REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


NS | número 65 | junho-julho | 2017

 





Nicolau Saião
(Portugal). Poeta, publicista, actor-declamador e artista plástico. Efectuou palestras e participou em mostras de Mail Art e exposições em diversos países. Livros: “Os objectos inquietantes”, “Flauta de Pan”, “Os olhares perdidos”, “Passagem de nível”, “O armário de Midas”, “Escrita e o seu contrário”.  
 

NICOLAU SAIÃO

Dois poemas e um boneco
 

UM PROBLEMA PARA O SONHADOR

 

 

Mas uma só palavra me acudia à mente

Enquanto devagar   ou antes   ainda sonolento

Ia executando os primeiros pequenos gestos

Do acordar

Primeiro uma perna posta quase ao acaso

No soalho sobre algo que na madrugada

Ali se dispusera   uma peça de roupa  um objecto

(e pense-se no que estes minúsculos pormenores anunciam)

Um botão um pente de matéria plástica   vermelho   num bolso

Um arrepio porque é de facto um outro dia

Murmurações recordações uma árvore que oscila contra a vidraça

A sombra

Um traço de luz   São os gestos

De um novo início

 

Sete horas oito horas   mas mais que uma palavra

 

Ou antes  um pedaço de frase   mesmo assim

Um começo do que sabia um rasto   um vestígio vago

E repetia   repetia sem cessar a sua melodia solene

Mas não bem solene   emendo   com sua tessitura iluminada

Assim como sacral   ou diria   comovida  e talvez

Ponto de fuga para outras latitudes

E ia   e vinha   e fazia-se memória

 

(Eis como é o mapa o continente do que repercute

Do que por um breve momento é bem matéria viva

Na nossa cabeça    como se diz   no que pensamos)

Um verso   um verso apenas e que quase não se situa

 

Duas três palavras  como som desvelado   como reflexo

Uno e duplo  duplo e uno porque ligação de descoberta

(“Dos olhos e das mãos brotam as coisas”)

De casa entre ventos  de sons ora surdos ora ecoando

 

E é a voz que nos chegou   incontida  perene

 

E finalmente o grande arco do mundo é junto de nós

No nosso corpo inconcreto

No tempo que é bem nosso

De novo o princípio duma manhã reencontrada.

 

 

 

MURALHA

 

Na maior parte das vezes não

vemos as aves levantar voo. O de farda contava

que não havia muito ruído, que era na meia-tarde

enquanto elas passavam, que iriam

ao pequeno restaurante imaginado. Resta

uma questão importante,

dizia o outro, o radar pode ter diferentes efeitos, uma rosa era

uma espécie de pedra sobre o teu cerebelo. Semelhante

à doença dos mergulhadores, os animais da

auto-estrada e os estorninhos da floresta ao lado olham

com doçura o azul do céu. Eis as tuas mãos, os vestígios

da alegria.

 

Não é portanto uma história da natureza. Sente

o que não sabes, vê

o que não dizes. A tua voz ressoa

nos olhos dum peixe amarelo entre pedras

- a hortelã e o funcho, na ribeira sobre as hortas

nesses  dias adolescentes no calor de Junho –

e o que alcançaste é apenas

ainda que o não saibas, mesmo que o não suponhas

 

a memória de coisas que outros outrora sonharam

em fragmentos de tempo

 

para além da distancia no céu enegrecido.

 

 

                                                                           NS

 
 
 
 

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