e numa outra dimensão, as raízes e os ramos
de árvore de Franklin Vilas Boas Neto (‘Só uma atitude
naïf me interessa...’).
Bruscamente (para mim que
estivera dois ou três anos sem contactar com Alberto
Carneiro, coincidindo precisamente com o tempo de
mudança), em 1971, foi a ‘floresta’ da Bucholz. Dezenas
e dezenas de troncos(centenas na minha memória) cortados
a diferentes alturas enchiam o espaço da pequena galeria
lisboeta, paradoxalmente aumentando-lhe os limites pela
destruição sensível das paredes metamorfoseadas em
horizonte indefinido. A exposição era acompanhada de um
caderno de ‘projetos’ (o ‘Caderno Preto’) –única coisa
transacionável: custava cem escudos e julgo que só se
vendeu um exemplar... Numa das páginas do caderno via-se
um grande plano do autor com as mãos em evidência e uma
legenda onde se podia ler: ‘My hands have no meaning
anymore’.”[16]
Alberto Carneiro entrara para
a oficina de santeiro de José Ferreira Thedim aos 10
anos de idade, depois de concluir a instrução primária.
Até aos 12 trabalhou como aprendiz, a fazer colas e a
lixar, sem ganhar dinheiro. Aos 12 anos começou a
“pontear por grosso” e desbastar as costas dos santos
(começou por uma Sra. De Lanka, padroeira do
Ceilão)...mas tardaram ainda quatro anos até lhe
entregarem as mãos e os pés. Aos 16 começou a “farpar”
(desbastar com mais precisão) na oficina de Avelino
Moreira Vinhas e só aos 20 começaria a trabalhar
cabeças, mas por essa altura abriria uma oficina própria
e voltaria aos estudos na Escola Soares dos Reis.
Alberto Carneiro deixou deliberadamente a oficina de
santeiro antes de saber fazer as cabeças. No “Caderno
Preto”, onde Alberto Carneiro marca o seu percurso
artístico, com partida para Londres em 1968 e o seu
regresso ao Porto em 1971, deparamos com duas portas de
entrada, duas fotografias do autor onde se lê:
“My hands have
no meaning anymore”
“Within your eyes I am Art-Form-Feelings”
Não é que lhe faltasse a
destreza original do santeiro, mas a simbiose que
procurava com a sua obra passaria simultaneamente por um
processo de afastamento do seu lugar de origem –e que
ocorre com um processo de aprendizagem formal até à
finalização dos estudos na Saint Martin’s School em
Londres– e pelo encontro com as experiências estéticas
por si transportadas. No “Caderno Preto” escreve: “A
mensagem varia com a alteração do sinal, mas este é
determinado em função do espectador. O que eu lhe
ofereço é um programa para ação. A significação e
coisificação dos conteúdos está nele; é ele quem lhes
determina os valores e as quantidades.”
Será o entendimento da Arte
enquanto teatro ou programa de ação, a indissociação
entre forma-conteúdo e a extensão entre arte e vida
(onde a ação é mais importante que o resultado final)
que permitirá a Ernesto de Sousa passar do realismo
crítico à vanguarda, entendida enquanto revolução
profundamente transformadora. Desde logo o cinema
regista imagens que, ao procurarem ser, se revelam. Esta
dobra transforma o meio em medium. Transforma o
documento em instrumento de pensamento. Mais disponível
e menos final, a fotografia é simultaneamente um
resultado e uma chave de leitura, documento visual e
ferramenta de um trabalho de observação e pensamento que
implicou a procura e o dar a conhecer, o levantamento e
sistematização, a montagem e desenvolvimento teórico. Só
assim se entende que uma diversidade de trabalho
complementar possa ter surgido, tanto no que respeita
aos paralelismos estabelecidos entre objetos e entre
meios de trabalho, como relativamente ao
experimentalismo acumulado pela diversidade do seu
trabalho e que viria a resultar nos mixed-media.
Este percurso da investigação sobre arte popular e
escultura de expressão popular, na complexidade da sua
condição fotográfica, permitir-nos-á compreender melhor
a expressão “operador estético” com que Ernesto de Sousa
se identificou.
Paula Pinto, Junho 2017
|
[1] Ernesto de Sousa
fundou um cineclube com o mesmo nome (Imagem),
mas oito anos antes tinha já tentado legalizar o Círculo
de Cinema (1946-1948), uma das primeiras sociedade
fílmicas em Portugal. O cineclube Imagem tem os
seus estatutos aprovados pelo SNI a 16/08/1956, tendo
sensivelmente três anos de atividade (1954-1956). Os
críticos da revista eram na sua maioria sócios ou até
dirigentes do cineclube.
[2]Um
outro excerto do texto de Leão Penedo fora publicado sob
o título “O Homem dos Fantoches (um inédito de Leão
Penedo)”, uma Antologia de autores portugueses, na
revista a planície, 1958, p.6. Ver Lénia de
Oliveira, Dom Roberto: da ficção narrativa (quase)
inédita ao fenómeno cinematográfico, Trabalho de
Projeto de Mestrado em Edição de Texto, Faculdade de
Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de
Lisboa, Agosto 2008 (não publicado).
[3]
Por essa mesma altura Ernesto de Sousa tinha
já realizado um documentário sobre O Natal na
Arte Portuguesa (1954) e estava encarregue de
orientar o Centro de Estudos a criar no seio do
Círculo de Cinema Experimental, juntamente com
José-Augusto França, José Borrego, Leão Penedo,
António Neto, Sebastião Fonseca e Fonseca Costa.
Apesar da breve existência do Círculo de Cinema
Experimental (1956-1957), a intenção de constituírem
uma cooperativa de cinema contribuiu para dar forma
ao que viria a ser a Cooperativa do Espectador para
Produção de Filmes (1959), sociedade que tem por
objetivo apoiar financeiramente a produção do filme
Dom Roberto e proporcionar uma perspectiva de
continuidade de trabalho à respectiva equipa.
[4] Fotolito é um filme
transparente (acetato ou poliéster) recoberto com
sais de prata, fotossensível, que serve de suporte
visual para diversos tipos de informações. É o
medium intermediário entre a finalização (arte
final) e o material impresso, geralmente em offset.
Nos anos 60 e 70 era utilizado para produzir a arte
final, através do recorte, colagem e montagem das
artes gráficas. O fotolito era gravado por processo
fotográfico.
[5]
André Malraux, “Museum Without Walls”, em The
Voices of Silence, New York: Doubleday &
Company, Inc., 1953; trans. Stuart Gilbert, Garden
City, NY: Grove Press, 1953 (Primeira edição Les
Voix du silence, Paris: NRF, 1951/ Primeiro
publicado no Paris Match em 1947).
[6] Acerca
do uso de reproduções fotográficas por André Malraux
ver Henri Zerner, “Malraux and the Power of
Photography”, em Geraldine A. Johnson (ed.),
Sculpture and Photography: Envisioning the Third
Dimension, United Kingdom: Cambridge University
Press, 1998, pp.116-130. Ver ainda Georges
Didi-Huberman, L’Album de l’art à l’époque du
“Musée imaginaire”, Paris: Hazan, 2013. Uma
outra autora crítica do uso fotográfico de André
Malraux é Mary Bergstein, “Introduction Essay”, em
Helene E. Roberts (ed.), Art History through the
Camera’s Lens, Gordon and Breach Publishers,
1995, pp.10-11.
[7]
Ernesto de Sousa, “Um Escultor Ingénuo”, in
Colóquio: revista de artes e letras, N.61,
Dez.1970, p.3-13.
[8]
Ernesto de Sousa, in brochura Barristas e
Imaginários: 4 artistas populares do norte,
Galeria Divulgação, Lisboa, 1964.
[9]
Ernesto de Sousa, “Introdução aos estudos e
práticas interculturais”, in II Congresso dos
Escritores Portugueses (1982) – Discursos,
Debates, Moções, Saudações, Edição da APE
(Associação Portuguesa de Escritores), Publicações
Dom Quixote, Lisboa, p.213.
[10] Sobre a
profusão de levantamentos sobre o país ver
Joaquim Pais de Brito, “No tempo da descoberta
de um escultor”, in Onde mora o Franklim? Um
escultor do acaso, Lisboa: Museu Nacional de
Etnografia, 1995.
[11] O
Scandinavian Institute of Comparative Vandalism
foi fundado em 1961 por Asger Jorn, Peter Glob,
Werner Jaconsen (Museu Nacional da Dinamarca) e
Holger Arbman (Universidade de Lund, Suécia) com
o intuito de estudar a cultura Escandinava na
idade das migrações e dos Vikings. Asger Jorn
viajou durante 3 anos pela Escandinávia com o
fotógrafo Gérard Franceschi (que tinha
trabalhado para o Museu Imaginário de André
Malraux) com o intuito de reproduzir visualmente
os diferentes períodos da arte Vândala e de os
comparar com a tradição Clássico-Latina. O
objectivo de Asger Jorn era o de criar uma
alternativa visual à história da arte
tradicional, mas acabou por abandonar o seu
projeto de publicar 32 volumes dedicados ao tema
10,000 Anos de Arte Popular Nórdica,
quando lhe foi recusada autoria académica sobre
o conteúdo histórico. Um arquivo com c. 25,000
fotografias permanece no Silkeborg Kunstmuseum.
[12]
Realizado pelas Associações de
estudantes, o Ciclo de Etnologia e Cultura
Popular contou com a conferencia “Princípios
basilares das Ciências Etnológicas”,
proferida pelo Dr. Ernesto de Oliveira, a
conferencia ilustrada “A Unidade e a
Variedade em Portugal”, proferida pelo Prof.
Doutor Orlando Ribeiro. O Maestro Fernando
Lopes Graça proferiu igualmente uma
conferência ilustrada com exemplos musicais
intitulada “A Música Popular Portuguesa”. O
Arq. António Pinto Freitas fez uma exposição
sobre “Arquitetura Popular” e Ernesto de
Sousa dirigiu um colóquio sobre os
“Barristas e Imaginários”.
[13]
Ernesto de Sousa, “Um Escultor
Ingénuo”, in Colóquio: revista de artes e
letras, N.61, Dez.1970, p.3-13.
[14]
Ernesto de Sousa, “Relatório de trabalho efectuado nos
meses de Outubro, Novembro e Dezembro de 1966” no âmbito
da bolsa concedida pela Fundação Calouste Gulbenkian
para o estudo da escultura portuguesa de expressão
popular. Este documento encontra-se em depósito no
Espólio Ernesto de Sousa na Biblioteca Nacional de
Portugal (D6 cx-4) e no Arquivo da Fundação Calouste
Gulbenkian (SBA-14847). O mesmo relatório está publicado
em Ernesto de Sousa e a Arte Popular, Guimarães:
Centro Internacional de Arte José de Guimarães, 2014,
pp.49-95.
[15]
Ernesto de Sousa refere particularmente a obra do
escultor Teixeira Lopes, de quem Thedim possuía alguns
gessos e em honra dos quais tinha dedicado um espaço
“museográfico” na sua própria oficina.
[16]
Ernesto de Sousa, “Alberto Carneiro. A arte
ecológica e a reserva natural”, in Colóquio, N.16
(2a. série), Fevereiro 1974, p.29. |