REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
nova Série . número 66 . agosto-setembro . 2017 . ÍNDICE



Joana Ruas
(Portugal). Trabalhou como jornalista cultural e tradutora na Radiodifusão Portuguesa e no jornal Nô Pintcha da República da Guiné-Bissau. Participou na causa da Libertação do Povo de Timor-Leste, tendo feito várias conferências sobre a Língua Portuguesa em Timor-Leste, sua história e cultura. Entre poesia dispersa e ensaios é autora dos romances, Corpo colonial, O claro vento do mar e A pele dos séculos. Participou na IV Feira do Livro de Díli onde apresentou o romance A batalha das lágrimas e o livro de contos Crónicas timorenses respetivamente o 1.º e o 2.º volume da tetralogia A pedra e a folha sobre cem anos de Resistência Timorense.

JOANA RUAS

Apresentação do livro
“Cem anos de Resistência Timorense”
 
Comunicação ao 3º Encontro na Quinta dos Frades. Lisboa, Mosteiro de Santa Maria, 17 de junho de 2017.

Os meus agradecimentos à escritora Maria Estela Guedes pelo convite que me fez para estar convosco neste Encontro na florida e tranquila Quinta do Frade. Vou ler-vos  a comunicação que fiz na Fundação Mário Soares onde em 2015 foi lançado o meu livro Os Timorenses (1973-1980), terceiro volume da tetralogia A Pedra e a Folha .

Na Fundação Mário Soares, a minha apresentação do livro aborda  apenas o período  que vai de 1973 a dezembro  de 1975, altura em que Portugal , frustrado o processo de descolonização, retira em agosto   de 1975 para  Ataúro,  abandonando  o território quando se concretiza a invasão indonésia em dezembro desse ano. A população portuguesa residente no território compreendia desde militares exilados por tentativa de derrube do regime, como de estudantes que participaram nas revoltas estudantis e que cumpriam o serviço militar obrigatório e também goeses.

Timor era no imaginário do império português a Pérola do Oriente. Em Díli, nos derradeiros anos do nosso império, uma charada animava as conversas entre portugueses nas reuniões de convívio. O tema desta charada andava em torno do enigma da pérola que em Timor Português não tinha a sua origem numa ostra mas num coco. A mordaça  da censura por parte da polícia política do regime, tapava a boca a toda a gente levando a que a expressão do pensamento  ocultasse, numa forma erudita, a significação política nela contida. Gertrudes, uma das personagens portuguesas desta obra, por uma intuição de que se achavam no fim  do império português, lança aos seus amigos e convidados o enigma da pérola escura. Gertrudes frequentara na sua juventude , em Lisboa os meios literários então em voga como o Café Gelo onde Herberto Helder se sentava a conversar com Carlos de Oliveira, o Vavá onde pontificavam Paulo Rocha e Cunha Telles, o Tony dos Bifes e o Monte Carlo.

No contexto de Timor-Leste, a China era um algures  impenetrável para a escassa cultura dos funcionários da Pide /DGS. Mas não era um algures estranho pois historicamente, Timor Português manteve ao longo dos séculos estreitas relações com Goa e Macau. Apesar de em finais do século XIX, Celestino da Silva ter tornado Timor independente de Macau,  a influência  da cultura chinesa manteve-se sempre em Timor devido não apenas a emigrantes chineses mas também  a estudantes timorenses e a religiosos que tendo  completado os seus estudos no Seminário de São José em Macau, foram depois colocados em Timor. Estes missionários levaram para Timor Português o legado do napolitano  Matteo Ricci (1552-1610) que tendo chegado a Macau em 1582, para a evangelização da China, ali estudou a língua chinesa. Deve-se a este jesuíta um método prático para o bom sucesso da missionação assente nos seguintes princípios: uma política de adaptação à cultura chinesa; a propagação da Fé através das elites; a propagação da Fé através do ensino; a abertura aos valores chineses e a tolerância em relação aos seus ritos.

Nos anos 60 do século XX, no Seminário de Dare lecionavam Jesuítas de tendências liberais como o Padre André Días  Rabago e José Rodriguez que  contribuíram  para o aprofundamento das bases teóricas  do pensamento nacionalista em Timor. Entre os que frequentaram o Seminário de Dare encontram-se figuras de renome como Nicolau Lobato, Rogério Lobato, Francisco Xavier do Amaral, Domingos Oliveira, Francisco Borja da Costa, Manuel Carrascalão e José Alexandre Gusmão. De Macau chegava igualmente uma cultura laica e liberal, oriunda da sua intensa e secular vida cívica.  Em Macau, o poder residia no Senado. Desta  pequena república mercantil , já em 1647 o governador D. João Pereira a ela se referia dizendo:«[...] que se acha este Povo tão livre, que os que nele temos o cargo governar, não nos é possível mais que governar pelos ditames de seu querer».

Durante muitos anos, intrigada pelo sentido oculto desta charada,  ao tentar  decifrá-la, dei-me conta de que nela pulsava algo mais profundo. Encontrei na obra do filósofo chinês  Chuang-Tzu (280 A.C), o texto que teria inspirado o anónimo criador desta charada. Ei-lo: «O Soberano Amarelo dirigiu-se um dia ao norte do Rio vermelho, subiu o Monte  K´oun-loun e abarcou o sul com o olhar. Ao regressar a casa constatou que tinha perdido a «pérola  escura».  Fê-la procurar pela Inteligência que a não encontrou; depois pela Perspicácia que a não encontrou; enfim pela Análise que também a não encontrou. Foi finalmente Sem Imagem que a encontrou. O Soberano Amarelo disse para consigo :«Não é estranho que tenha sido Sem Imagem que a tenha podido encontrar?»

Vejamos o que os exegetas, entre os quais se acha o estudioso Jean François Billeter,  revelaram sobre os diversos sentidos deste texto: a pérola perdida indica algo de muito precioso e a sua cor escura indica a sua obscuridade ontológica, obscuridade  que  na sua charada, o inventor  anónimo alude à separação de Timor-Leste do contexto em que se inseria, acontecimento que se deveu  á chegada dos portugueses a Lifau há precisamente 500 anos. O soberano Amarelo é uma figura lendária e, sendo amarelo , está posicionado ao centro. Na China, no norte está o poder, está o detentor da autoridade e no sul estão os seus súbditos. Na China antiga,  a ideia de dominação exprime-se na  relação do alto e do baixo. Ao dever de submissão dos súbditos para com o alto correspondia o  direito do alto de domínio para com o baixo. O fundamento deste edifício era o povo que não tinha senão o dever de submissão.

Tendo-se dirigido ao norte, o soberano Amarelo abarca com um olhar de posse   os seus domínios. Estando pela sua natureza posicionado ao centro, esta atitude sobranceira infringe as regras do bom funcionamento das coisas, pois coloca-o acima do mundo para o  dominar a partir do exterior.  Esta rotura tem um preço e quando chega a casa percebe que perdeu a sua pérola escura, uma joia quase sem visibilidade mas a que ele atribui grande valor.

 O texto revela que há uma incompatibilidade entre a fruição da joia e o desejo de dominação pois é  no regresso a casa ,quando já despido da sua autoridade, é que o imperador dá por falta dela. Encarrega então a Inteligência, a Perspicácia e a Análise para que lhe encontrem a pérola perdida, o que faz com que nesta iniciativa se humanize e caia no registo da consciência intencional e no registo das distinções e dos raciocínios , atitude imprópria ao poder. Mas nada alcançando a partir  destes registos, entrega a tarefa ao Sem Imagem ou, para alguns tradutores, ao Sem Nada ou ao Sem Ideias. O sábio que é Sem Imagem ou Sem Ideia , esquece o poder que o espírito tem de distinguir arbitrariamente os fenómenos tomando-os por realidades objetivas e encontra-a. O Soberano Amarelo, que se achava sozinho, uma vez a pérola escura encontrada, exclama espantado: «É estranho que seja Sem Imagem a encontrá-la». A figura de Sem Imagem ou Sem Nada exprime o sentimento de opressão experimentado pelos intelectuais chineses face a um poder político despótico que a partir dos primeiros imperadores  da dinastia Hanshu, uma ordem imperial impôs a unificação da cultura e uma harmonia social entendida como uma submissão às relações de força.

 No momento em que o imperador reconhece com espanto a eficácia de alguém que tem sobre as coisas um olhar novo porque se não insere na totalidade dos submissos onde a violência deve ser mantida discreta para não perturbar a harmonia do conjunto, as suas ideias de dominação desaparecem.

Todas estas linhas temáticas se entrecruzam na personagem  Gertrudes que nesse momento especial da sua vida cívica e conjugal  sente que é necessário que a realidade dos seres e dos factos se revelem sem constrangimentos de qualquer natureza. A nossa cultura literária e histórica não tinha até então dado contributos de vulto a uma abordagem totalmente nova da situação colonial o que perante a  inevitabilidade da mudança que se anunciava deixava os portugueses e as diversas comunidades residentes nas colónias perante o desespero de um futuro incerto. Gertrudes, cujo contacto com os surrealistas a tinha dotado de uma imaginação operante,  ao questionar-se , no vaivém  de imagens construídas durante os 500 anos de domínio colonial, viu apenas o funcionamento da nossa subjetividade.

                   Ao propor-me escrever uma obra sobre o processo histórico timorense, tive que vencer o despotismo dos cânones literários  e não menos velhos preconceitos. A Europa e a Ásia viveram em mundos separados no passado, mas as separações antigas caducaram. Os Timorenses partilharam connosco ,durante séculos, as atribulações e os progressos da modernidade. E, em 1973,  já toda a gente se achava no direito ao inventário, estabelecendo clandestinamente um diálogo a partir de raízes culturais comuns.

A partir da assunção da unidade essencial da experiência humana, achei que era preciso inverter o mecanismo da circularidade fundada na crença de que o pensamento timorense seria diferente do nosso e  compreender, a partir da realidade, o que a experiência deles tem de comum  com a nossa e o que nos diferencia. Em louvor do que se perde, era necessário, para mim,   recusar a propaganda do regime em fundar em natureza o poder imperial português e olhá-los, finalmente, com um olhar novo.

Apesar das posições muitas vezes ambíguas dos partidos que tinham do passado colonial visões diferentes e mesmo incompatíveis e apesar das dificuldades em encontrar uma saída para a trágica situação em que se achava o povo de Timor-Leste, com as liberdades políticas e a democracia que a Revolução de Abril nos legou, sem objetivos de dominação colonial, Portugal, antiga potência colonial e autoridade administrativa de Timor-Leste, apesar da independência ter sido unilateralmente declarada pela FRETILIN, apesar da invasão do território, o Portugal democrático não desistiu da sua missão e dos seus deveres para com o povo timorense. A 31 de Março de 1976 a nova Constituição Portuguesa dedica o seu artigo 307 à «Questão de Timor-Leste» e vincula Portugal à responsabilidade de promover e garantir a independência de Timor-Leste .

Creio que a minha obra se enquadra no horizonte de um novo paradigma  no relacionamento entre o povo português e o povo da RDTL aberto pelos dois princípios fundadores da Revolução de Abril e consagrados pela Constituição de 1976: a Liberdade e a Justiça.

Muito obrigada pela vossa presença e pela vossa atenção.

Joana Ruas, Quinta do Frade, 17 de junho de 2017.

 

Bibliografia:

Ruas, Joana, Os Timorenses (1973-1980), Sextante Editora , 2015.

Billeter, Jean François, Leçons sur Tchouang-tseu, Editions Allia,2006.

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