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								O abjeccionismo, 
								mau grado a singularidade da sua situação no 
								século XX português, visto não depender de 
								qualquer importação, decalque ou tradução, ao 
								menos directa, o que não aconteceu a nenhum 
								outro ismo, salvo o primeiro deles, que é só 
								excepção, o abjeccionismo parece estar hoje 
								semi-esquecido, fora de qualquer foco público de 
								atenção. 
								Confundir porém 
								obscuridade ou até olvido com envelhecimento 
								obsoleto seria erro grave que a deusa do devir 
								não nos perdoaria. O abjeccionismo vive hoje num 
								purgatório escondido, mas não no reino dos 
								mortos, onde a vida se apaga sem remédio. 
								Dir-se-ia que o presente ainda necessita de 
								ajustar contas com o passado – ou este não cessa 
								de tirar desforço do que tanto o incomodou. O 
								modo como o abjeccionismo subverteu sem excepção 
								o que o rodeava foi demasiado cru e teve 
								consequências demasiado graves e extensas para 
								não ser ainda hoje condenado a cárcere, já que 
								não pode, no domínio do espírito, sofrer pena 
								capital.  
								Fora das nossas 
								vistas, esquecido numa margem obscurecida do 
								tempo, fechado numa Bastilha inexpugnável, 
								exilado numa ilha distante a mando dos 
								poderosos, o abjeccionismo continua a pagar o 
								preço da sua larga e operativa originalidade, 
								não apenas estética, e da sua irreverência para 
								com as formas de arte e de pensamento do seu 
								tempo – e tão opostas e diversificadas elas 
								pareciam afinal ser.  
								Cabe-nos a nós 
								identificar a situação e abreviar esta pena 
								injusta. Impõe-se abrir um caminho neste 
								território desconhecido, traçar o mapa proibido 
								e aceder à fala com este exilado. O 
								silenciamento a que o abjeccionismo tem estado 
								sujeito não tem razão de ser; é abuso 
								intolerável. Seja ele uma extensão do 
								surrealismo – e houve quem lhe chamasse 
								metástase portuguesa do surrealismo – seja 
								um momento absoluto e diferenciado, o que 
								dificilmente se aceita, é sempre nele que 
								reside, sobretudo quando apreciado a partir das 
								suas privilegiadas ligações ao surrealismo, 
								indiscutíveis estas, um dos nós mais vivos e 
								exaltantes da criação portuguesa da segunda 
								metade do século XX.  
								Deixam-se de 
								seguida alguns dados que podem contribuir para 
								uma ideia mais segura do que foi a história do 
								seu nascimento e do seu desenvolvimento e ainda 
								algumas reflexões – a paixão historiográfica não 
								nos pode fazer esquecer as restantes tarefas do 
								pensar – que visam esclarecer o seu sentido e o 
								seu não sentido. 
								  
								O NASCIMENTO DO 
								ABJECCIONISMO 
								Em Agosto de 1948, 
								Mário Cesariny, logo seguido por António 
								Domingues, entra em ruptura com o Grupo 
								Surrealista de Lisboa, que se formara no final 
								do ano anterior. Cesariny junta-se então a 
								António Maria Lisboa, a Pedro Oom, a Cruzeiro 
								Seixas e alguns mais, projectando o nascimento 
								do grupo “Os Surrealistas”. É no quadro das 
								acções deste grupo que surge o abjeccionismo. 
								 
								Em Dezembro de 
								1949, A. Maria Lisboa redige parte de Erro 
								Próprio, conferência-manifesto. Os três 
								parágrafos finais do texto, que reflectem o 
								convívio próximo com Pedro Oom, são a matriz do 
								abjeccionismo.  
								
								Diz Lisboa: 
								Traz o Poeta em si os passos e as atitudes dum 
								Mundo Íntimo e Rico, mas depressa a vida oficial 
								e legal, a vida de toda a gente, da massa e seus 
								aproveitadores, lhe suprimem o direito à 
								existência, viver estranho e isolado num mundo 
								que pretendia habitado e harmonioso é viver 
								suicidado, viver morto-vivo num mundo de nado 
								morto. // Especado perante as cidades um novo 
								dilema se abre: – como comunicar numa 
								Babilónia que se destrói ao conquistar a ordem e 
								que para o Poeta não tem interesse a sua 
								subsistência? // Pergunta que cada um resolverá 
								como entender e na altura própria. 
								 
								
								Numa carta de 
								Abril de 1950 a Mário Cesariny, A. Maria Lisboa 
								põe por escrito pela primeira vez a palavra 
								“abjeccionismo”: Serei ou não surrealista de 
								hoje para o futuro com a minha Metaciência e o 
								Nosso Abjeccionismo – eu não me pronunciarei 
								sobre tal.  
								Que entende A. 
								Maria Lisboa por “abjeccionismo”? A resposta 
								está nos parágrafos finais de Erro Próprio, 
								contemporâneos desta missiva. O abjecccionismo é 
								para o seu criador a “vida oficial e legal, a 
								vida de toda a gente”, quer dizer, o avesso do 
								mundo “íntimo e rico” que o poeta traz dentro de 
								si, mundo próprio da demanda surrealista. O 
								abjeccionismo é pois um “reverso”, um reverso do 
								surrealismo e não um exclusivo, como sucede com 
								a “sordidez” de Céline, esta sem saída e sem luz 
								de contraponto.  
								Em 1953, A. Maria 
								Lisboa, já fatalmente doente, depois de ter 
								publicado no ano anterior em edição de autor 
								Erro Próprio e Ossóptico, dá a lume 
								na chancela de Luiz Pacheco, Contraponto, 
								Isso Ontem Único, onde, no texto “Alguns 
								Personagens”, regressa a ideia de abjecção. 
								 
								
								Assim: É no 
								poeta visível a inépcia, que é abjecção, de si 
								perante e numa vida a que foi chegado. O mundo 
								social, o mundo como tal organizado, é o 
								obstáculo que o leva nos desencontros sucessivos 
								com a felicidade e na luta contra ele à mais 
								pequena percepção do mundo autêntico – longínquo 
								aqui agora e inumano! // Mas precisemos: essa 
								inépcia não é filha da falta de possibilidades 
								em adquirir as capacidades necessárias para 
								seguir viagem, mais que resultado de 
								insuficiências, consequência da relação em que o 
								poeta se encontra com esse outro mundo que sendo 
								também do homem não é o do homem. 
								 
								A abjecção é neste 
								importante trecho a inaptidão social do poeta. A 
								sociedade, com as exigências mercantis que 
								arvora e as regras de conduta que impõe, 
								condicionadas estas pelas outras, constitui um 
								obstáculo à viagem do poeta ao mundo 
								autêntico, ao mundo poético e surreal, fora 
								este do domínio social. O homem que se entrega à 
								moral social fica assim, em virtude dos valores 
								que aí o manietam, coarctado do mundo autêntico 
								da poesia. A sociedade é pois um obstáculo 
								sério, mas não absoluto, já que o poeta pode 
								objectar à moral social, vivendo à margem e 
								entregando-se a uma demanda paralela e sem 
								pontes de contacto com ela, sociedade. A 
								abjecção social – ausência de emprego, de 
								riqueza, de prestígio, de sucesso – é o preço 
								que o poeta tem de pagar em termos sociais pela 
								aventura que empreende. Em sociedade mercantil, 
								onde a moral social impõe valores suicidários do 
								“mundo autêntico”, o poeta não pode visar o 
								sucesso mas apenas a solidão – isso que A. Maria 
								Lisboa chama a “abjecção, de si perante”. 
								Depois da partida 
								do poeta de Ossóptico, em 1953, Luiz 
								Pacheco edita dele um texto que lhe teria sido 
								passado pelo próprio pouco antes de falecer, 
								Aviso a Tempo por Causa do Tempo (1956), em 
								folha única. Constituído por seis parágrafos e 
								uma conclusão, o texto tem uma feição de 
								manifesto colectivo – usa sempre a primeira 
								pessoa do plural – e na origem talvez se 
								destinasse a ser assinado por vários nomes; está 
								datado de Julho de 1953 mas pode ter sido 
								composto antes, entre 1950 e 1951, época em que 
								o grupo “Os Surrealistas” está ainda activo. É 
								decerto a mais libertária das declarações 
								surrealistas portuguesas (afastamento dos 
								partidos, do Estado, da polícia, da sociedade e 
								da família).  
								Tem interesse para 
								o estudo do abjeccionismo, pois de novo volta a 
								tocar a questão. O ponto 4 diz: “que sendo 
								individualmente e portanto abjeccionalmente 
								desligados das normas convencionais temos o 
								máximo regozijo em ver essas mesmas normas nos 
								componentes da sociedade. Abstraindo da 
								ironia que se lhe segue, “abjeccionalmente”, 
								palavra que importa, surge aqui como o 
								modo do poeta recusar a “vida oficial e legal” – 
								na expressão do Aviso, as “normas 
								convencionais”.  
								Estamos de novo 
								ante a experiência individual e única dum 
								inverso, a do poeta, na procura ou percepção do 
								mundo autêntico, por contraste com a experiência 
								das convenções sociais, a de “toda a gente”. O 
								modo como poeta se desliga da sociedade, 
								enquanto obstáculo, para se poder consagrar à 
								viagem interior, à demanda do “mundo autêntico”, 
								é “abjeccional”, não por ser individual mas por 
								mostrar “inépcia” para com os valores sociais 
								dominantes (concorrência, mérito, disputa, 
								sucesso, vitória, prestígio). O lugar do poeta 
								abjeccionista é pois na margem, numa não 
								participação absoluta, numa objecção permanente 
								aos valores da sociedade.  
								No rescaldo do 
								horror da primeira metade da década de 40 do 
								século XX, o abjeccionismo português nasce como 
								uma teoria altamente elaborada da objecção de 
								consciência. É por um lado na voz dum grupo de 
								jovens de vinte anos um uivo fortíssimo de 
								recusa, o NÃO mais categórico e maiúsculo que 
								até hoje entre nós se gritou, e por outro é o 
								grito eufórico, a expressão alta de alegria de 
								quem tem ante si a pesquisa, o encontro e o 
								aprofundamento do mundo autêntico. 
								Os três parágrafos 
								finais de Erro Próprio, de 1950, a carta 
								a Cesariny, também de 1950, em que se escreve 
								pela primeira vez a palavra “abjeccionismo”, o 
								texto “Alguns Personagens” de Isso Ontem 
								Único e o ponto 4 de Aviso a Tempo por 
								Causa do Tempo, em que se adverbializa a 
								experiência da abjecção, passando ela a ser 
								tão-só uma via de desprendimento, ou de não 
								compromisso na selva social, podem ser tomados 
								como momentos fundadores do abjeccionismo. Estes 
								textos capitais são da autoria de António Maria 
								Lisboa, se bem que resultem do convívio com pelo 
								menos Pedro Oom e Mário Cesariny. 
								 
								Em 1955 começam as 
								reuniões nos cafés Gelo e Royal, onde se reúnem 
								os sobreviventes da geração que aderiu ao 
								surrealismo em 1947, que fora entretanto 
								dispersa pela pressão da realidade, e uma nova 
								geração, nascida já, com excepção de Virgílio 
								Martinho, na década de 30. É no seio desse novo 
								cenáculo que o abjeccionismo viverá renovados 
								desenvolvimentos, com uma síntese previsível já 
								na teorização inicial de Lisboa, o 
								surreal-abjeccionismo, e com a reanimação dum 
								neologismo, o neo-abjeccionismo, cujo criador e 
								protagonista, quase exclusivo, será um dos 
								elementos da velha guarda de 45, Luiz Pacheco, 
								ligado por estreitos laços de parentela aos 
								“Surrealistas” e em especial a Lisboa e a 
								Cesariny.  
								  
								A RECRIAÇÃO 
								NEO-ABJECCIONISTA 
								Em Janeiro de 1959 
								Luiz Pacheco é processado pela mãe de Maria 
								Eugénia Soares Barbosa, menor de 14 anos, por 
								manter com esta uma relação sexual desde há dois 
								anos. Fica sujeito a mandato de captura se não 
								pagar fiança de três mil escudos. Luiz Pacheco, 
								ainda funcionário da Inspecção Geral de 
								Espectáculos, foge para Itália, onde deambula 
								cerca de duas semanas com licença sem 
								vencimento; regressa a Portugal, pede rescisão 
								de contrato, paga uma fiança provisória que leva 
								à suspensão do mandato de captura e abandona a 
								família, passando a dormir em quartos de aluguer 
								(e às vezes em escadas). Nasce o primeiro filho 
								de Maria do Carmo Matias, de 17 anos, antiga 
								empregada da sua mulher Maria Helena Conceição 
								Alves, que por sua vez era uma antiga empregada 
								de sua mãe e com quem fora obrigado a casar no 
								limoeiro em 1947. 
								
								Por essa altura 
								edita na Contraponto Diálogo entre um padre e 
								um moribundo de Sade. Assume o epíteto 
								“libertino” e concebe, ele que editara até aí 
								apenas meia dúzia de textos jornalísticos, sem 
								grande alcance, ser autor duma literatura nova, 
								a que chamará dois anos mais tarde 
								neo-abjeccionista. Ainda no ano de 1959 cunha a 
								expressão “picto-abjeccionismo” para a acção 
								plástica de Cesariny – que expõe em 1959 na 
								Galeria Divulgação do Porto. Por sua vez, Mário 
								Cesariny, na nota introdutória a Caca, Cuspo 
								e Ramela, edição sua (1959), diz estar a 
								laborar com excrementos orgânicos. 
								Luiz Pacheco, no 
								Outono, tem novo mandato de captura da Boa-Hora, 
								sendo preso em Dezembro no Limoeiro. Em Janeiro 
								de 60 é julgado e absolvido na Boa Hora pelo 
								juiz Arelo Manso – a única prova de incriminação 
								do réu era um beijo dado na rua em forma de 
								cumprimento. Em Maio morre, em Bucelas, o seu 
								pai, sem que Pacheco tenha estado presente ao 
								funeral. Este processo de ruptura com a 
								estabilidade profissional e familiar, que 
								aconteceu entre 1958 e 1960, foi decisivo para 
								Pacheco vivenciar por dentro o “abjeccionismo”, 
								pondo em prática a rejeição da sociedade, que na 
								teorização de A. M. Lisboa é o preço a dar pela 
								aventura interior, o reverso necessário para o 
								poeta ficar disponível para contactar o mundo 
								autêntico. Sem rejeição social não há 
								disponibilidade para partir ao encontro do mundo 
								autêntico.  
								Pacheco foi assim, 
								com M. Cesariny, que se recusou sempre a ser 
								escravizado pelo salário (e em 1953 foi 
								humilhado pela polícia com um processo de 
								costumes que durou anos), e com A. Maria Lisboa, 
								que pagou com a vida a recusa em se deixar 
								arregimentar pela engrenagem social (a sua 
								tuberculose foi contraída em Paris, onde viveu 
								meses sem dinheiro para comer, a dormir em 
								escadas), aquele que mais autoridade ganhou em 
								termos de experiência de rejeição social. A sua 
								objecção concreta às instituições sociais foi 
								larguíssima – era originário de meio rico, culto 
								e burguês (os avós eram generais do exército) – 
								e deu lugar a um rol de experiências únicas, a 
								célebre mitologia pachecal que ele 
								próprio se encarregou de explorar na sua 
								literatura, toda de natureza autobiográfica. É 
								no quadro dessa euforia – nada menos do que a 
								criação dum novo mito e dum novo tipo de crítica 
								(em que a vida do autor se torna mais premente 
								do que a obra – Pacheco chamar-lhe-á na síntese 
								final de 71 (Notícia, 17-10-1971) 
								crítica de identificação (diz-me quem és e 
								como ages, dir-te-ei o que escreves) – que 
								germina, dez anos depois da redacção e 
								apresentação de Erro Próprio, o 
								neo-abjeccionismo. 
								Em 1961 nasce o 
								segundo filho de Pacheco e de Maria do Carmo. Em 
								Outubro, numa viagem pelo Minho com António José 
								Forte, Pacheco escreve O Libertino passeia 
								por Braga, a Idolátrica, o seu esplendor, 
								relato de experiências sexuais libertinas 
								(hetero e homossexuais, com forte presença da 
								pedofilia e do onanismo), relato impublicável, 
								que só verá a luz em Janeiro de 1970, numa 
								edição clandestina (de Vítor Silva Tavares) que 
								não foi ao circuito livreiro. Luiz Pacheco e 
								Maria do Carmo Matias vão no Outono para 
								Almoinha, Sesimbra, casa (Luiz Pacheco 
								chamar-lhe-á numa carta para Natália Correia 
								“buraco”) paga pelo editor Eduardo Salgueiro, 
								para quem Pacheco faz trabalhos de revisão e 
								tradução. Escreve na Almoinha a novela O 
								Teodolito, que será apresentada como o 
								primeiro exemplo de composição 
								“neo-abjeccionista”.  
								Porquê 
								“neo-abjeccionismo” e não “abjeccionismo”? Dez 
								anos após os textos de Lisboa, que Pacheco 
								conhecia bem, chegou até a editar dois deles, 
								quis marcar a diferença, que é apenas de tempo, 
								nunca de sentido. A abjecção e a neo-abjecção 
								são a experiência social, sempre de 
								rejeição, sempre de negação, daquele que se 
								consagra ao conhecimento interior e à conquista 
								da liberdade. Por força da experiência vital de 
								Luiz Pacheco, e das suas sucessivas rupturas, 
								mitologizadas de imediato, como sucede n’ O 
								Teodolito, historieta de relação sexual dum 
								menino burguês com uma criadita de servir 
								acabada de chegar da província, relançamento em 
								força do abjeccionismo junto da geração do café 
								Gelo.  
								Se não existe 
								diferença de qualidade entre o abjeccionismo e o 
								seu novo consequente, mas apenas distância 
								temporal, existe ao menos uma diferença de 
								intensidade. Ao invés do que sucede com Lisboa e 
								Cesariny, que negam para conquistarem a 
								liberdade de afirmar, Pacheco parece 
								concentrar-se na negação. A objecção é um fim em 
								si mesmo; logo, a aventura interior, a demanda 
								do surreal é muito mais tímida em Pacheco. A 
								literatura deste é uma literatura do não; não se 
								pode conceber para ele um livro como 
								Ossóptico, consagrado quase em exclusivo à 
								percepção do mundo autêntico. No 
								neo-abjeccionismo o reverso negro da negação, a 
								objecção às instituições sociais domina sobre a 
								face luminosa e eufórica da afirmação. 
								 
								Daí o papel que o 
								biografismo assume no neo-abjeccionismo, quer 
								como criação, quer como acção crítica. É 
								porventura o único movimento impossível de 
								abordar sem a biografia do seu criador. São os 
								passos da vida de Pacheco que criam este “neo” e 
								não o inverso. Luiz Pacheco foi um dos raros 
								escritores do século XX português que teve uma 
								biografia, que conquistou o direito a viver a 
								vida que quis e não aquela que as circunstâncias 
								o empurravam a viver. A maior parte dos nossos 
								escritores adiou e adia por razões várias a sua 
								vida, que acabam por trocar pelo dia a dia 
								impessoal, monótono, convencional, que o meio 
								social impõe. Ele, Pacheco, libertou-se das 
								condicionantes sociais e assumiu uma vida só 
								dele, construída e decidida por ele, no 
								confronto constante com as instituições e na 
								assumpção livre dos seus instintos sexuais. Luiz 
								Pacheco decidiu, bem ou mal, e em geral bem, a 
								sua própria biografia, enquanto a maior parte de 
								nós tem a folha biográfica que a sociedade nos 
								determina. 
								No início de 1962, 
								escaramuças entre Luiz Pacheco e Mário Cesariny 
								por causa da edição das obras de António Maria 
								Lisboa na Guimarães Editores, que saem nessa 
								altura. Em Maio deste ano terminam os encontros 
								no Gelo, trocado pelo café Nacional. Luiz 
								Pacheco e Maria do Carmo deixam na Primavera 
								Almoinha e depois duma rápida passagem por 
								Lisboa seguem para a terra desta, Macieira, 
								concelho da Sertã. Cesariny lê com entusiasmo 
								O Teodolito e decide integrá-lo na 
								colectânea em preparação. Luiz Pacheco edita na 
								Sertã o 3.º número dos cadernos Contraponto, 
								quase só com colaboração surrealista (Ernesto 
								Sampaio, António José Forte, Virgílio Martinho, 
								Natália Correia, Manuel de Lima). No Verão Maria 
								do Carmo deixa a Macieira e vem para Lisboa 
								(para casa de Natália Correia). Luiz Pacheco 
								inicia uma relação com Maria Irene, 13 anos, 
								irmã mais nova de Maria do Carmo. Em Novembro 
								vêm os dois para Lisboa e Pacheco vive um curto 
								período com as duas irmãs. No final do ano, 
								depois de fazer a dinheiro grande parte da sua 
								biblioteca e da biblioteca que herdou do pai, 
								foge com Maria Irene, já grávida, e com os 
								filhos de Maria do Carmo, para Setúbal. 
								Desaparece por incúria vária o espólio de A. 
								Maria Lisboa que Pacheco recuperara do lixo em 
								53 e deixara depois de Almoinha – nesta o 
								espólio ainda estava na sua posse – em vivenda 
								da Parede.  
								  
								
								A SÍNTESE 
								SURREAL-ABJECCIONISTA 
								Mário Cesariny, no 
								ano em que edita Caca, Cuspo e Ramela 
								(1959), o seu conjunto mais abjeccionista, com 
								fortíssima carga lexical na área da abjecção 
								(jazigos, escarradores, urinóis, larápios e 
								poetas…), planeia colectânea de colaborações 
								surrealistas e abjeccionistas. Coincide com o 
								momento em que Luiz Pacheco cria a designação de 
								picto-abjeccionismo e entra em ruptura 
								definitiva com a engrenagem social em que estava 
								inserido. É o ano em que rescinde contrato, 
								abandona o emprego e a família, responde por 
								atentado ao pudor de menor e volta a ser preso 
								no Limoeiro (estivera lá primeira vez em 1947) 
								mas é também o ano em que Pacheco publica (pela 
								mão de Cesariny) o seu primeiro opúsculo, 
								Carta-sincera a José Gomes Ferreira, logo 
								saudado por João Palma-Ferreira (Diário 
								Popular, 7-5-1959) como o primeiro fruto dum 
								dos críticos mais acutilantes e completos de 
								sempre.  
								
								O 
								surreal-abjeccionismo de M. Cesariny não se 
								confunde porém com o neo-abjeccionismo de 
								Pacheco. Este é uma objecção total, se bem que 
								não exclusiva, já que pretende afirmar a 
								fantasia do instinto sexual, enquanto o 
								primeiro, na linha de Lisboa, é uma tentativa de 
								encontrar a unidade, pondo em contacto o verso e 
								o reverso do mesmo caminho. 
								No início do ano 
								de 1962 surge talvez a primeira alusão pública 
								ao surrealismo-abjeccionismo [Jornal de 
								Letras e Artes, 17-1-1962] e à colectânea 
								que Cesariny está a organizar. O número do 
								jornal traz antologia surreal-abjeccionista nas 
								páginas centrais (ainda sem Luiz Pacheco, tanto 
								mais que nesse momento estala a polémica entre 
								Pacheco e Cesariny por causa das obras de Lisboa 
								editadas na Guimarães). Presentes: Helder 
								Macedo, José Sebag, Natália Correia, 
								Mário-Henrique Leiria, António Maria Lisboa, 
								António José Forte, António Porto-Além, Luís 
								Veiga Leitão, Pedro Oom e Carlos Loures. 
								Primeiro ensaio daquilo que será a colectânea 
								Surrealismo-Abjeccionismo, organizada por 
								Cesariny, momento cimeiro da aglutinação dos 
								dois movimentos, se é que se pode falar, desde o 
								impacto teórico de Lisboa, de dois movimentos 
								distintos e não apenas das duas vertentes da 
								mesma realidade. 
								 Em Março do ano 
								seguinte entrevista ao Jornal de Letras e 
								Artes de Pedro Oom (6-3-1963). É um dos 
								momentos altos da síntese surreal-abjeccionista, 
								se bem que nele, mas de modo muito mais teórico 
								do que em Pacheco, já que os passos de vida de 
								Oom são muito mais limitados que os de Pacheco, 
								o rosto negro da abjecção domine sobre o 
								desassombro solar da realidade sublime. 
								 
								
								Na entrevista 
								faz-se a valiosa destrinça entre angústia e 
								abjecção, realidades inconfundíveis, que nunca 
								se cruzam ou se sobrepõem. Com a teorização de 
								Oom, que desenvolve a de Lisboa, tanto mais que 
								a deste nasceu em diálogo com ele, o 
								abjeccionismo descarta de vez qualquer afinidade 
								com o existencialismo, então em voga entre nós 
								por via da literatura de Vergílio Ferreira ou da 
								ensaística de António Quadros. Esta distinção é 
								talvez o contributo decisivo de Oom. Afirma ele:
								Numa sociedade dualista, dividida entre duas 
								grandes forças antagónicas (…), o Poeta só tem 
								como alternativas a angústia ou a abjecção. Se 
								escolhermos esta última atitude é porque ela nos 
								mantém ainda uma réstia de esperança quanto ao 
								destino do Homem.  
								
								A esperança de que 
								fala Oom é afinal a mesma que empresta ao 
								surrealismo a sua natureza de aventura solar. Se 
								Oom nega relação entre angústia e abjecção, 
								alternativas absolutamente distintas, caminhos 
								separados e paralelos, já surrealismo e 
								abjeccionismo parecem funcionar como os vasos 
								comunicantes dum mesmo tubo. Diz Oom: Entre 
								surrealismo e abjeccionismo existem muitos 
								pontos de contacto, relações de parentesco muito 
								próximo. No abjeccionismo, que é antes de tudo 
								uma atitude concebida para a sobrevivência do 
								indivíduo sem lhe coarctar a livre floração da 
								personalidade (…), também se acredita numa 
								Realidade Absoluta e o seu fim é o mesmo do 
								surrealismo: a transformação dos valores básicos 
								da sociedade dita “moderna”, dita civilizada, 
								através da transformação moral e espiritual do 
								indivíduo isolado (…). 
								 
								É nesta entrevista 
								que aparece formulada a pergunta: que pode 
								fazer um homem desesperado quando o ar é um 
								vómito e nós seres abjectos? Esta pergunta, 
								que se costuma apresentar como imagem de marca 
								do abjeccionismo, é afinal a reelaboração do 
								penúltimo parágrafo de Erro Próprio, 
								também ele uma pergunta (como comunicar numa 
								Babilónia que se destrói ao conquistar a ordem e 
								que para o Poeta não tem interesse a sua 
								subsistência?). A célebre consigna de Oom 
								virá pois do final da década de 40. Tudo leva a 
								crer que tenha sido formulada em conversas com 
								A. Maria Lisboa sobre os parágrafos finais de 
								Erro Próprio, pois não custa encará-la como 
								uma variante deles. Este conjunto textual, a que 
								se junta a carta de Lisboa a Cesariny de Abril 
								de 50, faz prova dum abjeccionismo já então 
								assumido em grupo. 
								Outro momento alto 
								da síntese surreal-abjeccionista é a saída na 
								mesma altura da colectânea organizada por 
								Cesariny, Surrealismo-Abjeccionismo, que 
								desde 1959 estava a ser pensada e montada. 
								Apareceu finalmente em Março de 1963, na editora 
								Minotauro, de Bruno da Ponte, um homem discreto 
								mas interveniente, próximo do surrealismo, com 
								subtítulo “antologia de obras em português 
								seleccionada por Mário Cesariny de acordo com o 
								propósito inicial” e com duas epígrafes 
								comunicantes, uma de André Breton e outra de 
								Pedro Oom, recolhendo 32 autores, entre 
								pictóricos e poetas. Aparece aí pela primeira 
								vez – a fortuna editorial ulterior será grande – 
								a “composição neo-abjeccionista” de Luiz 
								Pacheco, O Teodolito. 
								 
								Não é irrelevante 
								que no momento em que se dá a síntese dos dois 
								momentos, ou a justaposição dos dois lados da 
								peça, verso e reverso, franjas soltas do 
								neo-realismo, como Irene Lisboa, Joaquim 
								Namorado, Veiga Leitão ou José Leonel Rodrigues, 
								sejam chamados a comparecer. A inapetência do 
								poeta para os valores sociais dominantes, a isso 
								se chama abjeccionismo, acabou aí por funcionar 
								como a ponte possível entre o surrealismo, mais 
								nefelibata, ocupado que estava com a tentativa 
								de encontrar uma realidade absoluta, primordial 
								e intocada, na posse ainda de todos os poderes 
								originais, e o realismo chão, consagrado à 
								denúncia da miséria em sociedade civilizada. 
								 
								Lançamento do 
								volume na Casa da Imprensa a 30 de Março, com a 
								presença de Mário Cesariny e dalguns autores, 
								que leram os seus textos. Luiz Pacheco, em 
								Setúbal, não compareceu, mas enviou texto 
								inédito, “O que é o neo-abjeccionismo”, lido por 
								Cesariny. Ao invés do que o título possa 
								indiciar, não é um texto teórico mas tão-só um 
								pedido de esmola. Cumpre-se assim a visão 
								teórica de A. Maria Lisboa: o poeta, homem 
								livre, vive estranho e isolado (…), vive 
								suicidado, morto-vivo num mundo de nado morto. 
								Em Maio nasce Paulo Eduardo Pacheco, primeiro 
								filho de Maria Irene Matias e Luiz Pacheco. 
								 
								No início do ano 
								de 64, Cesariny vai para Paris, com uma bolsa da 
								Gulbenkian. Cruzeiro Seixas regressa a Lisboa 
								depois dum longo exílio de 14 anos em Luanda. Em 
								Maio Pacheco escreve Comunidade e no 
								Outono faz um novo pedido de esmola por escrito,
								O Cachecol, editado em Santarém por A. 
								José Forte. No final de Dezembro, abandona 
								Setúbal com os filhos e Maria Irene, com destino 
								às Caldas da Rainha. Mário Cesariny, apanhado em 
								flagrante numa relação homossexual num cinema de 
								Paris, é preso em Fresnes (Outubro e Novembro), 
								cruzando-se no Natal, em Lisboa, com Luiz 
								Pacheco, em viagem para as Caldas. 
								  
								A REVISTA 
								ABJECÇÃO 
								É o derradeiro 
								momento alto da síntese surreal-abjeccionista. e 
								outro ainda é a projecção, em 1965, da revista 
								chamada Abjecção, que nunca chegou a 
								aparecer) 
								1965 – Luiz 
								Pacheco instala-se nas Caldas da Rainha. 
								Virgílio Martinho contacta a editora Ulisseia 
								(Vítor Silva Tavares e Edite Soeiro), que se 
								interessa em editar Luiz Pacheco. Entrevista de 
								João Rodrigues ao Jornal de Letras e Artes 
								(15-9-65); afirma-se abjeccionista e define o 
								surrealismo português como sendo um 
								abjeccionismo adulto e apto a ganhar a vida. 
								Em Agosto, nasce o último filho de Luiz Pacheco 
								e de Maria Irene. Fernando Ribeiro de Mello 
								(n.1942) surge como editor (Afrodite) com a 
								publicação de Kamasutra. Natália Correia 
								organiza para Ribeiro de Mello a Antologia de 
								Poesia Erótica e Satírica e pede colaboração 
								a L. P., que envia “Coro de Escarnho e 
								Lamentação dos Cornudos em Volta de S. Pedro”. A 
								colectânea, com ilustrações de Cruzeiro Seixas, 
								surge em Novembro e é logo apreendida pela 
								polícia. São processados Fernando Ribeiro de 
								Mello (editor), Natália Correia (organizadora) e 
								alguns autores, entre eles, Pacheco e Cesariny. 
								Este último edita em Dezembro A Cidade 
								Queimada (Ulisseia), também com 
								ilustrações de Cruzeiro Seixas. 
								 
								Nasce e 
								desenvolve-se ao longo do ano o projecto de 
								fundar uma nova revista, definida e 
								decididamente abjeccionista. Chegou a ter vários 
								títulos, o definitivo Abjecção. A ideia e 
								o nome definitivo pertencem a Cruzeiro Seixas. 
								Primeira alusão em início de Abril – carta de L. 
								Pacheco para Mário Cesariny. Assim (Pacheco 
								versus Cesariny, 1974: 125): “Recebo hoje 
								carta-postal do Seixas a falar-me numa revista 
								abjeccionista e em ti.” De seguida carta de 
								Pacheco para Cruzeiro Seixas, ainda de Abril. 
								Assim (1974:133-5): “Uma revista 
								abjeccionista é precisamente o que eu desejaria 
								publicar. Tenho colaboração para a mesma. Tenho 
								projectos. Estou a organizar um ficheiro. 
								Suponho que teremos público. (…) Vai entretanto 
								assentando ideias porque esta revistinha pode 
								ser o nosso futuro e o de muita gente. Tens 
								título? A que estava fazer em Santarém, por 
								incumbência do Forte (que, preso, teve de 
								desistir), chamava-se, ora vê lá se adivinhas… 
								chamava-se O Crocodilo que Voa.” A 
								resposta de C. Seixas diz (1974: 136): “Tenho 
								o maior interesse em falar contigo. Vai pensando 
								que a revista que penso seria qualquer coisa 
								como Le Surréalisme Même. Muitas gravuras 
								e não poucas traduções.” Ainda em Abril, em 
								nova carta a Luiz Pacheco, Seixas acrescenta: “Isto 
								quanto à revista nossa, Abjecção, que tu 
								confundes com outra que anda no ar em projecto, 
								e que será fabricada sob as brumas londrinas. 
								Esclareço: a ideia da Abjecção-revista, partiu 
								de mim. A ela aderiu desde logo com o seu 
								entusiasmo (…) o Pedro Oom que começou a fazer o 
								arranjo gráfico, com os elementos que se iam 
								reunindo. O Mário, da outra banda, aderiu também 
								com o seu entusiasmo, mandando logo coisas e 
								prometendo outras (enviado especial da 
								Abjecção, em Paris, sob o pseudónimo de 
								Coreto da Costa). Procurámos o Virgílio Martinho 
								que também se entusiasmou, fazendo pensar que 
								esta ideia era realmente uma das muitas fomes de 
								muitas gentes. (…) Tu por carta também te 
								mostraste interessado.” Postal de 2 de Maio 
								de A. José Forte para Luiz Pacheco alude ao 
								dinheiro em jogo (1974: 141): “Estive na 
								passada segunda-feira em Lisboa com o Seixas, P. 
								Oom, Virgílio e Sampaio. Afinal a ideia do 
								Seixas é uma antologia-revista, coisa que irá 
								ter aos vinte contos. Será portanto apresentada 
								a uma editora e, se falhar, ao Vinhas.” A 
								editora em causa é a Ulisseia, que edita nesse 
								momento Cesariny, Manuel de Lima e Luiz Pacheco. 
								Em carta de Cesariny a Pacheco de 18 de Maio 
								(enviada de Londres) temos a posição do 
								destinatário (1974: 150), então muito próximo de 
								Seixas: “Abjecção. Se essa revista pega, se 
								dá alguns números, tenho várias coisas na manga. 
								Para já, para uma capa ou para lá dentro, um 
								extraordinário bicho, o primeiro grande 
								abjeccionista vivo. Já fiz três desenhos. 
								Encontrado no Museu de História Natural, que é 
								aqui perto, deu-me cabo dos olhos para muito 
								tempo. Está ali tudo.” Em início de Junho 
								tudo está bem encaminhado (carta de Virgílio 
								Martinho a Luiz Pacheco, 1974: 160): “De 
								facto creio que o Abjeccionismo vai para a 
								frente. Estou admirado com o Forte: não apareceu 
								nem mandou nada até hoje. Teria ido para Paris? 
								Oxalá que sim. Um sonho é um sonho. Convidei 
								para colaborar o Vítor [Vítor Silva Tavares]. 
								Ele ficou encantado. Talvez seja uma pessoa a 
								considerar, um testemunho abjeccionista.” 
								Recorde-se que V.S.T. é de momento um dos 
								directores literários da Ulisseia. Em final de 
								Julho, em carta de Pacheco para Cesariny, novas 
								informações (1974: 177): “Da revista do 
								Seixas nunca mais soube nada, ou soube e não 
								gostei. De duas idas a Lisboa e em dois meios 
								diferentes, ou talvez não: só separados, notei 
								uma insuspeitada alegria por a revista ainda não 
								ter saído, ou já não sair ou ter dificuldade em 
								sair. Foi em casa da Natália, que a princípio 
								tanto gosto tinha demonstrado em ser convidada a 
								colaborar; e foi no Letras e Artes (…) o 
								que é natural porque estes não querem que haja.” 
								A 8 de Setembro chega a carta decisiva de 
								Cruzeiro Seixas a Luiz Pacheco, que concretiza 
								um plano de colaborações para três números da 
								revista. A carta abre desta forma (1974: 195): “Aqui 
								estou para o que der e vier, e principalmente 
								para a publicação de (pelo menos) três números 
								da Abjecção”. Entre o material a incluir, 
								Seixas aponta: Sade, Lewis Carrol, Mariana 
								Alcoforado, Bocage (o pior, diz ele), Jacques 
								Vaché, objectos etnográficos e fotografias de 
								“prostituição” masculina. Luiz Pacheco responde 
								ainda em Setembro, dizendo (1974: 202): “Do 
								que vi e pesei em casa do Ernesto Sampaio, me 
								pareceu que já havia material para 3 revistas 
								únicas no género, dispendiosas na impressão, 
								muito de espantar o Burguês, o Polícia e até o 
								Padre, já não falando no Pateta (…). Uma revista 
								corajosa. Uma revista como não há, uma revista 
								que está a fazer falta. Vistas as partes, eis o 
								que seria de fazer: Oom, doente, Virgílio, 
								ausente, Sampaio, reticente, Cesariny, diatante, 
								eu, caldense, Natália, ?, Lima, intrigante… O 
								que fica, de mexido, é muito pouco. A bem dizer 
								és só tu. Portanto, pegares no material que há, 
								mas há nas mãos não em promessas ou possíveis 
								arranjos, limpares o que seja de excluir, 
								implacavelmente, e pesares. Se tiver ainda 
								dimensão de revista, prá frente!” Sobre a 
								questão do editor, acrescenta-se: “Aliás, a 
								pensar num Editor, que é a fase em que estamos, 
								e a prever que seria a Ulisseia, que é 
								igualmente a fase em que estamos, não há tempo a 
								perder. A editora deve estar a fechar, segundo 
								suponho, este mês a próxima temporada.” 
								Depois desta carta, salvando a resposta quase 
								imediata de Seixas (15 de Setembro), assentindo 
								às indicações de Pacheco, perde-se o rasto da 
								revista. Que se passou? Em Novembro saiu a 
								Antologia de Poesia Erótica e Satírica, logo 
								apreendida e processada, a que se seguem no ano 
								seguinte novos livros e novos processos 
								judiciais, quer da Ulisseia, quer da novel 
								editora de Ribeiro de Mello. 
								  
								1966 – Em Janeiro 
								Luiz Pacheco escreve e edita em copiógrafo 
								Comunicado ou Intervenção da Província, onde 
								alude à prisão em Fresnes de Cesariny, o que 
								leva à indisposição deste. Em Março, saída de 
								Crítica de Circunstância (Ulisseia; capa 
								João Rodrigues e pref. Virgílio Martinho), 
								imediatamente apreendido. Pela mesma altura 
								acaba de escrever o prefácio para a tradução 
								portuguesa de La Philosophie dans le boudoir, 
								de D. A. F. de Sade. Escolhe para epígrafe o 
								episódio lisboeta de Aline et Valcour, 
								referido na carta de Seixas do início de 
								Setembro de 65. No final de Março saída do 
								livro, logo apreendido pela polícia; são 
								processados todos os implicados (editor, 
								prefaciador, ilustrador e tradutores). Crescem 
								as ameaças ao sector implicado nas edições. O 
								Diário da Manhã assevera o seguinte em 
								primeira página (9 de Abril): “Cadeia ou 
								Hospício. A Polícia Judiciária anunciou, há 
								dias, a apreensão de diversos livros imorais e 
								pornográficos em diversas regiões do País. 
								Chegou-nos agora às mãos um exemplar de uma das
								obras (…). As depravações sexuais 
								abomináveis são ali expostas (…) com uma crueza 
								tão revoltante (…) que nos recusamos a aceitar 
								como pessoas humanas aqueles que as difundem, 
								apoiam e delas fazem o elogio. O 
								homossexualismo, a sodomia, o incesto são ali 
								propagandeados como se de virtudes se tratasse. 
								A juntar a isto, um dos prefaciadores permite-se 
								insultar a magistratura do tribunal da Boa Hora, 
								por onde se gaba de já ter passado. Torna-se 
								claro que a indivíduos deste estofo não poderá 
								permitir-se-lhes o contacto com uma sociedade 
								medianamente digna. O caminho só poderá ser ou a 
								cadeia ou o hospício. 
								A Ulisseia desiste 
								de publicar a revista Abjecção, na 
								certeza que seria logo apreendida, processada e 
								destruída. Em Agosto, edição (Ulisseia) de A 
								Intervenção Surrealista, org. de M. 
								Cesariny, que recolhe a já citada entrevista de 
								Pedro Oom (1963); evita porém alusões novas ao 
								abjeccionismo, vítima do desentendimento entre 
								Cesariny e Pacheco por causa de Comunicado ou 
								Intervenção da Província. Crítica feroz de 
								Pacheco ao livro, “O Caprichismo Interventor do 
								Sr. Mário Cesariny” (Jornal de Letras e Artes, 
								n.º 251, 7-9-1966). 
								  
								O 
								DESAPARECIMENTO 
								1967 – Em Maio 
								suicídio de João Rodrigues. Luiz Pacheco edita 
								em Alcobaça Textos locais (Contraponto). 
								Em Maio é preso nas Caldas da Rainha por via dos 
								processos judiciais em curso; solto, mediante 
								fiança paga pela família Maldonado de Freitas 
								das Caldas, a de Junho. Em Novembro julgamento 
								no Tribunal Plenário de Lisboa do processo da 
								edição de Sade e condenação dos implicados. Luiz 
								Pacheco com pena agravada por ofensas à 
								magistratura. 
								
								  
								1968 – Ruptura 
								entre Virgílio Martinho e Mário Cesariny por 
								causa de texto que o primeiro queria dar a lume 
								sobre Textos Locais. Em Maio Luiz Pacheco 
								é de novo preso nas Caldas; em Agosto 
								transferência para o Limoeiro, donde sai no 
								final de Dezembro. 
								  
								1970 – Julgamento 
								e condenação no Tribunal Plenário de Lisboa dos 
								implicados na Antologia de Poesia e Erótica e 
								Satírica. Manuel Vinhas ajuda L. Pacheco a 
								pagar a fiança, que o salva de nova prisão. 
								  
								1971 – Luiz 
								Pacheco publica no Diário de Lisboa (11 
								Fevereiro), “O que é um escritor maldito”, com 
								valiosos elementos para se perceber a sua noção 
								social de “maldição”. O maldito, que se 
								caracteriza pela pedincha, pela loucura, pelo 
								homossexualismo, pela boémia, pela cadeia ou 
								pelo exílio, é uma das metamorfoses finais do 
								abjeccionista como inadaptado social. 
								  
								1974 – Morte de 
								Pedro Oom (26 de Abril). Em Junho aparece 
								Pacheco versus Cesariny, onde se dão a lume 
								as cartas trocadas em 1965 sobre a revista 
								“Abjecção”. Mário Cesariny responde publicando
								Jornal do Gato, onde, numa nota de 
								rodapé, no quadro da sua ruidosa altercação com 
								Pacheco, aproveita para entrar em ruptura com o 
								abjeccionismo (1974: 22): Escrevi num livro 
								dedicado a Buñuel: “aqui e agora e sempre em 
								todo o lado o surrealismo não tem nada que ver 
								com o abjeccionismo ou só terão de comum o 
								haverem-se conhecido, na cadeia, onde vai tanta 
								gente por tão diversos cantares, e alguns só por 
								recreio, visita de estudo e turismo.” Que o ar 
								é/era um vómito, isso sim seria verdade mas 
								sempre mais em relação ao tecto do que ao 
								caminho apesar de tudo andado. “o ar que todos 
								respiram” não serve de identidade à forma de 
								respiração (“a moralidade de cada um”). O ar 
								respirado por António Maria Lisboa é sem 
								intermediários e altamente destrutor do ar 
								absorvido por Luiz Pacheco em terceira ou quarta 
								narina, enquanto o aparelho respiratório de 
								Pedro Oom não o deixou sobreviver a uma rajada 
								de ar puro. Pode continuar-se esta lista de 
								diferenças até ao arrebentismo grato a L. P., 
								mas acho que se trata de uma lista errada. A 
								abjecção promovida por condições sócio-políticas 
								será a única a explicar a vagabundagem do poeta? 
								Sabemos que não. Artaud fugiu espavorido da 
								democracia francesa dos anos trinta, Mayakovsky 
								suicidou-se em plena gesta do comunismo russo. A 
								estes dificilmente se poderá contar o conto do 
								abjeccionismo nos termos em que, ao contrário do 
								surrealismo, faz ditosa carreira em Portugal. 
								Precisamente: entre os “abjeccionistas” 
								portugueses ninguém abandona o local de 
								trabalho, ninguém descura mostrar ao vizinho o 
								abjecto comum, ninguém mata, ninguém se mata, 
								ninguém enlouquece entre os taraumaras. (…) 
								Pedro Oom desaparece no momento mesmo do 
								primeiro raio de sol e tanto basta para podermos 
								avaliar da sua constipação, da sua sinceridade. 
								  
								1977 – Edição de 
								António Maria Lisboa na Assírio & Alvim, com 
								organização e notas críticas de Mário Cesariny e 
								sem intervenção de Luiz Pacheco. Cesariny 
								reitera nas notas finais a Erro Próprio a 
								sua desvinculação do abjeccionismo – ele que 
								fora entre 1959 e 1963 o artífice do 
								“surreal-abjeccionismo”. Cito (1977: 392-3): 
								Ordenando e vitalizando preocupações do grupo 
								anti-grupo de 1949-1951 e, mais fundo, as do 
								anterior convívio com Pedro Oom, do qual colhe e 
								leva às últimas consequências a ideia ou sentido 
								de abjecção, recolhe contribuições por vezes não 
								identificadas ainda que postas entre asteriscos. 
								É o caso (p. 41 da ed. Guimarães) das palavras “experiência 
								de suicídio”, citação de palavras minhas, eu 
								já oposto ou alheio ao “abjeccionismo” de P. O. 
								Que, recordo bem, gostava de dizer, de já não 
								sei que poeta francês, esta “máxima”: “C’est au 
								fond de l’abjeccion que la pureté attend son 
								oeuvre.” Para mim, hoje como há trinta anos, 
								esta máxima não passa de semi-mínima. É evidente 
								que o homem não é uma flor (o lotus) que se 
								alimenta do lodo e quanto mais lodo ingere mais 
								lotus fica. O contrário será mais verdadeiro: 
								quanto mais infectado, mais infeccioso. 
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