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Ronaldo Cagiano Barbosa (Brasil).
Cagiano publica em diversos jornais e revistas
do país e do exterior, dentre os quais
Jornal do Brasil,
Hoje em Dia,
Jornal de Brasília,
Correio Braziliense e revista
Cult. Obteve o primeiro lugar no concurso
Bolsa Brasília de Produção Literária 2001, com o
livro de contos
Dezembro indigesto.
Organizou as coletâneas
Antologia do conto
brasiliense (Projecto Editorial, Brasília,
2001), Poetas Mineiros em Brasília
(Varanda Edições, Brasília, 2001) e
Todas as
Gerações - O Conto Brasioliense Contemporâneo
(LGE Editora, Brasília, 2006).
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RONALDO
CAGIANO
"Renascimento" e outros poemas
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RENASCIMENTO
É sempre
amanhecer depois daquele outubro.
A vida,
que era longe,
território insosso onde dormiam meus fantasmas,
já não é
a seara onde semeei as desilusões:
eis o
planeta onde não me escondo,
porque
resgatado dos abismos.
Quebrei
o silêncio dos invernos
destituí
do trono o inferno geral
em que a
existência havia se corrompido.
Onde
tudo parecia distante
como um
atol de sarças venenosas
agora é
sonho que se materializa,
habitante que sou de um mundo sem escamas.
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MARCHA INSONE
“...existir é
sangrar.
Hildeberto Barbosa Filho
Havia
sempre uma madrugada a vencer
feito
Sísifo na interminável caminhada:
viver
era a pedra renovada
sob os
ombros que suportavam
o rigor
das punições.
Contra a
escuridão
planejei
caminhos de fuga,
mas
sempre era o boicote
ou a
soez tocaia.
O
caminho longo sob a escuridão impenetrável
já não é
a pirâmide que desafia
nem a
esfinge que devora:
teu
coração decifrou para mim
os
códigos da batalha
no
teatro insone
entre sóis hibernados
e a vida
que passava sonâmbula
acordou-me antes da sinfonia dos galos.
Penetrei
o vazio,
rio
imóvel a estancar-me a felicidade,
para me
reencontrar nos mistérios
de um
coração aberto
feito asas de anjo.
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TERRA
EM TRANSE
Sobre as
escarpas sem fim
lá onde
o horizonte se confunde com o tédio
dos
olhos que vêem um mundo sem conserto
trovoadas rangem em meu coração.
São as
catedrais de dúvidas
que se
levantam
e
insistem
no duro
engenho das compreensões.
As vozes
agudas ferroam
com a
mesma intensidade dos acicates:
consciência efervescente
no vácuo
das torres de marfim inócuas
que
habita os corações.
Cataguases Buenos Aires Teerã
Berlim
Pirapetinga Lisboa
Nova
York Brasília
Alentejo
geografias do ocaso
onde
pululam pássaros aziagos
e os
homens ensimesmados
habitam
cidades sem memória,
cemitério dos vivos.
Museu de
ossos
expondo
olhos extenuados
pela
visão do território devastado
com suas
reminiscências de luto
miséria
medo.
Sussura
bem longe uma chuva
e suas
águas
as
mesmas que invadiram
os
porões da infância
é agora
rio imóvel
que não
lava
a
intempérie das mortes antigas
que se
renovam
nos
obituários que não se fatigam.
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INSONDÁVEL
O apito
do trem
o atrito
do trem
o
arbítrio do trem
Como a serpente histérica
rasgando os montes
a existência vai c(r)avando
em nós uma estrada de mistérios
No duelo coma vida
a literatura me concede suas armas
Tão triste como um passado
tão vivo como uma ferida:
assim é o tempo
com sua carpintaria de enigmas
a sagração dos labirintos
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GÊNESE
Busco na
palavra sua unção,
labirinto de paradoxos
em que
mergulho
como
escafandrista a garimpar (im)possibilidades.
Território de invenções,
ela me
estende a ponte
entre o
sagrado
e o profano
Em cada
manhã
rompe
com sua insistência de rio.
Meticuloso engenho do verbo
que se
faz silêncio
ou boato
Rumino a
sua nudez
ou
desvelo as suas rugas.
Entre a
fuga
e os
deslizes
o poema
vinga
rosa intimorata no asfalto
nutre-me
do que é míngua
recicla-me do que é sangue.
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ANIMAL DA NOITE
No
desterro de um instante qualquer
um homem
sem rosto
sem pátria
atravessa a avenida
como um
pássaro
Balé
débil na dança das horas
o ritual
se repete
em cada
lixeira:
garimpo
de sobras
Só a lua o abastece
da impossível claridade
O sol
que amanhã virr,
inevitável para nós,
será tão
serôdio para ele
como um
pão dormido.
Sem
limites
para sua
solidão
ele
colhe a dura oferenda
o que
reverbera do caos
o que
surge das privações
em meio
à pontualidade do nada
que beatifica
seus desertos
enquanto
tenta (re)colher
no pomar
infértil da vida
o frutos
amargos
da manhã sempre adiada.
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AMOR
Quando
estou diante de teus olhos,
eis o
espelho em que me reconheço.
Esta luz
convulsiona meus sentidos
condenando as imagens provisórias
e
arquivando todo o susto de viver
Agora
vejo por inteiro
os cacos
reunidos de um vitral
e você
está ali, sem perceber,
cirurgiã
dos meus passivos
Esculpindo na epiderme de outrora
o corpo
útil
que
recolherá a alma
agora
ressuscitada dos íntimos naufrágios
A sombra
do que fui
extingue-se
no
crematório das ruínas.
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PORTO
E ALIMENTO
Teu
corpo é tudo que anseio:
refugio
pros meus desejos
na rota
dos meus cansaços.
Campo florido de enigmas
entre um pomar de mistérios e um regato
de sonhos.
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ANTEVISÃO
Há na
saudade a ciência do intangível,
flor de lótus furando o asfalto da noite
nesta antemanhã de soluços.
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MIRAGEM
Tecelãos
de mistérios,
teus
olhos carregam todas as eras
templo do qual enxergo tudo
eles me
ajudam a decifrar o tigre no espelho
e a
esfinge de Borges camuflada nos porões da nossa
casa
onde um dia nos deixaram sozinhos
como à
espera de um barco que nos levaria a outra
margem
onde não
haveria naufrágios
nem serpentes
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MOTIVO
No
coração
a
palavra rumina
a
indignidade do chumbo
que
escurece as manhãs.
Com suas
garras de luz
os
versos que vingam
no
deserto interior
anunciam
o oásis
onde a
linguagem sacia
a sede
de sonhos.
Na manhã
dourada
que se
anuncia
entre um
vento e outro
as
estrelas mortas
ressuscitarão na obscuridade da alma
reverberando um farol de mel
contra
as varizes do desencanto
sepultando o latifúndio as noites.
Eis o
poema
ponte dialética
entre a
sintaxe do abismo
e a
gramática dos silêncios.
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PASTOREIO
Hóspede
do impossível
desafio
as cartilagens do tempo
com as
esporas do sonho.
Dos
espasmos oníricos
com seu
arsenal de enigmas
lavro
uma geografia agreste
para
colher
nas
glebas da ansiedade
as ervas
do êxito
com seus
gumes de mel
Pastor
de ilusões
a pregar
no deserto de crepúsculos
converto-me em latifundiário de estrelas
e venço
as varizes da noite
com meu
repertório de delírios.
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ROTEIRO
Caminhos
a percorrer:
as
curvas do teu corpo
contêm
todos os lugares
mapa de
múltipla geografia
onde
tudo é paisagem
e nele
reencontro os porões da nossa infância
a
caligrafia perdida dos cadernos
a ira de
Deus nas cheias do ribeirão em fúria
os
esconderijos secretos das bonecas
o
diálogo com as serpentes
o irmão
viajando com as Parcas
a fita
despregada de seus sapatos bailarinando contra a
estupidez da morte
a voz
pânica da mãe
as
hastes de seus sonhos explorando o invisível
a
ferrugem nos brinquedos de lata
as
trapaças da vida
os olhos
cicatrizados por insônias
as
latitudes do orgasmo
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MOMENTO
Apenas a
rosa
e o peso
de sua beleza
contrastando
com a
rude ambiência
da
favela.
Há
canteiros de incertezas
impedindo ao avanço das cores
mas no ar dançam pássaros insistentes
numa coreografia que se repete
contra a sisudez do caos
Anjos de
porcelana
se
insinuam na parede sem cal
sussuram
segredos de Rilke
entre
balas perdidas.
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CICLO
Enquanto
o cortejo seguia
em meio
aos gestos automáticos
das mãos
que cerravam as portas
outros continuavam a vida
imunes à que passava,
despojada de sua última chama.
A cidade
não seria diferente
porque
amanhã
outras
notícias viriam
e o rio
no qual navegamos,
Tejo a
repetir a lógica de Heráclito,
seguiria
pontualmente
como o
sangue em nossas veias,
entre
urgências que se renovam.
Entre o
solene despedir dos mortos
e a
maquinal dor dos vivos
a criança se demorava
num olhar pensativo e inquiridor
rumo ao insondável.
E
percebia,
ainda na
antemanhã de sua existência,
que
viver é um lento aprendizado de extinção.
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SOLIDÕES
A
metrópole, fatigada me dá lições de entardecer.
Todas as
estações cheiram a outono
e entre
o burburinho dos animais metálicos
e o
silêncio das almas
a
ausência ergue suas catedrais.
Onde
está a saída
nesse
beco sem saídas – sumidouro da viabilidade
humana,
território labiríntico onde a morte, Minotauro
reciclado,
desfiando
Dedalus,
resiste
aos fios que uma Ariadne qualquer em vão
estica?.
Um
oceano confuso de corpos e olhares
decretando suas procelas
é o que
aguarda na escura projeção
nessas
pátrias sem nome e sem epiderme.
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RESIDÊNCIA PROVISÓRIA
Viajei
mundos,
mas
ainda não me (re)conheço:
duro é o
trajeto por dentro.
Registro
de um percurso inacabado.
As solas
intactas dos sapatos
resumem
o muito que não andei.
O
cansaço de existir
interdita o reconhecimento
do
futuro.
Escravo
da solidão eletrônica
nessa
era de pastores mercenários
(mascates da salvação improvável)
em
quantos me divido
para me tornar inteiro?
Quantos
deuses hão de morrer
para
ressuscitar o Deus que tantos, em vão,
procuram
nos shoppings centers de uma fé inócua?
As fotos
na parede me desmentem:
esse rio
que me leva,
cemitério de anzóis,
sabe
mais do que não viu.
A pele
da solidão não envelhece
–
inúteis as plásticas –
nenhum
bisturi
reduzirá
o seu império,
e ela
reverberando pelos cantos
seu
canto de cisne da inutilidade existencial.
Até
quando conseguirei unir as margens do abismo?
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HOJE
Da
estação do passado
restauro
meus pensamentos
que um
dia, em núpcias com a solidão,
segredaram com a melancolia.
Insubmissa,
a minha
resistência
tocou a
face da verdade
e na
paisagem de teu rosto
chamei-te para reinventar o amor.
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NOTÍCIAS
Agora já
não és como antes,
leito
indisciplinado
desafiando a opressão das margens.
Apenas
um rio imóvel
onde
jazem sonhos antigos
já não
sei dos teus percursos
nem da
linguagem ferina de suas cheias.
As
mesmas águas
que um
dia invadiram os porões
da minha
infância
com
histórias de perdas e sangue
agora
retornam
com sua
quota de disciplina
e
fertilidade.
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CARTOGRAFIA DO INEVITÁVEL
Je viens au pur silence offrir mês
vaines larmes.
Paul Valéry
O que
sobrevive
ainda é
vida
no
escasso minifúndio
de sua
jornada.
Mapas de
rugas
selaram
teu rosto
com o
inerte tecido da enfermidade.
A
juventude sob escanteio
deserta
a fisionomia
onde
tudo é imobilidade
e a
consciência paraplégica
não
ultrapassa o maciço
de
sombras.
A
natureza
com suas
garras de Chronos
foi
tornando remota
a face
antiga de meu pai.
Jazigo
de células inócuas
teu
corpo em descompasso
sucumbe
ao peso
da
verdade.
No leito
em que
o tempo
o devora
imune
aos apelos dos antibióticos
o minuto
a mais
faz a
diferença
enquanto
o que restou
da
antiga força
se
dissolve
no mar
de fios sinuosos
entre o
arruído das máquinas
e a
inutilidade das orações.
Do
claro-escuro
de seus
dias derradeiros
nasce
o filho
que nunca fui.
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O RITMO DAS COISAS
O tempo
com sua
máquina de esquadrinhar
esfarela
o museu de ossos
escondido sobre minha epiderme natimorta.
O tempo
e seu
evangelho de dissoluções
escultor
insone
burilando o caminho rumo às Parcas.
O tempo
com sua
vigília
sobre os
escombros
em que
nos transformamos a cada dia.
O tempo
arsenal
de punhais
com a
lógica taliônica
de sua
rude cronologia.
O tempo
esfinge
e abismo
no qual
me lanço
para ser
absorvido pelo insondável
na
inexpugnável viagem ao vazio.
O tempo
animal
invisível
que nos
rouba todas as idades
e nos
devora
com seu
ritual insensato
destes afiados
como uma
nuvem gafanhotos.
O tempo
a moenda
dos dias
impondo
o ritmo das coisas.
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