Encontro com escritores
na Biblioteca Chaves Caminha
Muito boa tarde, muito obrigada à
Junta de Freguesia de Alvalade e à BIBLIOTECA CHAVES CAMINHA
pelo convite para uma conversa convosco sobre o processo
histórico Timorense que levou à independência, tal como eu o
escrevi no meu livro OS TIMORENSES (1973-1980).
A minha motivação teve vários
componentes: de afeto pois em finais dos anos 60 do século XX,
vivi três anos no Timor então português como esposa de um
alferes miliciano colocado em Viqueque, onde em 1959 se deu uma
revolta histórica, protagonizada pelos que vieram depois a
fundar, depois do 25 de Abril, o partido APODETI que defendia a
integração de Timor na Indonésia. Nos meus verdes anos essa
circunstância não me impedia de conviver fraternalmente com os
timorenses, únicas pessoas com quem eu podia conversar . Através
dos meus alunos a quem lia poemas de Miguel Torga , fiquei a
conhecer os factos e protagonistas dessa revolta. Notei então
que o povo timorense tinha uma personalidade amável mas muito
vigorosa e, sendo forte no seu querer, era flexível na sua
afirmação . E porquê? Porque a alma do povo timorense preza
acima de tudo a paz social e a harmonia entre famílias.Com a
invasão do território pela Indonésia e perante a Luta de
Libertação Nacional que levou a que o povo timorense a ela
se associasse desencadeando a Revolução Maubere, a minha
admiração foi imensa pelas circunstâncias e condições dessa luta
em situação de total isolamento: uma metade de uma ilha cercada
por navios de guerra e cortada do mundo exterior, a
impossibilidade de serem socorridos com armas e víveres, pois
ninguém lá entrava nem ninguém podia de lá sair, uma ocupação
levada a cabo por um dos exércitos mais poderosos do mundo, que
às ordens de um governo fascista ,se especializou em massacres
das populações, O meu apoio à causa da libertação do Povo
Timorense era a minha resposta simultaneamente afetiva e
de escritora que ,alheia a debates ideológicos ou escolásticos
,não obstante a minha afinidade marxista, ia no sentido da
recusa do eurocentrismo e no da afirmação da herança do
humanismo universal, no justo confronto entre a tradição
europeia e a das outras grandes culturas, no respeito pelo
sofrimento humano e no da preservação do planeta com os seus
povos.
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O desafio que se me colocou como
escritora foi imenso. Conciliar a obra de imaginação com a
passada histórica é o objetivo do romancista. Neste processo de
escrita , comecei por tentar estabelecer a interpretação de
conjunto, separando o fundamental do derivado, o necessário do
contingente, as causas dos efeitos. O historiador serve-se do
testemunho. e é aqui que o sobrevivente ganha um estatuto muito
especial embora tenha que ser tido em conta o facto da
testemunha ter vivido o acontecimento a partir do interior,
conhecendo por isso só uma parte da realidade .O historiador,
por sua vez, tem uma vista do conjunto mas falta-lhe a
perceção intuitiva da experiência. Ora as duas são necessárias
à escrita de uma obra como a que me propus escrever. Para obter
no terreno os dados necessários à pesquisa histórica e à
vivência dos seus protagonistas, estive por duas vezes em
Timor-Leste graças ao apoio do Montepio Geral, da Fundação
Oriente e do comendador Rui Nabeiro dos cafés Delta.
Em relação à escrita do processo
histórico timorense a minha ousadia era de monta. Escrever
tornou-se um combate com riscos pois enquanto trabalhava para os
ajudar a recuperarem os seus legítimos direitos sobre o seu
país, eu despaísava-me numa longa viagem que parecia não
ter fim tal era a complexidade do processo histórico timorense.
A realidade era tão trágica na sua desumanidade, a experiência
era tão dolorosa que por vezes fui tentada a desistir. Todas
aquelas pessoas sobre as quais eu pretendia escrever, na sua
efémera e trágica vida nunca puderam dizer: não quero mais,
vou-me embora, desisto. Achei pois, que desistir punha em causa
a minha capacidade intelectual e a minha fidelidade ao meu
destino de escritora. E continuei. Outra dificuldade dizia
respeito ao modo como nos relacionamos com os utentes da vasta
comunidade dos países que integram a CPLP . Apesar de
partilharmos de um passado comum que se construiu ao
longo de cerca de meio milénio de relações, contudo, devido a
crispações identitárias e a tensões sociais subjacentes e não
tendo memorizado a sua história colonial, a sociedade
portuguesa não tem do seu passado colonial a história das
respetivas representações. Benjamin Stora, sobre a lacuna
existente nas sociedades ocidentais no que se refere à sua
história colonial, escreve na sua obra Transfert d´une Mémoire :
« A história imediata é a mais difícil de todas por estar
simultaneamente ameaçada pelo desvio sob o aguilhão da memória
imediata, pelo abafamento sob o peso dos documentos
jornalísticos, pela carência dos arquivos do Estado e por
se achar tributária das urgências de uma atualidade escaldante.»
Deste facto, no que diz respeito à sociedade portuguesa,
decorre que há entre nós uma tendência para encontrar
refúgio no território de uma identidade separada da identidade
universal do Homem. Essa tendência para se enraizarem no espaço
insular de uma separação nota-se sobretudo nas comunidades
portuguesas das colónias que foram afetadas pela descolonização.
Contudo, tem sido através da literatura, sobretudo do romance,
que se tem tentado recoser os rasgões do passado nas memórias
feridas pela colonização nos povos colonizados e pela
descolonização nas comunidades portuguesas dessas colónias. Do
que acabo de vos expor, as expectativas em relação a uma obra
como a que estava a escrever, quanto à sua publicação como ao
seu sucesso, eram praticamente nulas.
Devido às contingências de
interpretação por que passou a Revolução Maubere, era necessário
que alguém dissesse o indizível da história , indizível
que na longa tradição da história europeia tem estado a cargo
dos romancistas e escritores. Depois da publicação das duas
primeiras obras de uma trilogia, A Batalha das Lágrimas e
Crónicas Timorenses, com o meu livro OS TIMORENSES (1973-1980)
tentei progredir no conhecimento histórico que nos permitisse
compreender o fenómeno único e decisivo para o futuro do povo de
Timor-Leste que foi a sua revolução. Recorrendo aos factos
registados pela história comemorativa e aos testemunhos dos
sobreviventes tentei reconstituir os acontecimentos havidos
assim como a atmosfera moral e política que os envolveu.
A história política de Timor-Leste
suscitou desde logo o meu interesse de escritora pois
compreendi e partilhei com outros autores a constatação de que
a guerra levada a cabo pelo ocupante era, pela sua natureza,
uma guerra que se não inseria nas guerras do século XX mas nas
guerras do século XXI. Se na tradição histórica europeia o povo
entrou na história com a Revolução Francesa e na Literatura com
o romance histórico a partir da batalha de Waterloo , só no
século XXI é que o povo foi forçado a entrar na guerra
muitas vezes sem ter sequer entrado na revolução. Nos 24 anos de
ocupação indonésia do território da República Democrática de
Timor-Leste, o povo maubere viu-se envolvido numa guerra que se
caracterizou pela sua natureza total, produzindo situações novas
e extraordinariamente traumatizantes que nem os combatentes e
líderes políticos estavam preparados para as enfrentar. A guerra
que os veteranos das FALINTIL travaram não se achava nem nos
antigos manuais de guerra, nem na experiência das guerras
passadas. Na guerra total moderna o combate tornou-se um assunto
de massas com o sistemático recurso ao recrutamento forçado de
timorenses e de crianças para operações especiais
destinadas ao assassinato dos líderes políticos e quadros
da Resistência e a sistemáticos massacres das populações
desarmadas.
Filha do génio das revoluções
modernas, a Revolução Maubere passou pelos homens e mulheres de
Timor-Leste como uma torrente indomável. De derrota em derrota
jamais deram como perdida a sua Causa pois passava como uma
tocha de uma geração para outra, de um indivíduo para outro.
Contudo, durante os primeiros anos em que todos nós festejámos a
restauração da independência, o silêncio cobriu as suas
memórias, as suas lutas, as suas perdas familiares e as
suas mortes em combate . Comovida pela morte de tantos valorosos
combatentes que acompanhei ao longo da escrita destas páginas
nas suas lutas, nos seus atos civicos e na sua morte heroica, o
meu coração foi abalado pela grandeza da revolução maubere. E
devido ao extenso material recolhido pela minha pesquisa e ao
número de páginas, foi necessário encetar a escrita de um quarto
volume que agora me ocupa.
Pelo que acabo de vos expor
podereis compreender que eu me propunha escrever toda esta
realidade, a realidade de uma insurreição armada como resposta
ao golpe de estado de agosto de 1975, que se transformou numa
revolução popular. Que fazer , pois não podia pedir à
Literatura Portuguesa o auxílio de um modelo de uma obra desta
natureza. As invasões francesas e as lutas entre liberais e
absolutistas são frequentemente o cenário onde se desenvolvem os
romances históricos de língua portuguesa à data em que
iniciei esta tetralogia. Há apontamentos sobre revoltas
populares mas não sobre insurreições populares. A
historiografia oficial raramente sai da esfera do poder. Que
escritores portugueses construíram uma obra romanesca
tendo de se encarregar da pesquisa sobre um processo histórico
que se desenrolou sob os seus olhos? Tive pois de sair do
conforto das letras pátrias para uma viagem pelas raras obras
sobre insurreições populares na Literatura europeia . Victor
Hugo , Scott, George Sand , Schiller, Kleist ,para escreverem as
suas obras históricas tiveram primeiro de fazerem a
história dos factos e dos homens que as fizeram e conduziram.
O que distingue as guerras do
absolutismo das guerras revolucionárias é a relação que ambas
estabelecem em relação à população. Nas primeiras dá-se a
glorificação apologética da Idade Média com os seus heróis . Nos
romances da época revolucionária há o apagamento do herói e
dá-se especial relevo ao carácter dramático da ação e ao papel
novo e importante do diálogo no romance.
Depois da pesquisa e das
meditações, cheguei ao período activo
e vivo da criação romanesca e pelo exemplo dos
escritores acima mencionados não me preocupei com quaisquer
cânones literários. Deixei que a matéria ditasse a sua
forma . A par dos personagens reais
criei personagens ficcionais e, ao contrário
dos autores clássicos não separei da narrativa, o resultado da
pesquisa histórica na medida em que
militares, funcionários, administrativos e mesmo
cidadãos portugueses estiveram envolvidos nos acontecimentos em
Timor-Leste e para que o leitor pudesse descobrir
no horizonte do seu dia a dia, em que a política e as notícias
se ocupam pouco de Timor-Leste, o país onde se concretizou o
processo histórico da sua indepenência numa luta de gigantes.
Quanto ao meu despaísamento,
sem renunciar à minha identidade mas participando
simultaneamente de dois quadros de referência, passei a ver cada
uma das culturas ao mesmo tempo de dentro e de fora.Termino com
o que escreveu Pierre Barbéris em Prélude
à l´Utopie :«La véritable Histoire, aujourd´hui
comme hier, ne s'écrit pas chez les
historiens mais chez les écrivains».
Joana Ruas,27 de Maio de 2017
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