O genérico de D. Roberto
são mais de 2 minutos e 30, de um
plano aproximado, em que um fantoche, à direita no
enquadramento, vai dando porrada de criar bicho (para
usar calão popular), em três outros que ocupam e
desocupam sucessivamente o lugar do fantoche que leva
porrada. É a repetição infindável de uma acção simples,
em que há alguém que dá porrada, e outros,
que a recebem, num ciclo interminável de injustiça, ou
de justiça invertida.
O fantocheiro é João Barbela,
conhecido por D. Roberto, que tem por clientela os putos
pobres de rua, fascinados por aqueles bonecos que se
mexem sozinhos e que, com vozes estrídulas, mimetizam e
enfatizam personagens reais e inventadas, na mais antiga
das artes cénicas, com a função de divertir e libertar
catarticamente as almas daqueles que por eles se deixam
seduzir.
Os fantoches são do mestre
António Dias. O genérico é graficamente forte, com os
nomes da ficha técnica e artística bem visíveis,
sobrepostos, ao modo de
bocados de papel recortado, sobre o plano dos fantoches.
Quando acaba o genérico,
encontramos uma linguagem fílmica mais clássica, com a
sucessão de planos colada à narrativa, sem grande
variação de escala de planos (revelando os fracos meios
de produção do filme), e o tempo dos planos definido
pelo tempo da acção.
D. ROBERTO poder-se-ia intitular
D. POVO. A arte popular, usufruida pelo povo (“PORQUE
CONSIDERO O POVO MAIS RICO, MENOS COMPROMETIDO COM A
FALSA CULTURA QUE VAI SENDO A NOSSA”, Ernesto de Sousa)
e ministrada pelo povo. Não um povo categoria
sociológica, mas um povo que se aproxima da sua
figuração antropológica, muito mais complexa e digna de
observação.
Esta opção aponta claramente
para uma dessacralização da arte, a
arte como acto libertador da expressão de cada um. Esta
arte não pode e não deve estar submetida ao julgamento
de uma élite, seja ela consumidora, criadora ou crítica.
Ao assistirmos a D. Roberto,
sentimos a empatia mágica, genuína que atravessa outros
filmes, tais como: Ladrão de Bicicletas (1948), Milagre
a Milão (1950) de Vittorio di Sica, Terra Treme (1948)
de Luchino Visconti, Os suspeitos do Costume (1958) de
Mario Monicelli, Os Saltimbancos (1951), Nazaré (1952)
de Manuel Guimarães _ uma empatia profunda para com os
pobres, os mendigos, os desempregados, os desalojados,
os “mal-aventurados”.
Os “mal-aventurados”,
expressão de Ernesto de Sousa, para designar o
público alvo do seu filme. Embora esses mal-aventurados
muito provavelmente não tenham ido à estreia no Cinema
Império, em 1962. Talvez o preço do bilhete fosse
demasiado para as suas carteiras e a clientela chique do
cinema os tenha afastado, talvez nem tenham sabido que o
filme a eles se dirigia, nem que ele, aí,
ia ser exibido. O cinema Império tinha sido
inaugurado em 24 de maio de 1952, tinha um total de 1676
lugares. Era um cinema moderno, elegante, e muito
frequentado. Na década de 50 e 60 recebeu o 1º Festival
da Canção em Portugal, e as orquestras de Count Basie e
Quincy Jones.
Na ficha técnica, a designação
do género do filme é Comédia e Drama. A comicidade é
sobretudo dada por Raul Solnado, o drama é a dura vida
de João Barbela e Maria, sem casa, trabalho inconstante,
ganhos míseros, à deriva numa cidade em que as gentes os
recebem com simpatia, mas que se mostra incapaz de os
assimilar. Acabam por ocupar uma casa, que no final do
filme é demolida, e são, mais uma vez, expulsos. Acabam
por sair de Lisboa, não há lugar para eles. O Paraíso é
constantemente adiado!
O que salva estes
“desventurados” é a sua capacidade onírica, a
criatividade exposta no teatro de robertos, e em Maria,
na forma como ela idealiza a casa em que estão, que é
uma ruína completa, e ela imagina-a acolhedora,
protectora, sua. Vivem os dois o Teatro da Felicidade.
Teatro da felicidade, para quem?
“Qual é o público dos filmes
portugueses?
Ernesto de Sousa_
“Essencialmente o povo, as pesssoas que vão ver as caras
que lhe são familiares, e ouvir falar a sua língua”.
(entrevista)
É do particular que fala Ernesto
de Sousa, das caras conhecidas, e de uma língua
determinada, a portuguesa. E é notória a sua preocupação
em conquistar esse público, que começa logo na escolha
dos actores.
Para protagonistas: Raul Solnado
(1929-2009) actor e humorista já instalado no meio, que
em 1961 havia interpretado o sketch “A Guerra de 1908”
(de grande êxito), adaptado pelo mesmo, do espanhol
Miguel Gila, na revista “Bate o pé”, estreada no Teatro
Maria Vitória. Glicínia Quartim (1924-2006) encarna
Maria, actriz, na época, já com trabalho de teatro e
televisão em carteira. E que virá a fazer peças dos mais
diversos dramaturgos, de Genet a Pier Paolo Pasolini,
passando por Gil Vivente, Beckett, Bernardo Santareno,
etc. E que terá forte presença no cinema português dos
anos 70, 80 e 90.
Nos actores secundários,
encontramos nomes que conhecemos: Nicolau Breyner
(1940-2016), actor, realizador, humorista. Rui Mendes
(1937-), actor, encenador. Fernanda Alves (1930-2000),
actriz, encenou também a peça "O facto importante" de
Luísa Neto Jorge (1998) para o Teatro da Cornucópia.
E porque o Cinema, é
essencialmente um trabalho de equipa, encontramos :
Victor Palla, Abel Escoto, Armando Santiago, Leão
Penedo, Pablo del Amo. Victor Palla, que faz o genérico
(1922-1906), é arquitecto, fotógrafo, pintor, designer,
escritor, editor, autor de muitas das capas da coleção
Os Livros das Três Abelhas. Abel Escoto (1919-2014),
director de fotografia, à altura tinha sido o director
de fotografia das reportagens de actualidades
“A visita da Rainha Isabel II de Inglaterra a
Portugal” (1957). Armando Santiago (1932-), autor da
música, compositor, musicólogo, pedagogo. Pablo del Amo
(1927-2004) montador que ganhou por diversas vezes o
Prémio Goya para a melhor montagem.
Leão Penedo (1916-1976) foi o
argumentista. Em 1958 Manuel Guimarães já havia
adaptado o romande Circo, para o seu
filme Os Saltimbancos. Foi também, juntamente com
Perdigão Queiroga, coo-argumentista, do filme Sonhar é
fácil. Os seus livros fazem parte do imaginário
neo-realista, em que os mais desfavorecidos, os mal
aventurados se transfiguram em heróis, figuras de grande
força moral e onírica, capazes de apagarem a monstra
miséria que os amarfanha.
Dom Roberto começou a ser
produzido em 1954, com um orçamento baixo, angariado
pela Cooperativa dos Espectadores, saída do movimento
cineclubista português, de que Ernesto de Sousa foi um
dos fundadores. Foi produzido sem dinheiro do Estado,
sem o amen do regime. A Cooperativa dos Espectadores
definiu a angariação dos fundos para o filme e como uma
forma de se “opôr aos compromissos exclusivos de
especulação comercial, no interesse de um público
esclarecido na produção de filmes de qualidade”.
Este esforço de ascensão à
qualidade (entenda-se, por qualidade, a ruptura com o
estado das coisas vigente, tanto em termos de produção
como de realização), está patente na ficha técnica, na
tessitura de pessoas que são chamadas ao filme, onde
também é de referir o poeta Alexandre O´Neill
(1924-1986), figura cimeira do movimento surrealista
português.
O filme foi
seleccionado para o festival de Cannes, onde ganhou a
menção Especial do Júri do Melhor Filme para a
Juventude. Ernesto de Sousa foi preso pela Pide (polícia
política) em Maio de 1963, para evitar que este
estivesse presente na exibição do filme. A atribuição do
prémio, teve um óbvio carácter político, de crítica ao
regime ditatorial, que veio a perdurar até ao ano de
1974.
Entre o fascínio e a
incomodidade, a “mentira vital” da arte afirma-se como
forma de supervivência, por oposição à sobrevivência,
que enforma o quotidiano claudicante.
Uma frase de Maria perdura na
memória. Ela transforma João Barbela e a sua arte no
mesmo: “ É a tua arte, é o que tu és!”.
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