REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências

nova Série . número 66 . agosto-setembro . 2017 . ÍNDICE

Maria Estela Guedes (Portugal, 1947). Poeta, dramaturga, ensaísta, tem como referência dois livros sobre o poeta Herberto Helder.  Faz parte do conselho de redação da revista eletrónica Incomunidade e dirige, na editora Apenas Livros, a coleção cadeRnos suRRealistas sempRe. Tem umas centenas de títulos de artigos e livros publicados, em Portugal e noutros países.

Foto: José Emílio-Nelson

MARIA ESTELA GUEDES

Ernesto de Sousa: estética e cabeleireiros

Nos 40 anos da Alternativa Zero e nos 30 de Itinerários 

Comunicação ao 3º Encontro Triplov na Quinta do Frade . Tema: Da estética à ética. Mosteiro de Santa Maria, Lisboa . 17.06.2017.

“Sentido irreversível de uma transformação, corte dialéctico arrastando violências e incompreensões, negando as reformas lentas e paulatinas: mutação do estétitico em ético: definição da liberdade futura – utópica, como alcance de todas as acções do presente. Identificação da arte com a Vida. Fronteira e porta em vez de moldura.”

Ernesto de Sousa, catálogo da Alternativa Zero

Perfazem-se agora, em Junho e Julho, trinta anos sobre a retrospetiva “Itinerários”, de Ernesto de Sousa, e quarenta sobre Alternativa Zero: Tendências polémicas na arte portuguesa contemporânea (Lisboa, Secretaria de Estado da Cultura, 1977). A Alternativa Zero, que teve Ernesto de Sousa como autor, mais do que organizador, foi a primeira grande exposição coletiva que se realizou em Portugal de arte contemporânea, aquela arte que então se designava por vanguarda. Mesmo que Ernesto de Sousa não tivesse sido meu Mestre, por isso patrono do TriploV, mesmo que eu não tivesse participado em várias das suas ações estéticas, a oportunidade era boa para o relembrarmos.

Começo então pelo título da minha comunicação, a manifestar o seu desdém por certa obra que eu defendia com o argumento da estética: “Isso da estética é coisa de cabeleireiros!” – repontou ele. E nunca perdia a oportunidade de me desviar o olhar do que eu achava belo, quando o meu gosto denunciava academismo.

Para Ernesto de Sousa, nem a beleza, nem os materiais, nem a boa técnica garantiam o valor da obra, de resto a não-arte é praticada por vários artistas; o que interessava era o processo, e por conseguinte o “in process”, o fluxo, que dera nome ao Grupo Fluxus, a que estiveram ligados, entre outros, Joseph Beuys, Yoko Ono, Wolf Vostell e John Cage (Joseph Beuys era um dos praticantes da não-arte); o que interessa, repito, é o que vai sendo feito como a Vida. Arte é Vida, eis um dos princípios da vanguarda. E se pensarmos que algumas modalidades da arte praticadas então, e ainda hoje, implicam ferimentos corporais, fácil é entender que o mais importante teórico da vanguarda de então em Portugal, Ernesto de Sousa, se insurgisse contra a estética. Estética do classicismo, estética académica,  claro.

Ernesto de Sousa liga-se indissoluvelmente à arte, quer como artista, quer como crítico e teórico dela. Está assim ligado à estética, e de maneira mais evidente para um público largo com o seu filme Dom Roberto, de 1962, interpretado por Raul Solnado e Glicínia Quartim nos principais papéis. Recebeu um prémio no Festival de Cannes. É inovador ao transgredir a estética do filme de pátio, como O Costa do Castelo, para adotar um novo cânone, registado com esse adjetivo na expressão francesa Nouvelle vague. É assim um dos pioneiros do novo cinema português. Ernesto de Sousa associava a personagem do bonecreiro à figura de Charlot.

Tudo o que Ernesto de Sousa apresentou em matéria de arte se rege pelo cânone do novo, por isso tudo foi inovador em 1977, perante os olhos arregalados de um Portugal mal saído ainda de quarenta anos de provincianismo cultural, estético e político.

O que é que apareceu então de surpreendente, a documentar as tendências polémicas da arte portuguesa dos anos sessenta e setenta? Para já, as dezenas ou mesmo centenas de participantes, de todo o mundo, e não apenas portugueses, a estabelecerem o que proponho agora como primeiro ponto de um esboço do cânone estético da vanguarda:

1.  Abolição da moldura e das paredes do recinto fechado do museu, privilegiando-se a rua, a praia, o campo, a porta e a fronteira; neste primeiro ponto, salientaria a obra de Alberto Carneiro, expoente da land art, arte da terra, preferencialmente elaborada com troncos de madeira. O Encontro no Guincho, em parceria com Noronha da Costa, é exemplo assinado por Ernesto de Sousa de intervenção estética encenada ao ar livre. Na Alternativa Zero, a mais impressionante intervenção de arte na rua foi a do Living Theatre, companhia Off Broadway norte-americana fundada em Nova York por Judith Malina e Julian Beck. Foi decerto o ponto mais chocante para a população que assistiu, não só pelas cenas de nudez e sado-masoquismo, como pelo facto de os atores interagirem, em situação intimista, de abraço e conversa sussurrada, com as pessoas do público.

2.  Espera-se que o público participe, que a arte seja coletiva, quer no desenvolvimento de uma ação teatral quer na grafitagem de uma parede. Daí a citação de Franz Fanon, tantas vezes usada por Ernesto de Sousa, “Todo o espectador é um cobarde e um traidor”. A transformação de espectador em participante, isto é, em autor, pressupõe a assunção da responsabilidade inerente à autoria.

3.  O processo é mais importante que os objetos, daí a não aceitação do acabamento, por suspender o fluxo. E porque o processo é o mais importante, a comunicação assume enorme relevo, donde a necessidade de interação com o próprio artista, o autor da obra, de que Ernesto de Sousa se dá como exemplo no encontro com Joseph Beuys. Joseph Beuys era aquele que provocava esse público cobarde e traidor, atirando-lhe margarina, o que evidencia a anti-arte, o interesse social e a conceptualização subjacente a uma tal provocação. Ernesto de Sousa nunca me atirou margarina, mas a nossa comunicação envolvia choques de resultado idêntico. O que eu recebi do Mestre, na Cooperativa Diferença, não foi ensino de técnicas, sim estímulo à abertura de ideias, à recetividade da “pró-vocação” estética. “Pró-vocação”, a favor da vocação, título de duas ou três ações dele, uma das quais me foi dedicada, julgo que em razão de participar nas suas ações, seguindo-lhe os passos, por exemplo ao sugerir a reprodução infinita da sua fotografia de Mitra em colagem de fotocópias.

4.  Esse mesmo choque de ideias, acredito que Ernesto de Sousa o tenha encontrado em Almada Negreiros, artista precursor de tanto na vanguarda, a quem  de Sousa se liga de muitas maneiras, e invocou no ponto chave da exposição de 1977, para explicar o que representava o zero da alternativa zero: o ponto zero a partir do qual surge o “Começar”, painel de Almada na Gulbenkian - a tábua rasa em que emerge o novo.

5.  Arte é festa e celebração, deve ser feita com todos. E ainda o inverso, “A arte também se faz contra todos”, antinomia que encontramos na participação de Leonel Moura, no catálogo. O catálogo da Alternativa Zero é um livro que reúne desdobráveis com colaboração dos participantes, o que faz dele obra de arte coletiva.

6. Característica da vanguarda é o desaparecimento dos géneros tradicionais, em especial da pintura, e sua substituição por dezenas de novas modalidades artísticas : happening, graffiti, body art, land art, performance, instalação, bad art, arte pobre, mail-art, designações que revelam por vezes até que ponto o processo suplantou a importância dos materiais e a própria obra de arte. A vanguarda usa fotocópias, desperdícios, objets trouvés, papelinhos com rabiscos, desenhos em guardanapo, aquilo que já o acaso surrealista e o dadaísmo habituaram a respeitar. 

 

7.  A arte é um laboratório, em que se analisa, investiga, experimenta. Bela metáfora desse experimentalismo é a exposição de pintura de Ernesto de Sousa na Quadrum, já nos anos oitenta, Esse Ouro Dantes. O que há de laboratorial, ou de exemplar nesses quadros é o fabrico das tintas e pigmentos, em processo que alude à alquimia e na pintura tem o aspeto de metal líquido, derramado. “Volta-à-pintura”, de que Ernesto de Sousa participa, decerto provocatoriamente, pois nem sequer era pintor, sim um bom grafiteiro em quadros com moldura, outra forma de se posicionar, inovando, nesse regresso à tradição dos anos oitenta.

8.  Uso dos novos meios e das novas tecnologias da comunicação, o que faz surgirem novas modalidades de arte: o texto e a imagem de computador, o vídeo, a robótica.

9.  Diálogo entre modalidades, especialmente entre música e artes visuais, o que provoca o surgimento de designações como mixed media, multimedia, intermedia, etc.. Almada, um nome de guerra, de Ernesto de Sousa, é um mixed media: alia o filme em que Almada Negreiros se auto-representa a cartazes de Carlos Gentil-Homem (as artes gráficas mereceram-lhe grande atenção), à projeção de diapositivos e à música, sendo as quatro intervenções razoavelmente independentes. Na origem, Jorge Peixinho produziu a sua própria música in loco. Em reposição a que assisti este ano na Cinemateca, esse elemento, agora banda sonora gravada, estava condicionado pela duração do filme, salvo erro quarenta minutos. Em sessão em Madrid, na Fundación Juan March, nos anos 80, foi-me atribuída a função de gerir a mesa de mistura e com ela recebi o cargo de assistente de realização.

10.   Empenhamento em causas sociais e políticas, e neste caso dou como exemplo a ação estética na rua em que participei, em favor da candidatura de Maria de Lurdes Pintasilgo à Presidência da República. O processo foi liderado por Nuno Teotónio Pereira e a ele aderiram vários artistas e alunos da Cooperativa Diferença: Irene Buarque, Fernando Camecelha, Monteiro Gil, Maria Tomás e Albertina Sousa, entre outros a que a memória perdeu o rasto.

Concluindo: um dos propósitos mais arrojados da Alternativa Zero, em 1977, apenas três anos passados sobre o fim da ditadura, durante a qual foi deplorável a sangria de milhares de pessoas, entre elas uma élite intelectual e artística, foi a abertura à arte coletiva, o que escancarou portas aos exilados, e até aos que saíam da prisão, como Nuno Teotónio Pereira. Exilados em si mesmos, exilados da arte no seu próprio país, e exilados reais, muitos dos quais regressavam à pátria depois do 25 de Abril. Exílio de uma arte que então foi de rupturas extremas com o passado na sua faceta nacionalista, académica e comercial, mas que nunca aboliu o passado mítico nem histórico, nunca rejeitou a arte popular dos santeiros, de Rosa Ramalho nem a tradição. E é com essa última aliança que termino, aliás um título de exposição de Ernesto de Sousa na Galeria Quadrum. Tratava-se de instalar nas paredes uma série da mesma fotografia, em grandes dimensões, de uma esculturazinha romana do deus Mitra. A peça, conservada num dos nossos museus, é do tamanho de um polegar. Do casamento entre a escultura romana e a fotografia resultou uma exposição muito feliz, intitulada Tradição e Aventura.

Dez anos depois, em 1987, realizar-se-ia a retrospetiva de Ernesto de Sousa intitulada Itinerários (Lisboa, Secretaria de Estado da Cultura), tripartida pela Gulbenkian, pelo Museu das Janelas Verdes e pela Galeria Almada Negreiros. O catálogo tem muita colaboração minha, em texto e em organização de material fotográfico, feito com Fernando Camecelha e sob orientação de Ernesto de Sousa, que ia avançando legendas de memória, o que produziu alguns erros de datação.

No artigo “Estado de sítio”, nesse catálogo, o artista pergunta em que estado se encontravam as artes em Portugal. Pondo de parte a volta-à-pintura, e ele escreve “volta à pintura” hifenizando os três signos, como se nunca tivesse havido ruptura real, o que ele via era o que já tinha visto nos anos sessenta e setenta. Nada de muito inovador surgia em cena, significando isso que a vanguarda se consolidara naquele estado, e o estado da vanguarda era sobretudo conceptual e experimentalista; nada a viera desautorizar, sim prevenir que o marasmo podia aparecer no horizonte. Eis o que conclui: “Nenhum dos grandes artistas que preconizavam a via analítica ou a da não-arte abandonaram as suas investigações. Sol Lewit, Joseph Beuys, Andy Warhol, Gilbert George, “mail-artistas” e outros performers continuaram as suas investigações”.  

Finalmente, pouco falei de fotografia, apesar de ser a arte mais praticada por Ernesto de Sousa, quer na dimensão cinematográfica quer na de autor de vídeo e de fotógrafo propriamente dito. Para Ernesto de Sousa, leitor de filósofos e no caso de Walter Benjamin, a máxima importância da fotografia não diz respeito à nova arte que gerou, sim à revolução que provocou na arte e nas ideias a sua infinita reprodutibilidade. Como referi, a exposição Tradição e Aventura consistiu em apresentar uma única imagem reproduzida numa série de dez ou doze. Se o conhecimento do deus Mitra, e em particular da esculturazinha, se democratiza com a possibilidade de a sua imagem poder ser vista em todo o mundo, a verdade é que a Arte se dessacraliza na banalidade da repetição.

ALTERNATIVA ZERO
Algumas imagens do catálogo
Alberto Carneiro Ana Vieira
Clara Menères
Ernesto de Sousa
 
Joana Almeida Rosa  
Jorge Peixinho
Living Theatre
 
Helena Almeida  
E.M. Mello e Castro

Leonel Moura

 
HOMENAGEM DO TRIPLOV A JOSÉ ERNESTO DE SOUSA
DIREÇÃO  
Maria Estela Guedes  
EDITOR | TRIPLOV  
ISSN 2182-147X  
Contacto: revista@triplov.com  
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