Em 1968, num texto a que deu
o título de “Carta do Futuro”, Ernesto de Sousa
posicionava-se ficticiamente algures num tempo futuro
para melhor olhar e enquadrar o presente, que assim se
constitua como passado. E fala desse tempo como a “era
das mediações”: “o tempo, em que até o amor se fazia
através de uma mediação: o psicanalista! Os Poetas
diziam das mulheres, ‘elles coulent comme de l’eau’.
Referindo-se ao futuro, talvez o nosso presente, ele
dirá ainda: “hoje, nesta nossa civilização hermafrodita,
não só dos dois sexos se pode dizer a mesma coisa. Mais
ainda de todas as relações humanas que elles coulent
comme de l’eau” (Sousa 1987: 18).
Este
pronúncio do híbrido, da mistura, do cruzamento e da
indefinição daí derivados estava já evidenciada no ar
dos tempos. A transdisciplinaridade, a transversalidade,
a transculturalidade, a transhistória e mesmo a
transexualidade ganhavam espaço nas fronteiras diluídas
entre arte e vida e da vida como arte. O sociólogo
Zygmunt Bauman, conhecido pelas suas análises teóricas
em torno da Modernidade Líquida e do Amor
Líquido escrevia 40 anos depois, num livro
denominado The Art of Live, em 2008, que “somos
todos artistas das nossas vidas — sabendo-o ou não,
voluntariamente ou não, querendo-o ou não. Ser um
artista significa dar forma e corpo ao que de outro modo
não o teria. Manipular probabilidades. Impor uma ‘ordem’
no que de outra forma seria ‘caos’: ‘organizar’ uma
outra forma caótica — casual, aleatória e não
previsível” (2008:125).
Esta
perspetiva que recolocava as “relações humanas”
produzidas, quer no campo artístico, quer no campo
social, numa espécie de laboratório experimental onde se
geravam encontros/ processos e coisas inesperadas e
fluídas, como a água, precisa frequentemente de
figuras de mediação, como foi Ernesto de Sousa.
Quase
50 anos passados sobre a escrita deste texto
devemos-lhe, através dos seus encontros, escritos e
depoimentos,
a visibilidade de uma história de relações da arte mais
experimental em Portugal: desde o sublinhar das questões
da história-sem-história das vanguardas
portuguesas; à criação da Alternativa Zero; à
preocupação constante em achar o conceito mais adequado
para classificar as práticas artísticas emergentes à
altura, como foi o caso da performance;
passando pelos encontros e relações com os criadores
nacionais e internacionais dessas práticas, fossem eles
do campo da arte dita de vanguarda, quer da arte
popular.
Ernesto de Sousa procurou a seu
tempo criar futuros para a arte portuguesa e feita em
Portugal, sem ele o nosso tempo não seria o mesmo.
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Bibliografia
Bauman, Zygmunt (2008),
The Art of Life, UK, Polity Press.
Madeira, Cláudia (2007), O
Hibridismo nas Artes em Portugal, Tese de
Doutoramento, Repositório da Universidade de Lisboa.
Sousa, Ernesto de (1987),
“Carta do Futuro [1968]”, in Carlos Gentil-Homem e João
Carlos Rocha (orgs.), Catálogo Itinerários, Ernesto
de Sousa, Casa de Serralves, Secretaria de Estado da
Cultura, Porto.
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