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REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
nova Série . número 66 . agosto-setembro
. 2017 .
ÍNDICE
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JOSÉ MARÍA FONOLLOSA
Onze poemas
Versões de Luís Costa
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Kennamore Street
Quero que sofras o que sofro:
Aprenderei a rezar para que
isso aconteça.
Quero que te sintas tão
inútil
Como um copo sem whisky
entre as mãos
Que sintas no peito o coração
Como se fora o de outro e te
doesse
Quero que assomes a cada hora
Como um preso pregado à sua
janela
E que sejam as pedras da rua
A única paisagem de teus
olhos
Desejo a tua morte onde quer
que estejas.
Aprenderei a rezar para que
isso aconteça.
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Worth street
Um homem morto não é nada. é
só um
Pequeno vulto ali estirado no
solo.
A sua postura incómoda na
calçada
Sob aquele peso tão imóvel,
molestada,
Causa mais aversão do que
respeito.
Não há grandeza na morte
desses homens
Que morrem, ou são
assassinados, nas ruas.
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Mulberry street
Dizem que ajoelhar é
humilhante
Que esta é a posição do
vencido
Do submisso, do vil, do que
renuncia
À última esperança de
salvar-se.
Que estar de joelhos numa rua
Num templo, ou salão, ofende
inclusive
Aquele que o contempla e não
o impede.
Como ofende uma bomba que não
estoira
Em que confiara ser certa a
explosão.
Sim. é ignóbil a atitude de
ajoelhar
Diante de outro ser, quando o
sujeito
É passivo, mas não se for
ativo.
Porque há uma exceção em que
é vitória
Gozo e satisfação, esta
postura:
Quando o sexo a exige
ansiosamente
Então é divino ajoelhar.
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Bedford street
Ela deu-me a faca e disse:
crava-a
No segundo espaço
intercostal.
Qual é? perguntei-lhe. abriu
a blusa
E assinalou, risonha, um
ponto: aqui.
Algo devia haver naquela
viagem
Que a fazia diferente. mais
intensa.
Viam-se mais coisas.
ascendíamos
A inéditos sons e raras
cores.
Não havia confusão. até o
detalhe
Mais ínfimo nos era
compreensível.
Sugeri: por que não com
barbitúricos?
É lento, retorquiu. já
experimentei
E o ácido gástrico é horrível
Como um trauma, porém,
físico.
Substituí o seu dedo pelo meu
E ali apoiei a faca
suavemente.
E cravei-a de repente. Não
fosse
Mudar de ideia, se eu fosse
lento.
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Doyers Street
Não virá. de verdade. nunca
virá.
O meu quarto é humilde para o
êxito.
Nem acharia a casa tão
sequer.
O meu quarto é austero para
os amigos.
Ninguém se reúne entre estes
muros.
O meu quarto é também frio e
pequeno.
Como cobiçar, pois, um grande
amor?
Não é lógico esperar. Nunca
virá
Um êxito, um amigo, um grande
amor.
Devia fechar a porta para
sempre.
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Spring street
Não me venham com histórias.
Que a vida é algo espiritual,
portanto,
Superiores os bens do
espírito.
Que ser útil, cuidar dos
enfermos,
O teatro, a pintura, os
livros, a música,
O desporto, o cinema, o
grande dinheiro…
Ao ânimo satisfazem-no as
delícias.
Não me venham com histórias
infantis.
O deleite supremo é o orgasmo
O resto são somente leves
signos
Pobres insinuações do prazer
Que se obtém encostando-se às
raparigas.
E ejaculando nelas como um
deus.
Para os outros: o gozo
secundário.
Para mim: o gozo intenso, a
mulher.
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Entro em casa. Entramos ambos
Mutuamente, iludindo-nos,
sombrios.
Está cansado. sinto o seu
cansaço.
Antes não me cansava com o
meu corpo.
Olho-o no espelho. Está em
silêncio.
Abatido. presumo a sua
derrota.
Pesaroso. Escarro-lhe várias
vezes.
Talvez se compadeça e lhe doa
a lástima.
Acaso me compreenda e me
desculpe.
Quem sabe também sofrerá ao
saber-se
Indesejado em mim e julga que
é inútil
Pretender que tolere a sua
presença.
Aborreço-o, é verdade. e o
meu desprezo
Espalha-se pelo seu rosto,
muito pálido,
Como áspero matagal pelo
monte.
E golpeio o cristal que mo
mostra.
Até que o faça fugir do meu
olhar
Sangrando-lhe as mãos. ou
serão as minhas
Pela dor que corre por entre
os dedos
E vocifera alertas na minha
mente?
Porém ali está, no solo. em
mil lugares
Distingue -se a sua face
atribulada
Que me observa. E transforma
a sua expressão
Na atitude absorta que era
minha.
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Deixo correr o sangue dos
pulsos.
Estendido na cama examino-o.
Os Lençóis absorvem-no
docemente
Com a quieta avidez da sua
brancura.
Brota incessante. em
borbotões.
Morno e curioso assome às
minhas mãos
E escapa-se, pressuroso, das
minhas mãos.
Mãos de derrotado. deviam
colher
A glória, amor, colher
dinheiro.
Um dia acreditei estarem
altura dele.
Porém, nada aprenderam. não
eram hábeis.
Ou o empenho excedeu a sua
exígua força.
Pobres mãos humildes e
vazias.
Tremem um pouco. tremem
assustadas.
Assustadas e débeis, parecem
pedir
Desculpa porque são
medíocres.
Sorrio às minhas mãos.
uno-as.
Ergo-as. sinto-as desvalidas.
E vejo como rasteja,
silencioso,
Esse sumo, tão vermelho, da
vida.
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Subo a escadaria de minha
casa
Devagar, descontente,
taciturno,
Tão só um pensamento me
conforta:
As casas estão cheias de
frustrados,
De seres como eu, sem aptidão
Para serem singulares como
enxames
Pese a aspirar brilhara sua
própria luz
Pouco a pouco foram-se
aconchegando
A um amor, profissão, final
destino
Que não era o que ansiavam. e
estão sós.
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Não à transmigração noutra
espécie
Não à post vida, nem
no céu, nem no inferno.
Não a que me absorva qualquer
divindade.
Não a um mais além, nem que
seja o paraíso
Reservado a islamitas, com
beldades
Que um selo garantisse sempre
virgens.
Porque esses são jogos para
ingénuos
Em que o meu agnosticismo
nunca aposta.
Aposto no não ser. no que é
seguro.
Recuso outra vida, quando
consumida
Minha ração deste guisado
intragável.
Outra vez, não. uma vez já é
demais.
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Somos a maioria. mais fortes
pelo número.
E criamos o vazio ao teu
redor.
Isolando-te num muro de
silêncio
Ou de burlas ofensivas, se
teus gritos
Assomam aos tapumes que te
encerram.
Trituraremos tua obra
enquanto vivo
Deixaremos, no entanto, para
ti
A manhã e o futuro. é o nosso
obséquio
Sonham nele as tuas noites
marginais.
Não esqueças que o hoje nos
pertence.
Entre nós repartimo-lo. este
troço
de honras e dinheiro para
aquele,
Para este e para mim novas
benesses…
Ocupamos os postos
importantes.
Jamais permitiremos que se
premie
A tua originalidade. ser
diferente
É p’ra nós uma coisa
intolerável,
Pois somos normais, os
medíocres.
Somos a maioria. mais fortes
pelo número.
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José María Fonollosa
(Barcelona, 8 de agosto de 1921; 7 de outubro de 1991).
Viveu durante vários anos em Cuba e Nova Iorque), foi um
poeta espanhol do pós-guerra. É considerado um caso
singular da poesia espanhola, um poeta secreto (tal como
um Kaváfis) à margem das correntes literárias do seu
tempo,
totalmente desconhecido do público e da critica.
Publicou o seu primeiro livro com 23 anos. Dois anos
mais tarde cinco poemas sob o título umbral del silencio
e em 1951, em colaboração com Alfredo Papo,
Blues y cantos espirituales negros.
A partir daqui a sua obra permanece
secreta.
Continua a escrever, mas deixa de publicar. Em 1990 Pere
Gimferre resgata-o do anonimato ao publicar Ciudad del
hombre: Nueva York.
O tom da poesia de Fonollosa
é áspero, violento, seco e dilacerante, por vezes até,
cruel e sarcástico. Os seus versos apresentam um retrato
profundo das fobias, ilusões e fracassos do homem
contemporâneo. é uma poética visceral e
transgressora.
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Bibliografia:
La sombra de tu
luz (1945)
Umbral del
silencio (1947)
Blues y cantos
espirituales negros (1951)
Ciudad del
hombre: Nueva York (Sirmio, Barcelona, 1990).
Ciudad del
hombre: Barcelona (Bauma, Cuadernos de Poesía,
Barcelona, 1993).
Ciudad del
hombre: Barcelona (DVD ediciones, Barcelona, 1996).
Poetas en la
noche (Quaderns Crema, Barcelona, 1997)
Ciudad del
hombre: Nueva York (Ediciones El Acantilado, 2000).
Destrucción de
la mañana (DVD ediciones, Barcelona, 2001).
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HOMENAGEM DO TRIPLOV A ERNESTO DE SOUSA |