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Nicolau Saião
(Portugal). Poeta, publicista, actor-declamador
e artista plástico. Efectuou palestras e
participou em mostras de Mail Art e exposições
em diversos países. Livros: “Os objectos
inquietantes”, “Flauta de Pan”, “Os olhares
perdidos”, “Passagem de nível”, “O armário de
Midas”, “Escrita e o seu contrário”. |
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NICOLAU SAIÃO
Trilogia portuguesa |
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1. Do
Esmagamento como Uma das Belas Artes
Unamuno, em carta célebre a Manuel Laranjeira,
chamou a Portugal “um
país de suicidas”.
Por seu turno, Robert Demonceaux opinava que, em
todo o caso, aos lusitanos de qualidade pouco
acomodatícia e não bajuladora estavam sempre
abertas três vias: a vida resignada e medíocre,
a emigração ou eventualmente a corda numa
trave…Talvez de algum desvão, parafraseando
Régio.
Claro
que dentre estes nem todos acabam por fora: há
também os que, não se entendendo com a
louvaminha, arrastam durante anos por dentro o
seu destino, como por exemplo Raul Leal. Este
homem, um dos espíritos mais interessantes que
por cá sorveu o ar, saía um dia da Casa da
Misericórdia (teria lá ido comer umas sopas?)
quando foi interpelado por Abel Manta. “Como
vai, Dr. Leal?”,
perguntou-lhe inquieto e relanceando os seus
andrajos. “Olhe,
vou como vê…um farrapo. Sou um autêntico farrapo”,
respondeu o autor de “Sodoma Divinisada” que
Fernando Pessoa tanto estimava. Devido ao seu
todo diferente,
à sua maneira de ser eminentemente não
enquadrada, Raul Leal sofreu como muitos outros
artistas a estultícia e a falta de abertura de
um meio ainda pior que o de agora, onde aliás o
cinismo também medra.
Existem também os que, como alguns surrealistas
gostavam de dizer, “julgam
certeiramente o sistema e o tratam de maneira
adequadamente astuciosa”.
Outros há, contudo, que se resignam e, então,
tornam-se cumprimentadores vulgares ou se vendem
sem rebuços. E temos nessa conformidade os
poetas de
Estado, os
apepinadores de partidão e os rimadores de
coisas da moda,
peralvilhos à
la page que
têm para seis anos de imortalidade, os
oportunistas por decisão que, sendo arteiros,
singram nas suas pequenas barcarolas – por vezes
mesmo amargamente se ou quando lhes resta um
niquinho de carácter.
Há
dias tive o gosto de falar com um amigo de
longe, um operador de coisas belas que tem sido
sempre um marinheiro de alto curso: o Manuel
Caldeira, que mesmo vivendo lá fora procura
estar muito a par de coisas cá de dentro. E, no
vaivém da conversa, como se falara num amigo de
apelido comum a outro, pediu-me esclarecimentos
sobre um autor teatral: Miguel Rovisco.
Lá lhe
prestei a informação que tinha, de que dispunha.
E quem é, quem era, quem foi Miguel Rovisco?
Um
modesto funcionário da Câmara Municipal de
Lisboa mas também, de acordo com os conhecedores
ou investigadores do fenómeno teatral português,
um dos maiores dramaturgos lusos do século
transacto (que se prolonga, nos seus meandros
criativos, até aos dias de hoje). Prémio
Nacional de Teatro de 1986, autor de centenas de
poemas e de vinte peças dramáticas, viveu muito
à margem do sistema, com os consequentes custos.
Uma sua trilogia, composta pelas peças “O
Bicho”, “A infância de Leonor Távora” e “O tempo
feminino”, que recebera aquele galardão, não
fôra – como teria sido previsto – representada
no Teatro Nacional na altura estipulada.
Disse
também ao meu confrade que os jornais haviam
noticiado num certo dia que Miguel Rovisco havia
posto termo à vida – em Belém, sob o rodado dum
comboio, no mesmo sítio que já servira a
Cristóvam Pavia – por desespero, ferido com as
condições miseráveis que canonicamente continuam
a enlear o
meio cultural
lusitano. O mesmo meio que já sufocou e estorvou
tantos criadores e continua a prejudicar
arteiramente tantos interessados numa existência
de qualidade, menos abjecta e mais profunda e
onde não sejam possíveis, como hoje são
desvergonhadamente, “génios
por via administrativa”,
partidária ou de compadrio civil.
Sim, há gente que “não
aguenta a pedalada”
como sói dizer-se e parte entre choro e ranger
de dentes. Enquanto, geralmente, os meios
oficiais – as quintas dos que
todo lo mandam,
enovelados nas suas contradições e narcisismos -
tratam a criatividade e os seus protagonistas
como potenciais ornamentos, como ilustradores de
actividades para prestigiar
a gerência,
a intendência,
essas montanhas que parem ratos e são
aparelhagens para a desmiolação do poviléu, que
lá bem no fundo desprezam simulando –
com papas e bolos…como
diz o ditado – que lhe querem com afecto e
carinho mui alevantado…
PSCRIPTUM - De há uns tempos a esta parte tem-se
assistido – com algum divertido pasmo, quando
não é com o sobrolho franzido por óbvias razões…
- ao suceder de homenagens e celebrações a Mário
Cesariny. O que seria de muito louvar não se
misturassem a esses eventos,
como ornamentos ou mesmo semi-protagonistas,
elementos do
sector estatal, governamental e pelo estilo.
Gente que representa aqui e agora
o que de mais oposto
há em relação à
vivência surrealista,
à vida sem simulacros e sem próteses
oportunistas. O tipo de cavalheiros/as que mais
tem impedido que neste país a prática –
sublinho,
prática –
surrealista possa incrementar-se, para que como
se pretendeu sempre, nesse sector vital, a
verdadeira
vida se
configure ela mesma.
Antolha-se-nos, se tivermos
um mínimo de
sagacidade ou de bom-senso,
(que é a mesma coisa, neste caso) que o que se
pretende é – mais uma vez, como já assinalámos
em escrito anterior –
capturar a figura de
Cesariny para
mais eficazmente se solapar
o que é e o que
pretende realmente
o surrealismo, de que ele foi um
cultivador vital
até morrer. O que está muito para além das
jornadas
artísticas com
que alguns estrategas buscam encandear a sua
verdadeira essência.
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2. A Propósito
de Televisão
Desde há cerca de trinta anos
que a denominada
sociedade
ocidental
participa numa mutação tecnológica acelerada a
que, por vezes, não consegue dar resposta
adequada no campo espiritual. O nosso mundo
conceptual transfigurou-se duma maneira brusca e
tal facto tem condicionado o nosso universo de
relação. Há factores exógenos e outros
endógenos, nem sempre bem meditados ou
enfrentados com perspicácia ou capacidade para
bem gerir a vida colectiva. E não falamos agora,
é claro, nas tentativas deliberadas de orientar
a realidade em direcções que só acarretam
prejuízos às populações.
Ora,
a televisão, como meio privilegiado e
totalizador a nível de comunicação de massas,
reflecte com enorme relevo esse panorama
inquietante.
Numa obra saída há já algum tempo, o pensador
Alexander Himmelweit diz-nos a dado passo que “a
visão do mundo apresentada pela televisão afecta
o comportamento real dos telespectadores em
função das tendências que se têm e que através
dela são pois reforçadas. Verifica-se assim que
a televisão orienta comportamentos
pré-dispostos.”.
O problema é que,
como referia noutro estudo o sociólogo Alain
Dickinson, “apanhada
num fluxo turbulento de mudança, além de
intelectualmente confusa, a pessoa sente-se
desorientada no plano dos valores pessoais; à
medida que o ritmo se acelera, à confusão
juntam-se a dúvida acerca de si mesma, podendo
comparecer a ansiedade e o medo. À medida que o
tempo decorre, a pessoa torna-se tensa e chega a
cansar-se com facilidade, ficando mais permeável
à doença. Com o aumento implacável das pressões
habilmente induzidas, a tensão transforma-se em
irritabilidade e, por vezes, em cólera e até
violência – que, por outros meios socialmente
directos, o poder canaliza então em direcções
que lhe interessam. Ninharias desencadeiam
grandes reacções; grandes acontecimentos,
reacções insignificantes”.
Ou seja, é-se
objecto de arteira manipulação.
Antes
de passarmos adiante gostaria de referir que
recentemente, num dos laboratórios de ponta duma
famosa universidade europeia, foi levada a
efeito uma experiência com pessoas de várias
etnias e de diversos níveis etários. E
concluiu-se que a música – principalmente certo
tipo de música – actua nos mesmos centros
cerebrais onde actuam as drogas.
E, a talho
de foice, pergunto: será por isso que nos
últimos tempos, principalmente nos meios
radiofónicos - aliás caracterizados por uma
enorme mediocridade - são incessantemente
emitidos programas musicais e, mesmo,
maioritariamente entrevistados ou epigrafados
protagonistas desse mundo (além, é claro, das
consabidas rubricas sobre política partidária e
futebol)?
De há
uns tempos a esta parte, tem-se voltado a falar
com intensidade na questão da violência
veiculada pela televisão. Determinados próceres
da politica à portuguesa, com aprumo jesuítico
têm vindo a lume com pezinhos de lã sugerindo
diversas formas de controle (de censura, que é o
que lhe subjaz) contra a violência que se
exprime através de películas com tiros a granel
e pancadaria de criar bicho. No entanto, com a
sua efígie mesureira e hipócrita no limite,
geralmente deixam de fora – claro! – outras
formas de violência, mais disfarçada e insidiosa
que, quando muito, tocam pela rama: o
espectáculo da lagrimeta e do sentimentalismo
bacoco, o apelo à contemplação do mexerico e da
bisbilhotice, os trechos elementares ou boçais
geralmente protagonizados por luminárias da
frivolidade básica ou embandeirada do
jet set.
As rubricas de
opinião ou
de comentário
que não passam de propaganda torcida, os
talk
shows
pretensamente modernaços que se apoiam,
notoriamente, num certo erotismo para primários
que não passa de pornografia sem subtileza.
E não
devemos esquecer que a pornografia, como o
denotou Sarane Alexandrian e tantos outros, com
a sua carga “comercialista” evidente, é um dos
sinais típicos do recalcamento injectado pelo
fideísmo, essa suma violência dos espíritos em
que se exprime a monomania.
Aproveitando-se dos traumas e dos preconceitos
duma sociedade bloqueada ou disfuncional no
plano afectivo, estas formas disfarçadas de
violência, mas não menos mistificadora e
perigosa, têm como objectivo criar audiências
teledependentes, uma vez que estas são o suporte
da publicidade, que é uma das faces do império
dos negócios. E, quando digo
império,
quero significar o economicismo sem pudor e sem
freio, não a legítima troca ou compra-e-venda
que subjaz e conforma uma fase característica de
existência societária.
O que,
evidentemente, a manipulação televisiva tenta
estabelecer, é a criação de seres
supranumerários, em quem a docilidade é
adquirida de maneira progressiva e
serena,
predispondo o grande público para a passividade,
a ausência de calor humano, de solidariedade e a
dispersão/banalização dos sentimentos,
ligando-se a ideias colectivas sob a batuta de
gurus e de
condottieris
cheios de lábia que, de forma suave e afectuosa,
estabelecem o primado do justamente descrito
como “ur-fascismo
doce”, que um
dos líderes do sinistro “Grupo Bilderberg”
estabeleceu como sendo o efeito de “em
vez de seres levado à matraca, és conduzido com
jeitinho e ternura”…
A
televisão, que podia ser um meio qualificado de
comunicabilidade humanizada – e nos melhores
casos (sem a velhacaria dos que sem máscaras
desprezam o ser humano) é de facto um veículo de
qualidade (lembremo-nos por exemplo de notáveis
documentários da BBC, dos concertos austríacos,
das peças de teatro francesas e de alguns
especialistas espanhóis e lusos) – tem sido
levada por maus caminhos por esses émulos de
pequenos goebbels que usualmente a conseguiram
colonizar por obra e graça do descaramento
estatal que, nos casos mais sintomáticos e
impudicos, tenta fazer de nós todos
idiotas úteis…
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3. Quando as
Cigarras Deixam de Cantar
O
meu compadre
Joaquim Baleiras, alentejano do Reguengo
emigrado em Lisboa há uma boa dúzia de anos, no
meio da grande urbe mantém hábitos saudáveis de
calcorreador de largos espaços. Com o prazer de
quem, durante anos, percorreu serrinhas e
planuras, montes e valados, lá anda ele por
aqueles lugares da capital, ao passeio, apesar
de recentemente, porque o tempo parece que passa
depressa, ter tido uns problemazitos com um
braço, com uma perna – uma dessas coisas
aborrecidas que deixam um mortal a contar menos
com membros outrora ágeis.
Mas o meu compadre não entrega os pontos
facilmente: e ei-lo que, não podendo já ir à
pesca como costumava porque ele há coisas
levadas da breca, anda agora
à pesca
de outras coisas: acontecimentos e rostos
amigos, momentos e aspectos curiosos duma cidade
grande onde agora reside. E vá de passear
consigo mesmo e com os netos, ou vá de sentar-se
em locais aprazíveis – miradouros, jardinzitos…
- principalmente nos altos de Belém e da Ajuda.
Um destes
dias estive na capital. Por causa de literaturas
e pinturações, enfim, o trivial amável de quem
se dá às letras e aos pincéis. Ora, a dada
altura, depois do cordial abraço antecedendo o
almocinho no lar de meus e seus parentes,
enquanto degustávamos um Queen Margot para
rebater, o meu compadre ao calhar da conversa
mostrou-me um livro que numa das suas
deambulações encontrara esquecido a um canto,
perto dum caixote. Dera-lhe pena deixá-lo lá,
porque isto de livros – mesmo usados e algo
antigos – merece-lhe consideração. Apanhara-o do
chão, salvara-o da rua e do lixo por assim
dizer. Antigo mas em bom estado geral, com uma
capa em estilo retro muito sugestiva,
generosamente mo oferecia…
Tomei, agradecendo-o, conta do alfarrábio.
Tratava-se, trata-se (pois tenho-o ali na
estante, “pronto para todas as viagens”) de um
acervo de crónicas de Augusto de Castro “Homens
e paisagens que eu conheci”.
Folheando-o daí a pouco cheguei à página em que
o autor, recordando, nos dá uma nota triste,
pungente, sobre o poeta Gomes Leal, pobre e
doente, pedindo-lhe por carta “qualquer
favor, para que o meu Domingo Gordo não seja um
Domingo Magro”.
E
porque palavra puxa palavra e incita ao
raciocínio, A. de Castro lembra o caso de um
actor, de uma poetisa, de um pintor – todos eles
no asilo ou tendo tido necessidade de partir
para outras terras para não ficarem só com
domingos
magros. A
finalizar o texto, em jeito de lembrete aos
contemporâneos e aos vindouros, o autor
perguntava-se quando verá Portugal
a verdadeira casa de
Camões e Gil Vicente,
que simboliza a casa justa e fraterna dos
lusitanos de hoje.
É
patente que a tecnocracia dos mandantes d’agora,
junta com a burocracia sem olhos-de-ver, está a
tentar traçar na obscuridade os limites de um
país infantilizado, em que sujeitos há que são
mimados com
robalos e
outros com
fotocópias.
Nesta conformidade, o pensamento realmente
autónomo é olhado de lado, os criadores
desenquadrados ou com exigências éticas são
remetidos a prateleiras e ficam
a ver navios
que é para aprenderem a não incomodar.
Os
simbólicos gomes leais deste nosso tempo vivo,
se passam necessidades menos frequentemente,
pois até já abarbatam umas pequenas tenças, são
demasiadas vezes impedidos de se entenderem com
o povo de que fazem parte e por cuja iluminação
se certificam.
E, no
entanto, é pacífico que uma nação
verdadeiramente civilizada tem de ser um
composto harmonioso, criativo e
não normalizado
seja por habilidosos troca-tintas seja por
manobradores rudes e de letras grossas.
ns
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