REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


NS | número 65 | junho-julho | 2017

 


Augusto Guimaraens Cavalcanti é poeta, ensaísta e romancista. Já publicou: Poemas para se ler ao meio-dia (2006, 7Letras), Os tigres cravaram as garras no horizonte (2010, Circuito), Fui à Bulgária procurar por Campos de Carvalho (2012, 7Letras) e Máquina de fazer mar (7Letras, 2016). É doutor em Antropologia da Literatura pela PUC-Rio e já teve poemas publicados em antologias na Argentina, México e Estados Unidos.
 
AUGUSTO GUIMARAENS CAVALCANTI

Máquina de fazer mar

(seleção)
 

 

remédio veneno

 

Todo amor é bélico, requer

navalhas e pequenos barcos selvagens de papel,

requer que se improvise escultura de sua poeira,

que se faça diamante de sua ruína

 

Todo amor é bélico, manancial do presente,

semente de uma tatuagem mental,

o amor faz sangrar os pássaros

 

O amor coleciona abismos

como quem recolhe precipícios, como quem

acolhe a aridez de sua chuva;

sem os dentes não há amor possível;

suas estruturas descem para a vida

 

Todo amor é bélico, asa que paira no azar

Seu corcel é aflito, wild horses

De sua cloaca humana jorra ouro,

de seus objetos nascem pequenos deuses efêmeros

– o amor não deixa sobreviventes para trás

 

razor love

 

Sim, talvez o tempo não passe mesmo da palavra tempo

adormecida na serpente da língua, esta lâmina

de carnes indizíveis que dança pelas tardes inevitáveis e

pela chuva que deságua para fora do poema

 

Éramos frágeis animais com nossas luas soltas

e alguns silêncios coagulados em um túnel a transbordar

suas delícias agridoces contraindicadas para quem

ainda acreditasse nas ficções do meio-dia

 

As palavras mínimas levavam muito tempo para se dissolverem

com aqueles corpos faiscando por paredes translúcidas

e janelas desmedidas de cortinas diáfanas

 

Éramos frágeis animais com nossas bússolas invertidas

e diamantes de destruição; uma sombra líquida nascia

no mar justaposto do teu ventre

 

O caroço morto de uma estrela renascia e brilhava

através da alegria amarga de um girassol

 

Atados pelo sol, surdos a qualquer música

que não viesse de nossas próprias pulsações,

éramos um ruído auditivo e um sopro sonoro,

– mínima lâmina–

ecoando no interior do interior do interior

 

Os primeiros mapas do mundo eram da cor de sua pele

 
a grande ilusão

 

A grande ilusão é a de que os prédios dançam

para acompanhar os passos dos novos amantes

 

Em ato, amantes modernos perdem seus nomes próprios e

habitam as últimas claridades do fogo

 

Em ato de amantes, a íris do dia muda de cor,

novos arranjos são formados por mares lunares

– escuras planícies de magmas solidificados

 

Com seus peitos de sol denso eles conquistam, por instantes,

os espaços por onde escapariam os voos dos pássaros

e as formas transitórias das flores

 

A grande ilusão é a de que os dias

não oxidam os jardins e não corroem os pomares

 

E a maré da vida a cobrir nosso assombro

E o inconsciente marítimo a escorrer sobre tudo

E o verdadeiro verão, quase sempre glacial

E o mar uterino do Leblon a embalar nossa embriaguez

 

warhol tv

 

Dial M for model

Pense na tristeza das câmeras. Pense na Warhol TV

Pense em um monstruoso zapping de televisões que estivessem

sempre no ar. Pense em um anjo vindo de Pittsburgh;

um anjo de antenas e não de auréolas;

um anjo tão comum quanto o nosso tempo

Pense nos olhos gordurosos do POP, este anjo trôpego

a pisar por escadas de emergência

Pense em tigres encurralados,

pense até em ancorar um navio no espaço

Warhol queria ser enterrado de jeans:

pense em Warhol impregnado de jeans, sepultado

como um mágico que dissipa seus truques

um pouco antes de desperdiçá-los.

Pense na Warhol TV

Pense no dia em que a maquiagem falhar 

 

mondrian vai ao açougue

 

Tudo que brilha faz sentido;

um mar renascido na maré cheia da carne,

a outra face do silêncio,

a consciência viva de um relâmpago

 

Mas, e o que foi feito das manchas solares?

Espelhos que insistem em quebrar,

o tempo a mastigar seus próprios filhos

 

Choram todos os que dançam,

dançam todos os que beijam,

beijam todos os que choram

 

Olhos agudos como facas,

a pluma que corta,

o pensamento sonoro,

a beleza própria das fronteiras

 

Tudo que brilha faz sentido;

as plumas são pedras;

astros prontos para explodir

 

E os dias sempre descontínuos

E os nomes nunca imóveis

E os mapas sempre inacabados

 

O silêncio anterior ao silêncio;

as pedras são plumas –

tudo que brilha faz sentido,

tudo que cria sua própria lei,

tudo que brilha faz sentido,

tudo que é radiante de raro mar

 

 

máquina de fazer mar

 

Sugar o açúcar e lhe devolver o sugar

Sugar o açúcar e lhe devolver o amargo

De sugar a sugar

Do açúcar ao sal do mar

 

casa

 

Entre o abismo e o abrigo, casa é

uma pálpebra que treme

O rumor de suas ondas se mantém presente

pelas conchas dos ouvidos de quem pensa que a habita

 

Uma casa escondida num cofre,

uma casa atada ao naufrágio de qualquer solução,

a Rua do Mundo presa na vulva de sua Casa; 

uma casa em permanente expansão

 

A casa e sua geometria labiríntica,

a casa que não abriga,

a cidade e suas infindáveis serpentes de concreto,

a casa suporta o mundo e suas inesgotáveis chuvas oblíquas

 

Casas sonolentas assistem ao estranho vagar dos dias,

casas mal vividas,

margens de despidas engrenagens,

máquinas eficientes de viver

 

A casa respira e se distende

rumo à ampliação de sua simetria

A casa não se limita,

o crescimento interno da casa não se deixa sentir

 

Casas aladas são esboços de um coração que ainda baterá

A casa concentrada atravessa a casa expansiva

A casa e seus escombros rejuvenescem os homens

 

Nas páginas espumantes da casa-corpo,

toda sombra guarda uma palavra;

ali, são as pernas que carregam seus escombros

 

A forma trágica de uma simples maçã preenche os silêncios da casa

Um sonhador desperta os móveis adormecidos e a casa flutua

entre um equilíbrio íntimo de paredes e brilhos renovados

 

Corredores se ampliam

em um estranho murmúrio de sol

Flores de cicutas enfeitam os vasos

O amor adoeceu sua casa,

o amor entupiu sua pia

 

Aqui, esta casa se afunda pelo meio dos cabelos e

a vida mente diante das estruturas

Luas mortas brilham no firmamento da razão

 

As ruínas carecem de método,

pássaros alheios atravessam continentes errantes

A casa nos sonha

Os mapas transbordam

 

É a cidade que nos imagina

quando caminhamos

mais estranhos do que o paraíso,

mais remotos do que o espaço,

desentranhados dos velhos dicionários

 

Também o relâmpago nos olha

quando acompanhamos os ingênuos com os seus jornais,

a ciência experimental dos solitários,

a ciência lírica dos desenganados

 

Na geometria do olho cada palavra contêm um oceano,

pela clausura da pele brilha a metáfora dissonante,

para além de todas as casas em que alguém já sonhou habitar

– A cidade é toda ela a casa do homem

 

É a cidade que nos sonha

 

 

like a slow burn

 

O poeta não só enxerga, como vê a construção

junto de quem constrói, tudo na mais maré mais alta

de oceanos sem margens

 

Tudo pela clausura móvel da pele,

pelo reflexo de um âmbar, para que a paisagem escape

de sua própria escravidão

 

Pelo rigor na experimentação e pela experimentação no rigor;

construções em ruínas de construções

like a slow burn

 

O chão sustenta o tapete, que fixa

a cadeira, que sustenta o pé

Os dicionários são incômodos,

os nomes provisórios

 

_ quase nunca o calendário cardíaco corresponde ao calendário solar, o voo de um pássaro não se prende a moldura alguma; daí quem sabe, algumas ilusões geográficas _

 

O corpo é a medida da concretude das coisas

Por outro lado, é na mente que as ideias fluem

É preciso nascer para provocar cortes nas escrituras do passado

Nascer junto com os mortos, escrever e ser escrito

 

Um dia, a localização poética ainda haverá de ampliar

a localização geográfica

 

 

a melancolia do azul  

              

Do corpo só irá ficar o arrepio – ela dizia –, enquanto

era no contrapelo de sua pele que cresciam os tigres,

seus tigres todos à espreita como um câncer bom

 

Em sua sala de chuva ela fazia nascer as frutas

antes de qualquer chuva, paisagens surgiam

de suas sombras rumo à melancolia de outro azul

 

Medusa urbana trazia nos olhos um laboratório

de estranhezas, seus lábios de chumbo derretido

espelhavam uma estranha simetria de luzes

 

Tudo que não era treva fulgurava

no far west de seu tédio,

por debaixo da sombra de algum deus

 

Pequenos crimes de amor e algumas ilhas turvas

atravessavam as janelas anônimas dos olhos

 

A glacialidade bruta de um beijo dissolvia os mapas e

os ponteiros grudados na epiderme das paredes

 

A geografia quântica de suas unhas arranhava

e ampliava o sol da meia-noite

 

Flores eram germinadas por suor e susto,

o céu ainda tinha a cor das suas unhas

 

Era preciso ter a sede dos afogados,

ser invadido por este azul, pela melancolia do azul

 

Quanto mais se vivia, menos se morria

E todo o resto era literatura

 

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
Contacto: revista@triplov.com  
Dir. Maria Estela Guedes  
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o primeiro mapa do mundo

 

A imobilidade movente do mar,

paisagens recém traçadas pelo vento,

ângulos habitáveis,

estrelas que sangram para brilhar

 

Corpos verbais e verbos de carne,

objetos ainda não cicatrizados por seus nomes;

o vazio esculpido e calculado,

traços sinuosos que o mar apaga:

a pluma que corta,

a falsa distância entre o diamante e o carvão

 

– Raras são as âncoras que conseguem fincar suas asas no ar,

muitos são os móbiles perpétuos a flutuar

 

Pequenos cadáveres da memória,

corações ligados por cordas,

a pedra trabalhada como se fosse carne,

a menor rocha para a maior pluma,

a máscara que não se deixa domesticar

 

Palavras sem dicionários furam o véu do real

Um novo diamante é arrancado do abismo

Flores radioativas brilham com um estranho rigor

O azul arde nas bordas,

num tatear de nomes perdidos e línguas sem asas

 

Choram todos os que dançam

Letreiros luminosos anunciam a primavera

O peso flutua e a pluma pesa

As placas pedem para serem violadas

Os muros se curvam à realidade sempre fugidia

 

A cartografia de seus passos contém as origens da tempestade

Seu peito possui barulho de mar

Seus lábios carregam a arte de dançar até a incandescência,

na chuva contida em sua face de sol

 

– O mar se estica de ponta a ponta e encontra sua medida;

o mar sempre recomeça; o mar escreve sempre no plural

 

Nenhum rei dorme de coroa na cabeça

As cascas são necessárias para endurecer as almas

dos objetos

 

Trovar escuro

A vida não cicatriza

Um espelho provoca o nascimento do dia

O blecaute nos iluminou

 

   
 

 

© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
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