HOMENAGEM DO TRIPLOV A JOSÉ ERNESTO DE SOUSA
REVISTA TRIPLOV

de Artes, Religiões e Ciências
nova Série . número 66 . agosto-setembro . 2017 .
ÍNDICE

 


Mauricio Gomes
 (Brasil). Professor de Literatura e Especialista em Jornalismo Cultural. Seu primeiro livro (Des) Caso com a poesia: Inquietações foi lançado em 2012. Em Portugal, participou de uma coletânea de poemas, o nome do livro é Poética. O seu trabalho poético também está na Revista de poesia e arte contemporânea Mallarmargens.
Em 2014 participou do Festival de Poesia Internacional no México e do Festival de poesia da Unesco, também no México. Agosto/15 sairá o livro em bilíngue, português-espanhol, com o título: Sangre Gris, no México. Em junho de 2015, participou do 2ª Encontro de poesia Internacional, novamente no México.

 

MAURÍCIO GOMES

 

Minha quase vida!

 

Tenho no crânio uma flor selvagem, em vez do cérebro. Espinhos de haste e folhas vermelhas e brancas com reflexões venenosas.  Na minha cabeça, ideias escuras para perfumes inebriantes, vermes trançando as bocas dos poetas. Esta noite canto salmos e bebo cachaça, lembrando-se do seu sorriso, ele é como um molde de argila impregnou-se não só na minha memória traiçoeira, está entre meus dedos, minha pele, meu corpo, meu cheiro, meu desejo.

Minha história começa com você de braços cruzados e deitados no parapeito da janela, vendo aquela árvore frondosa, com galhos alongados como se fossem tentáculos de um polvo faminto  esparsos que se cruzam e se encontram e unem e debatem para alcançar os ares e respirar. Era uma figueira. Fazia sombras não só à frente da casa, mas suas folhas e veias alargavam e ocupavam metros de sombreados. Joana ficava todos os dias a olhar a árvore, a sombra, os galhos e as folhas.  Pássaros faziam seus ninhos, botavam, chocavam e lá nasciam sabiás, joões de barro, pintassilgos e nas próximas estações lá estavam eles novamente, alguns até aproveitavam os ninhos já feitos. Galhos secavam, caiam, outros nasciam, folhas secavam, caiam e outras nasciam vigorosas. A figueira se renovava, como uma cobra, desfazia de sua pele seca e se mostrava mais vigorosa e alvissareira. Os braços se alongavam mais e mais, até alcançar a casa e a moça na janela.

Joana não se renovava. Sua vida era um quase. Nasceu naquela casa. Sua vida desde o nascimento foi um quase. Todos que acompanharam a gravidez de sua mãe, diziam que ela estava quase grávida e quando deu à luz, quase o bebê não nasceu.  Assim, foi a trajetória da menina Joana.  

Nunca saiu daquele rincão seco, léguas e léguas da cidade. Hoje, com seus quase 25 anos, não conhece a cidade, a luz elétrica e nem o amor. E nem mais ninguém além dos seus pais,  e nem o ar fora da casa. Sentia prazer e vivacidade ficar debruçada se alimentando da árvore.

Quase a perseguiu a vida toda, como se fosse uma entidade ou um membro da família. Uma palavra indefinida. Uma interrupção na estrutura linear da vida. Um vocábulo indeciso. Um diapasão irritante em confronto com o antes e o depois da voz dita. Vive na retaguarda de uma covardia ululante. Chega a ser abissal sua construção e suas significâncias.  O devir é sombra nas suas costas marcadas de desejos quase.

Há quase cem anos, sim, quase! Plantada à porta de um casebre. Uma muda raquítica e despelada. Quem a visse, jamais pensaria que um dia seria uma grande árvore frondosa, com galhos fortes, lisos, sinuosos e troncos esgarçados e firmes como pedras. Era uma figueira. Quem plantou não sei. Está lá, resoluta, com suas raízes à mostra que rasgam a terra para respirar.

As palavras rasuradas sangraram esta casa, a dor de ser quase, não inteira e nem pedaço. Ficou lá, em um lugar quase.

Havia uma menina de vestido amarelo, a única foto que ficou,  entre escombros e silêncios intermitentes e esculpidos para perfurar os pontos de luz que ousassem entrar naquela casa.

Ela desmente a brancura dos fantasmas, e em torno dela o mundo se desvanece.

Joana se fortalecia à sombra daquela figueira. Era imperativo vê-la todos os dias, ela era uma extensão da árvore ou a árvore uma extensão  da moça.  Joana conhecia muito bem  aquela figueira , como se conhece um mapa à procura de um tesouro, em terras nunca dantes vistas. Qualquer mudança, seja ela climática ou não, ela sabia, acompanhava ávida e vivaz. Houve um tempo que veio uma seca intermitente, de longos meses, em que a chuva ali não passava, foram dias e dias longos e vingativos com as ranhuras da casa e rachaduras da terra. A figueira ficou sem ar, sem forças, seus galhos viçosos e eriçados e firmes, suas folhas vistosas e verdes deram lugar a um corpo desfolhado, murcho, quase sem vida, quase sem ar, quase sem forças. Aquele tronco enorme como se fosse uma coluna grega estava quase morto.  Joana adoeceu. Joana não tinha mais a sombra para cobrir como uma manta seu corpo virginal; não se sentia mais nutrida pelos braços alongados da árvore; seu sorriso moldado foi rachado, agora está seco, precisando de gotas de chuva.

Pela primeira vez, desde que quase nasceu, agora aos quase 26 anos e quase morta, não está mais na janela, tinha saído. Estava deitada, em uma posição fetal às raízes da figueira. Precisava de ar, se restabelecer, ganhar vida, e ali ficou, dias e noites se passaram, não comia, não bebia, se definhava como a árvore. Não havia mais  pássaros e cigarras e lagartos e lagartas e plantas parasitas, só a sequidão consumia aquele local, a figueira e a moça Joana.

 

 
 
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