Começo então pelo título da
minha comunicação, a manifestar o seu desdém por certa
obra que eu defendia com o argumento da estética: “Isso
da estética é coisa de cabeleireiros!” – repontou ele. E
nunca perdia a oportunidade de me desviar o olhar do que
eu achava belo, quando o meu gosto denunciava
academismo.
Para Ernesto de Sousa, nem
a beleza, nem os materiais, nem a boa técnica garantiam
o valor da obra, de resto a não-arte é praticada por
vários artistas; o que interessava era o processo, e por
conseguinte o “in process”, o fluxo, que dera nome ao
Grupo Fluxus, a que estiveram ligados, entre outros,
Joseph Beuys, Yoko Ono, Wolf Vostell e John Cage (Joseph
Beuys era um dos praticantes da não-arte); o que
interessa, repito, é o que vai sendo feito como a Vida.
Arte é Vida, eis um dos princípios da vanguarda. E se
pensarmos que algumas modalidades da arte praticadas
então, e ainda hoje, implicam ferimentos corporais,
fácil é entender que o mais importante teórico da
vanguarda de então em Portugal, Ernesto de Sousa, se
insurgisse contra a estética. Estética do classicismo,
estética académica, claro.
Ernesto de Sousa liga-se
indissoluvelmente à arte, quer como artista, quer como
crítico e teórico dela. Está assim ligado à estética, e
de maneira mais evidente para um público largo com o seu
filme Dom Roberto, de 1962, interpretado por Raul
Solnado e Glicínia Quartim nos principais papéis.
Recebeu um prémio no Festival de Cannes. É inovador ao
transgredir a estética do filme de pátio, como O
Costa do Castelo, para adotar um novo cânone,
registado com esse adjetivo na expressão francesa
Nouvelle vague. É assim um dos pioneiros do novo
cinema português. Ernesto de Sousa associava a
personagem do bonecreiro à figura de Charlot.
Tudo o que Ernesto de
Sousa apresentou em matéria de arte se rege pelo cânone
do novo, por isso tudo foi inovador em 1977, perante os
olhos arregalados de um Portugal mal saído ainda de
quarenta anos de provincianismo cultural, estético e
político.
O que é que apareceu então de
surpreendente, a documentar as tendências polémicas da
arte portuguesa dos anos sessenta e setenta? Para já, as
dezenas ou mesmo centenas de participantes, de todo o
mundo, e não apenas portugueses, a estabelecerem o que
proponho agora como primeiro ponto de um esboço do
cânone estético da vanguarda:
1.
Abolição da moldura e das paredes do recinto
fechado do museu, privilegiando-se a rua, a praia, o
campo, a porta e a fronteira; neste primeiro ponto,
salientaria a obra de Alberto Carneiro, expoente da
land art, arte da terra, preferencialmente elaborada
com troncos de madeira. O Encontro no Guincho, em
parceria com Noronha da Costa, é exemplo assinado por
Ernesto de Sousa de intervenção estética encenada ao ar
livre. Na Alternativa Zero, a mais impressionante
intervenção de arte na rua foi a do Living Theatre,
companhia Off Broadway norte-americana fundada em
Nova York por Judith Malina e Julian Beck. Foi decerto o
ponto mais chocante para a população que assistiu, não
só pelas cenas de nudez e sado-masoquismo, como pelo
facto de os atores interagirem, em situação intimista,
de abraço e conversa sussurrada, com as pessoas do
público.
2.
Espera-se que o público participe, que a arte seja
coletiva, quer no desenvolvimento de uma ação teatral
quer na grafitagem de uma parede. Daí a citação de Franz
Fanon, tantas vezes usada por Ernesto de Sousa, “Todo o
espectador é um cobarde e um traidor”. A transformação
de espectador em participante, isto é, em autor,
pressupõe a assunção da responsabilidade inerente à
autoria.
3.
O processo é mais importante que os objetos, daí a
não aceitação do acabamento, por suspender o fluxo. E
porque o processo é o mais importante, a comunicação
assume enorme relevo, donde a necessidade de interação
com o próprio artista, o autor da obra, de que Ernesto
de Sousa se dá como exemplo no encontro com Joseph
Beuys. Joseph Beuys era aquele que provocava esse
público cobarde e traidor, atirando-lhe margarina, o que
evidencia a anti-arte, o interesse social e a
conceptualização subjacente a uma tal provocação.
Ernesto de Sousa nunca me atirou margarina, mas a nossa
comunicação envolvia choques de resultado idêntico. O
que eu recebi do Mestre, na Cooperativa Diferença, não
foi ensino de técnicas, sim estímulo à abertura de
ideias, à recetividade da “pró-vocação” estética.
“Pró-vocação”, a favor da vocação, título de duas ou
três ações dele, uma das quais me foi dedicada, julgo
que em razão de participar nas suas ações, seguindo-lhe
os passos, por exemplo ao sugerir a reprodução infinita
da sua fotografia de Mitra em colagem de fotocópias.
4.
Esse mesmo choque de ideias, acredito que Ernesto
de Sousa o tenha encontrado em Almada Negreiros, artista
precursor de tanto na vanguarda, a quem de Sousa
se liga de muitas maneiras, e invocou no ponto chave da
exposição de 1977, para explicar o que representava o
zero da alternativa zero: o ponto zero a partir
do qual surge o “Começar”, painel de Almada na
Gulbenkian - a tábua rasa em que emerge o novo.
5.
Arte é festa e celebração, deve ser feita com
todos. E ainda o inverso, “A arte também se faz contra
todos”, antinomia que encontramos na participação de
Leonel Moura, no catálogo. O catálogo da Alternativa
Zero é um livro que reúne desdobráveis com
colaboração dos participantes, o que faz dele obra de
arte coletiva.
6.
Característica da vanguarda é o desaparecimento dos
géneros tradicionais, em especial da pintura, e sua
substituição por dezenas de novas modalidades artísticas
: happening, graffiti, body art,
land art, performance, instalação, bad art,
arte pobre, mail-art, designações que revelam por
vezes até que ponto o processo suplantou a importância
dos materiais e a própria obra de arte. A vanguarda usa
fotocópias, desperdícios, objets trouvés,
papelinhos com rabiscos, desenhos em guardanapo, aquilo
que já o acaso surrealista e o dadaísmo habituaram a
respeitar.
7.
A arte é um laboratório, em que se analisa,
investiga, experimenta. Bela metáfora desse
experimentalismo é a exposição de pintura de Ernesto de
Sousa na Quadrum, já nos anos oitenta, Esse Ouro
Dantes. O que há de laboratorial, ou de exemplar
nesses quadros é o fabrico das tintas e pigmentos, em
processo que alude à alquimia e na pintura tem o aspeto
de metal líquido, derramado. “Volta-à-pintura”, de que
Ernesto de Sousa participa, decerto provocatoriamente,
pois nem sequer era pintor, sim um bom grafiteiro em
quadros com moldura, outra forma de se posicionar,
inovando, nesse regresso à tradição dos anos oitenta.
8.
Uso dos novos meios e das novas tecnologias da
comunicação, o que faz surgirem novas modalidades de
arte: o texto e a imagem de computador, o vídeo, a
robótica.
9.
Diálogo entre modalidades, especialmente entre
música e artes visuais, o que provoca o surgimento de
designações como mixed media, multimedia,
intermedia, etc.. Almada, um nome de guerra,
de Ernesto de Sousa, é um mixed media: alia o
filme em que Almada Negreiros se auto-representa a
cartazes de Carlos Gentil-Homem (as artes gráficas
mereceram-lhe grande atenção), à projeção de
diapositivos e à música, sendo as quatro intervenções
razoavelmente independentes. Na origem, Jorge Peixinho
produziu a sua própria música in loco. Em
reposição a que assisti este ano na Cinemateca, esse
elemento, agora banda sonora gravada, estava
condicionado pela duração do filme, salvo erro quarenta
minutos. Em sessão em Madrid, na Fundación Juan
March, nos anos 80, foi-me atribuída a função de gerir a
mesa de mistura e com ela recebi o cargo de
assistente de realização.
10.
Empenhamento em causas sociais e políticas, e
neste caso dou como exemplo a ação estética na rua em
que participei, em favor da candidatura de Maria de
Lurdes Pintasilgo à Presidência da República. O processo
foi liderado por Nuno Teotónio Pereira e a ele aderiram
vários artistas e alunos da Cooperativa Diferença: Irene
Buarque, Fernando Camecelha, Monteiro Gil, Maria Tomás e
Albertina Sousa, entre outros a que a memória perdeu o
rasto.
Concluindo: um dos propósitos
mais arrojados da Alternativa Zero, em 1977,
apenas três anos passados sobre o fim da ditadura,
durante a qual foi deplorável a sangria de milhares de
pessoas, entre elas uma élite intelectual e artística,
foi a abertura à arte coletiva, o que escancarou portas
aos exilados, e até aos que saíam da prisão, como Nuno
Teotónio Pereira. Exilados em si mesmos, exilados da
arte no seu próprio país, e exilados reais, muitos dos
quais regressavam à pátria depois do 25 de Abril. Exílio
de uma arte que então foi de rupturas extremas com o
passado na sua faceta nacionalista, académica e
comercial, mas que nunca aboliu o passado mítico nem
histórico, nunca rejeitou a arte popular dos santeiros,
de Rosa Ramalho nem a tradição. E é com essa última
aliança que termino, aliás um título de exposição de
Ernesto de Sousa na Galeria Quadrum. Tratava-se de
instalar nas paredes uma série da mesma fotografia, em
grandes dimensões, de uma esculturazinha romana do deus
Mitra. A peça, conservada num dos nossos museus, é do
tamanho de um polegar. Do casamento entre a escultura
romana e a fotografia resultou uma exposição muito
feliz, intitulada Tradição e Aventura.
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