Revista TriploV . ns . nº 64. abril-maio . 2017 . ÍNDICE.
Homenagem do Triplov aos Capitães de Abril

Foto: Valter Vinagre
Júlio Conrado  (Olhão, 26.11.1936, Portugal). Escritor, crítico literário. Durante vários anos alternou a crítica literária com a ficção (incursões esporádicas na poesia e no teatro), centrando-se actualmente no romance a sua principal actividade. Fez crítica no Diário Popular, Vida Mundial, Colóquio Letras e Jornal de Letras. Colaborador de Latitudes, Cahiers Lusophones (Paris) e Revista Página da Educação (Porto). Coordenou a revista Boca do Inferno, de Cascais. Integrou os corpos sociais de Associação Portuguesa de Escritores, Pen Clube Português, Centro Português da Associação Internacional dos Críticos Literários e Associação Portuguesa dos Críticos Literários. Participou nos júris dos principais prémios literários portugueses. Textos seus estão traduzidos em francês, alemão, inglês, húngaro e grego. Obras principais: Romance: Barbershop (2010), Estação Ardente (Prémio Vergílio Ferreira / Gouveia (2006), Desaparecido no Salon du Livre (2001), De Mãos no Fogo (2001), As Pessoas de minha casa (1985), Era a Revolução (1977) e O Deserto Habitado (1974); Poesia: Desde o Mar (2005); Teatro: O Corno de Oiro (2009). 

JÚLIO CONRADO

Paula Rego, Histórias & Segredos,

um filme de Nick Willing

A enorme carga dramática e respectivo efeito de choque, que preponderam na pintura mais significativa de Paula Rego, foram os factores que ajudaram a consagrá-la num meio onde é difícil triunfar (Londres), indissociáveis, porém, de categóricas ressonâncias vivenciais e das coordenadas epocais de um estilo de vida inibidor, hostil às artes e à emancipação feminina, então sem vislumbre de regeneração, o do Portugal da ditadura salazarista nos anos sessenta do século passado.

Calculando que por trás das doridas figurações da realidade que o talento da artista compatibilizou com o seu desespero existencial, havia registos confidenciais que valia a pena serem descobertos e divulgados, Nick Willing, o cineasta seu filho, logrou que ela anuísse a uma proposta para reter em filme, através de uma conversa-entrevista, a coração aberto, o lado até então inacessível da sua personalidade, desconhecido tanto dele como das duas irmãs.

Paula Rego aceitou o repto, que passava pelo reconhecimento, em jeito de autocrítica, das incompatibilidades entre carreira e família que a marcaram como a mãe e esposa, ambas sacrificando à pintura as responsabilidades afectivas mais prementes. E participou no jogo de Nick em estado de total cumplicidade, ao “rasgar-se” exibindo um descaramento bem-humorado no qual porventura se escondia uma forte sensação de alívio: a possível liquidação de uma dívida, através daquela fórmula de ajuste de contas, aos seus próximos, apesar da descontracção aparente sob regras de sinceridade e autenticidade exemplarmente acatadas.

 Mas ficámos a saber histórias e segredos dolorosos uns, saborosos, outros, desde as traumatizantes desavenças com a mãe, as idas à pesca na companhia do pai, ao Cabo da Roca, a viagem decisiva rumo a Inglaterra, onde frequentou a Slade School of Fine Arts apoiada pela Fundação Gulbenkian, o primeiro momento de consumação sexual, a doença prolongada do marido (o pintor inglês Victor Willing), uma sequência de abortos, a penúria doméstica, até à glória do reconhecimento da sua arte ao mais alto nível, solicitada pelas grandes galerias mundiais e com a crítica da especialidade completamente rendida à vigorosa mensagem estética e humana que daquela ressalta.

Nick Willing, prudente e delicado, entregou-se à função de entrevistador – dir-se-ia que com bastante afecto – ainda que os comentários das irmãs, por vezes ásperos, de algum modo destoassem do metal de voz sereno do realizador-moderador. Em todo o caso o egoísmo vital da artista que pressente ter atingido com a sua arte uma espécie de transcendência que a redime e aos seus de todo um passado de privações e frustrações, merece ser homologado como a montanha que, uma vez escalada,  certifica a chegada da genialidade às culminâncias de desígnio tão intransigentemente procuradas.  

Não sei se o filme de Nick excederá os parâmetros de um documentário bem feito, inspirado, como agora se diz por tudo e por nada, numa história verídica.

O certo é que, ao revelar-nos uma Paula Rego terra-a-terra, um ser humano portador de todas as diferenças que caracterizam os melhores depois de terem vivido tempos difíceis, o filho da pintora realizou um filme de temática complexa e comovente. Nem que seja só por isso, é digno do nosso inteiro apreço.

Nenhuma biografia de Paula Rego, por mais controversa que possa ser, apagará ou diminuirá a grandeza de um incomparável legado artístico, realizado à custa de soberbos golpes de energia criadora e da crença obstinada  na sua fulgurante excepcionalidade .                                

 

 

S. João do Estoril, Abril de 2017

 
 
 
 
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