A
Universidade encontra-se hoje mergulhada numa
obsessiva busca do “texto científico”. Sem que
exista, aparentemente, um único modo de o
encontrar, a lógica universitária tende cada vez
mais a uniformizar os processos de escrita e de
produção textual. Trata-se de uma tentação do
científico cujas representações sobre a escrita
e o escrever reflectem-se, além disso, nos
discursos eleitos para falar sobre textos,
particularmente com os estudantes, não
importando o nível de graduação em que tais
estudantes se encontrem. Este problema tem
implicações diversas, e reduz, por vezes até de
uma maneira violenta, a diversidade de operações
e linguagens inscrita nas práticas de escrita.
Alinhando com o paradigma do lucro no qual
assenta o mundo do ensino e da aprendizagem, a
Universidade persiste na tentativa (ilusória) de
resolver os problemas de expressão escrita dos
seus “clientes” pelo lado da instrução de
modelos úteis de texto, sobre os quais recaem
actos únicos de classificação e validação da
performance académica. A transmissão baseada num
índice de fórmulas textuais, ou a apresentação
de questionários de resposta múltipla,
constituem, entre outras, as práticas
discursivas mais concordantes com tal paradigma,
ainda que do seu interior surja igualmente a
ideia meio difusa de que o mais importante é a
voz própria de cada pessoa perante o texto que
escreve e lê. Na maioria dos casos, esta
realidade conduz-nos a uma visão espartilhada e
insuficiente. Se de um assunto fazemos mil, como
diria Montaigne a propósito do que para si
significa pensar, escrever e viver, a ocorrência
de escrever um texto constitui-se, na verdade,
numa profunda instabilidade das formas que à
partida julgamos seguras e confiáveis. É na
vontade de controlar os desvios aleatórios, as
oscilações e as incoerências das nossas acções,
as quais, como um todo, “correm o risco de se
meterem no texto”, que a Universidade institui o
comércio das escritas científicas na forma de
artigos breves que entre si concorrem. Este
protocolo estendeu-se um pouco por toda a parte,
e os seus efeitos há muito que podem ser
observados no totalitarismo das formas úteis de
escrita que hoje em dia predomina no espaço da
formação universitária. E todavia, o protocolo
ao qual me refiro inscreve-se na minha
actividade docente na Universidade ligada ao
ensino da escrita e à educação artística. Mas
talvez devido a isso eu veja o trabalho de
escrita justamente enquanto tal, um trabalho,
sobretudo um trabalho feito através da rasura
(não é o texto pronto que interessa) para cada
um ser a sua própria pessoa e, porque tal me
parece ligar-se com o desejo, conhecer-se a si
mesmo nesse perpétuo ensaio no qual pode
tornar-se escrever.
Há vida além da
escrita científica, ainda que as “escritas
daninhas”, nas palavras da Luiza Neto Jorge,
estejam em perigo. Lembro-me do saudoso Manuel
António Pina com quem trabalhei na minha tese de
doutoramento. Enquanto conversávamos sobre uma
das suas experiências em que foi professor na
universidade durante os anos de 1970, ele
dizia-me “qual programa, qual carapuça!”, “era
conversar, reflectir, conversar sobre as
notícias de jornal que tinham saído nesse dia,
de literatura, falar de poesia, falar da vida e
fazer comentários, ouvir os comentários dos
outros, discutir os comentários dos outros, não
havia programa nenhum”. O campo de
possibilidades aberto por uma falta destas não
anula a existência de um programa de escrita;
pelo contrário, tal ausência e negação
constituem-se num trabalho de desobediência
fundamental no exercício de pensar o sentido de
um texto à luz de convenções meramente
académicas e, por isso, pré-concebidas como se
de naturezas dadas estivéssemos a falar. Estamos
em 2017, e eu pergunto-me a que se deve ainda a
matriz hierárquica e exclusiva da escrita
presente na Universidade, mesmo sabendo que é de
uma empresa que eu falo. O utilitarismo posto
nos usos da escrita, ao partir da ideia de que o
saber é qualquer coisa que não nos pertence,
parece-me apenas reproduzir uma certa ideologia
do sujeito segundo a qual a forma ganha sempre
sobre o conteúdo. Há um território a fazer
através da escrita, e por essa razão é que
falamos de aprendizagem. De um modo geral, os
estudantes com quem trabalho neste campo
pertencem às áreas da educação, da psicologia,
das artes visuais e das ciências sociais. Para
estes estudantes escrever constitui-se numa
prática encadeada por textos orais e escritos,
cujos enunciados resultam de complexos processos
de subjectivação nos quais a experiência humana
(a deles próprios e a nossa, portanto) têm
lugar. Como trabalhar, então, num duplo registo
de subjectividade que me parece estar muito além
do protocolo científico em circulação na
Universidade? O protocolo é precisamente esse,
aquele que impõe o bom uso do método e o resumo
enquanto género do discurso que a todos deve
dizer respeito. Independemente do que se tenha a
dizer, o uso da linguagem surge ao serviço de
grandes bens, a disciplina mental, a análise, a
excelência. A forma de escrita aí praticada, não
falando do novo esperanto que é o inglês, diria
Julien Gracq, surge como o caminho mais curto e
cómodo da “comunicação trivial”, mas científica.
A imposição
progressiva de um tipo único de escrita é hoje
uma clara evidência, e os estudantes depressa se
apercebem da necessidade de o dominar. Trata-se
de um regime académico que declara mortas as
outras escritas, apagando além disso a memória e
a imaginação que cada pessoa transporta para a
escrita de um texto. Pode parecer um capricho,
igualmente académico, defender a pluralidade das
escritas na Universidade, ou admitir que tudo o
que os estudantes hoje em dia produzem não passa
de um exercício de estratégia, da procura de um
ganho imediato, sujeitando-se, portanto, aos
simulacros de uma escrita cuja forma é tida por
universal no mundo do ensino e da ciência. Seja
como for, parece-me realmente importante que a
Universidade reflicta sobre como escreve, e de
que modo tal processo se atravessa na nossa
relação com o saber. A ser assim, a total
subordinação do escriba (estudante e professor)
à forma do texto científico já não me parece,
contudo, um mero capricho.
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