REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


NS | número 65 | junho-julho | 2017

 
 

Joana Ruas (Portugal). Trabalhou como jornalista cultural e tradutora na Radiodifusão Portuguesa e no jornal Nô Pintcha da República da Guiné-Bissau. Participou na causa da Libertação do Povo de Timor-Leste, tendo feito várias conferências sobre a Língua Portuguesa em Timor-Leste, sua história e cultura. Entre poesia dispersa e ensaios é autora dos romances, Corpo colonial, O claro vento do mar e A pele dos séculos. Participou na IV Feira do Livro de Díli onde apresentou o romance A batalha das lágrimas e o livro de contos Crónicas timorenses respetivamente o 1.º e o 2.º volume da tetralogia A pedra e a folha sobre cem anos de Resistência Timorense.
 

JOANA RUAS

 

Apresentação d' Os Timorenses

 

 

Encontro com escritores

na Biblioteca Chaves Caminha

 

Muito boa tarde, muito obrigada à Junta de Freguesia de Alvalade e à BIBLIOTECA CHAVES CAMINHA pelo convite  para uma conversa convosco sobre o processo histórico Timorense que levou à independência, tal como eu o escrevi no meu livro OS TIMORENSES (1973-1980).

A minha motivação teve vários componentes: de afeto pois em finais dos anos 60 do século XX,  vivi três anos no Timor então português como esposa de um alferes miliciano colocado em Viqueque, onde em 1959 se deu uma revolta histórica, protagonizada pelos que vieram depois a fundar, depois do 25 de Abril,  o partido APODETI que defendia a integração de Timor na Indonésia. Nos meus verdes anos essa circunstância não me impedia de conviver fraternalmente  com os timorenses, únicas pessoas com quem eu podia conversar . Através dos meus alunos a quem lia poemas de Miguel Torga , fiquei a conhecer os factos e protagonistas dessa revolta.  Notei então que o povo timorense tinha uma personalidade amável mas muito vigorosa e, sendo forte no seu querer, era flexível na sua afirmação . E porquê? Porque a alma do povo timorense preza acima de tudo a paz social e a harmonia entre famílias.Com a invasão do território pela Indonésia e perante a Luta de Libertação Nacional que levou a que o  povo timorense a ela se associasse desencadeando a Revolução Maubere, a minha admiração foi imensa pelas circunstâncias e condições dessa luta em situação de  total isolamento: uma metade de uma ilha cercada por navios de guerra e cortada do mundo exterior, a impossibilidade de serem socorridos com armas e víveres, pois ninguém lá entrava nem ninguém podia de lá sair, uma ocupação  levada a cabo por um  dos exércitos mais poderosos do mundo, que às ordens de um governo fascista ,se especializou em massacres das populações, O meu apoio à causa da libertação do Povo Timorense era a minha resposta simultaneamente afetiva  e  de escritora que ,alheia a debates ideológicos ou escolásticos ,não obstante  a minha afinidade marxista, ia no sentido da recusa do eurocentrismo e no da  afirmação da herança do humanismo universal, no justo confronto entre a tradição europeia  e a das outras grandes culturas,  no respeito pelo sofrimento humano e no da preservação do planeta com os seus povos.

 
  OS TIMORENSES
Joana Ruas
Lisboa, Sextante Editora, 2015  
 

O desafio que se me colocou como escritora foi imenso. Conciliar a obra de imaginação com  a passada histórica é o objetivo do romancista. Neste processo de escrita , comecei por tentar estabelecer a interpretação de conjunto, separando o fundamental do derivado, o necessário do contingente, as causas dos efeitos. O historiador serve-se do testemunho. e é aqui que o sobrevivente ganha um estatuto muito especial embora tenha que ser tido em conta o facto da testemunha ter vivido o acontecimento a partir do interior,  conhecendo por isso só uma parte da realidade .O historiador, por sua vez,  tem uma vista do conjunto mas falta-lhe  a perceção  intuitiva da experiência. Ora as duas são necessárias à escrita de uma obra como a que me propus escrever. Para obter no terreno os dados necessários à pesquisa histórica e à vivência dos seus protagonistas, estive por duas vezes em Timor-Leste graças ao apoio do Montepio Geral, da Fundação Oriente e do comendador  Rui Nabeiro dos cafés Delta.

Em relação à escrita do processo histórico timorense a minha ousadia era de monta. Escrever tornou-se um combate com riscos pois enquanto trabalhava para os ajudar a recuperarem os seus legítimos direitos sobre o seu país, eu  despaísava-me  numa longa viagem  que parecia não ter fim tal era a complexidade do processo histórico timorense. A realidade era tão trágica na sua desumanidade, a experiência era tão dolorosa que por vezes fui tentada a desistir. Todas aquelas pessoas sobre as quais eu pretendia escrever, na sua efémera e trágica vida nunca puderam dizer: não quero mais, vou-me embora, desisto. Achei pois, que desistir punha em causa a minha capacidade intelectual e a minha fidelidade ao meu destino de escritora. E continuei. Outra dificuldade dizia respeito ao modo como nos relacionamos  com os utentes da vasta comunidade dos países que integram a CPLP . Apesar de partilharmos  de um passado comum que se construiu  ao longo de cerca de meio milénio de relações, contudo, devido a crispações identitárias e a tensões sociais subjacentes e não tendo  memorizado a sua história colonial, a sociedade portuguesa não tem do seu passado colonial a história das respetivas representações.  Benjamin Stora, sobre a lacuna existente nas sociedades ocidentais no que se refere à sua história colonial, escreve na sua obra Transfert d´une Mémoire : « A história imediata é a mais difícil de todas  por estar simultaneamente ameaçada pelo desvio sob o aguilhão da memória imediata, pelo abafamento sob o peso dos documentos jornalísticos, pela  carência dos arquivos do Estado e por se achar tributária das urgências de uma atualidade escaldante.»  Deste facto, no que diz respeito à sociedade portuguesa,  decorre que  há entre  nós uma tendência para encontrar refúgio no território de uma identidade separada da identidade universal do Homem. Essa tendência para se enraizarem no espaço insular de uma separação nota-se sobretudo nas comunidades portuguesas das colónias que foram afetadas pela descolonização. Contudo, tem sido através da literatura, sobretudo do romance, que se tem tentado recoser os rasgões do passado nas memórias feridas pela colonização nos povos colonizados e pela descolonização nas comunidades portuguesas dessas colónias. Do que acabo de vos expor, as expectativas em relação a uma obra como a que estava a escrever, quanto à sua publicação como ao seu  sucesso, eram praticamente nulas.

Devido às contingências de interpretação por que passou a Revolução Maubere, era necessário que alguém  dissesse o indizível da história , indizível que na longa tradição da história europeia tem estado a cargo dos romancistas e escritores. Depois da publicação das duas primeiras obras de uma trilogia, A Batalha das Lágrimas e Crónicas Timorenses, com o meu livro OS TIMORENSES (1973-1980) tentei progredir no conhecimento histórico que nos permitisse compreender o fenómeno único e decisivo para o futuro do povo de Timor-Leste  que foi a sua revolução. Recorrendo aos factos registados pela história comemorativa e aos testemunhos dos sobreviventes tentei reconstituir os acontecimentos havidos assim como a atmosfera moral e política que os envolveu.

A história política de Timor-Leste suscitou desde logo o meu interesse  de escritora pois compreendi  e partilhei com outros autores a constatação de que a  guerra levada a cabo pelo ocupante era, pela sua natureza,  uma guerra que se não inseria nas guerras do século XX mas nas guerras do século XXI. Se na tradição histórica europeia o povo entrou na história com a Revolução Francesa e na Literatura com o romance histórico a partir da batalha de Waterloo , só no século XXI é que o povo foi forçado a entrar na guerra  muitas vezes sem ter sequer entrado na revolução. Nos 24 anos de ocupação indonésia do território da República Democrática de Timor-Leste, o povo maubere viu-se envolvido numa guerra que se caracterizou pela sua natureza total, produzindo situações novas e extraordinariamente traumatizantes que nem os combatentes e líderes políticos estavam preparados para as enfrentar. A guerra que os veteranos das FALINTIL travaram não se achava nem nos antigos manuais de guerra, nem na experiência das guerras passadas. Na guerra total moderna o combate tornou-se um assunto de massas com o sistemático   recurso ao recrutamento forçado de timorenses  e de crianças para operações especiais destinadas ao  assassinato dos líderes políticos e quadros da Resistência e a sistemáticos massacres das populações desarmadas.

Filha do génio das revoluções modernas, a Revolução Maubere passou pelos homens e mulheres de Timor-Leste  como uma torrente indomável. De derrota em derrota jamais deram como perdida a sua Causa pois passava como uma tocha de uma geração para outra, de um indivíduo para outro. Contudo, durante os primeiros anos em que todos nós festejámos a restauração da independência, o silêncio cobriu as suas memórias, as suas lutas, as suas perdas familiares e  as suas mortes em combate . Comovida pela morte de tantos valorosos combatentes que acompanhei ao longo da escrita destas páginas nas suas lutas, nos seus atos  civicos e na sua morte heroica, o meu coração foi abalado pela grandeza da revolução maubere. E devido ao extenso material recolhido pela minha pesquisa e ao número de páginas, foi necessário encetar a escrita de um quarto volume que agora me ocupa.

Pelo que acabo de vos expor podereis compreender que eu me propunha escrever toda esta realidade, a realidade de uma insurreição armada como resposta  ao golpe de estado de agosto de 1975, que se transformou numa revolução  popular. Que fazer , pois  não podia pedir à Literatura Portuguesa o auxílio de um modelo de uma obra desta natureza. As invasões francesas e as lutas entre liberais e absolutistas são frequentemente o cenário onde se desenvolvem os romances históricos  de língua portuguesa à data em que iniciei esta tetralogia. Há apontamentos sobre revoltas populares mas não sobre  insurreições populares. A historiografia oficial raramente sai da esfera do poder. Que  escritores  portugueses construíram uma obra romanesca tendo de se encarregar da pesquisa  sobre um processo histórico que se desenrolou sob os seus olhos?  Tive pois de sair do conforto das letras pátrias para uma viagem pelas raras  obras sobre insurreições  populares na Literatura europeia . Victor Hugo , Scott, George Sand , Schiller, Kleist ,para escreverem as suas obras históricas tiveram primeiro de  fazerem a história dos factos e dos homens que as fizeram e conduziram.

O que distingue as guerras do absolutismo das guerras revolucionárias é a relação que ambas estabelecem em relação à população. Nas primeiras dá-se a glorificação apologética da Idade Média com os seus heróis . Nos romances da época revolucionária há o apagamento do herói e dá-se especial relevo ao carácter dramático da ação e ao papel novo e importante do diálogo no romance. Depois da  pesquisa  e  das meditações, cheguei  ao período  activo e vivo da criação  romanesca e pelo exemplo dos escritores acima mencionados não me preocupei com quaisquer cânones literários. Deixei que a matéria ditasse a sua  forma . A par  dos personagens reais criei  personagens ficcionais e, ao contrário dos autores clássicos não separei da narrativa, o resultado da pesquisa histórica na medida em que  militares, funcionários, administrativos  e mesmo cidadãos portugueses estiveram envolvidos nos acontecimentos em Timor-Leste e para que o leitor  pudesse  descobrir no horizonte do seu dia a dia, em que a política e as notícias se ocupam pouco de Timor-Leste, o país onde se concretizou o processo histórico da sua indepenência numa luta de gigantes.

Quanto ao meu  despaísamento, sem renunciar à minha identidade mas participando simultaneamente de dois quadros de referência, passei a ver cada uma das culturas ao mesmo tempo de dentro e de fora.Termino com o que escreveu  Pierre Barbéris em  Prélude à  l´Utopie :«La véritable Histoire, aujourd´hui comme hier, ne s'écrit pas chez les historiens mais chez les écrivains».

Joana Ruas,27 de Maio de 2017

 
Apresentação do romance "Os Timorenses (1973-1980)" pela autora, Joana Ruas, pela escritora Leonoreta Leitão e pelo jornalista Adelino Gomes, na Biblioteca Chaves Caminha, Lisboa, 27 de maio de 2017
 
     
     
     
     
     
 

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