Adelto
Gonçalves (Brasil). Mestre
em Língua Espanhola
e Literaturas Espanhola e Hispano-americana e doutor
em Literatura Portuguesa
pela Universidade de São Paulo (USP), é autor de
Os
vira-latas da madrugada (Rio de Janeiro, José
Olympio Editora, 1981; Taubaté, Letra Selvagem, 2015),
Gonzaga, um poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro,
Nova Fronteira, 1999),
Barcelona brasileira
(Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher
Brasil, 2002), Bocage – o perfil perdido (Lisboa,
Caminho, 2003), Tomás Antônio Gonzaga (Academia
Brasileira de Letras/Imprensa Oficial do Estado de São
Paulo, 2012), e Direito e Justiça em Terras d´El-Rei
na São Paulo Colonial (Imprensa Oficial do Estado de
São Paulo, 2015), entre outros.
E-mail:
marilizadelto@uol.com.br |
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ADELTO
GONÇALVES
Eduardo Lourenço: um
ensaísta inigualável
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Obras
Completas de Eduardo Lourenço III - Tempo e
Poesia,
com coordenação e introdução de Carlos Mendes de
Sousa. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 816
págs., 2016, 25 euros.
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I |
Eduardo Lourenço (1923) cumpre uma trajetória
ímpar na história do pensamento português, sendo
considerado o grande pensador e ensaísta da
Literatura Portuguesa. A vantagem de se viver
muito – bem haja – é que o homenageado pode
desfrutar desse reconhecimento. No caso de
Lourenço, esse reconhecimento definitivo veio
com a publicação pela Fundação Calouste
Gulbenkian, de Lisboa, de suas Obras
Completas, de que saíram à luz três extensos
volumes.
Organizado em torno do livro homônimo publicado
em 1974 pela Editora Inova, do Porto, o terceiro
volume (Tempo e Poesia), além de reunir
extenso número de textos dispersos dedicados à
poesia e a quase todos os nomes mais relevantes
da poesia portuguesa do século XX, traz um
conjunto considerável de inéditos, todos
revistos e em alguns casos, concluídos com
exclusividade para esta edição. São textos que
Lourenço escreveu entre as décadas de 1950 e
1970, muitas vezes a pedido de editores e
autores.
Assim, o leitor encontrará ensaios inéditos
sobre a poesia de Eugénio de Castro (1869-1944),
Adolfo Casais Monteiro (1908-1972), Raul de
Carvalho (1920-1984), Maria Teresa Horta (1937)
e Salette Tavares (1922-1994). Aqui aparecem
também reunidos todos os estudos que o ensaísta
dedicou à poesia de nomes indiscutíveis como
Teixeira de Pascoaes (1877-1952), José Régio
(1901-1969), Miguel Torga (1907-1995), Jorge de
Sena (1919-1978), Sophia de Mello Breyner
(1919-2004) e António Ramos Rosa (1924-2013),
entre outros.
O
primeiro volume das Obras Completas, de
2011, tem por título Heterodoxias e
retoma textos já incluídos nas versões
anteriores, além de recolher inéditos. O segundo
volume, Forma da Poesia Neo-realista e outros
ensaios, de 2014, reúne tudo o que o autor
escreveu sobre o neorrealismo. Além do livro
Sentido e Forma da Poesia Neo-realista,
escrito em 1959/1960 e só publicado em 1968, o
tomo reúne uma massa enorme de textos dispersos,
alguns deles não apenas estritamente sobre
autores e obras do neorrealismo literário.
Embora os três volumes tenham igual importância
como receptáculo de quase tudo o que saiu da
pena do professor e filósofo Eduardo Lourenço,
sem dúvida, o terceiro é o que reúne o que há de
mais fino e precioso de sua vastíssima produção,
constituindo a mais importante obra sobre poesia
alguma vez editada em Portugal, como afirmou
Carlos Mendes de Sousa na extensa e elucidativa
introdução que escreveu para esta edição que
contou com a sua coordenação.
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II |
Como
bem observou Mendes de Sousa, o que se destaca
nos ensaios de Lourenço é a sua heterodoxa
maneira de ler o mundo que não leva em conta
visões ideológicas e esquematicamente
condicionadoras nem os modelos ditados pelo
marxismo nem pelo catolicismo tradicional, o que
era comum à época, ainda que em seus primeiros
estudos sejam frequentes as alusões a episódios,
locais e personagens bíblicos. A rigor,
influenciado pelo filósofo alemão Martin
Heidegger (1889-1976), o crítico nunca se
limitou a escrever meras recensões ou resenhas
de livros, mas, mesmo quando escreveu textos
mais leves e de poucas linhas, produziu
alentados ensaios que chamam a atenção do leitor
por suas imagens e ideias insólitas.
De
fato, o pensamento do professor Lourenço, ao
longo de uma carreira acadêmica invejável, voou
tão longe e alcançou tantos ângulos que hoje é
impossível imaginar um ensaio sobre poesia
portuguesa sem levar em conta o que ele já
escreveu. Nos ensaios do volume III, por
exemplo, há frases lapidares que atravessaram o
século.
É o
caso das duas frases que encerram o ensaio “Orfeu
ou a poesia como realidade” em que Lourenço
define o papel dos dois corifeus do modernismo
português, Fernando Pessoa (1888-1935) e Mário
de Sá-Carneiro (1890-1916), ícones da revista
Orpheu, da qual só saíram dois números em
1915, mas que exerceu notável e duradoura
influência por seu vanguardismo: “A importância
extrema de Sá-Carneiro e Pessoa na nossa Poesia
é precisamente a de terem chegado no fim desse
movimento doloroso e exaltante e terem tido
olhos, imagens e vida para tomar parte num
confronto decisivo para o esclarecimento dos
limites e poderes da alma humana. Um perdeu aí a
vida que tinha, o outro a que poderia ter tido.
Assim ganharam a que finalmente haviam de ter”.
(pp. 87-88).
Mas
não só. Antes, no mesmo ensaio, pode-se ler:
“Naquele tempo eles eram apenas jovens à volta
dos vinte anos decididos a ser fiéis às suas
necessárias, libertadoras e estranhas
experiências. O pouco que se conhece da sua
biografia nesse tempo mostra-os cheios de
perplexidade. A dialética incomum de Pessoa
revela-o oscilante e confundido ante a
necessidade de testemunhar por ideias e formas
que de todos os lados requeriam lugar e voz.
Divide-se, multiplica-se, duvida dos seus
panfletos de gênio, abandona os amigos, incapaz
de distinguir neles e talvez em si mesmo a
loucura e o exibicionismo das suas atitudes; mas
finalmente, quando chega a hora, ele está
presente, é a grande, visível e invisível
presença desse Orpheu, onde se
apresentará já, “tal como a Eternidade enfim o
mudará”, jogando o seu duplo jogo de seriedade
formal de Fernando Pessoa e o da fantasia
absoluta de Álvaro de Campos. Ele bem pressentia
que Orpheu era a ponte por onde a sua
Alma passaria para o Futuro”. (pp.81-82).
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III |
Outro
ensaio que se destaca, entre tantos textos
fulgurantes, é o que leva por título “Situação
de Régio”. Aqui o ensaísta, depois de reconhecer
que o mito-Pessoa começa a se extenuar pelo
excesso do seu culto, observa que a voz de Régio
“emerge de sua sombra e da sua falsa morte”. E
acrescenta: ‘José Régio é um dos poucos autores
portugueses de quem, com verdade, se pode
realmente dizer que têm um mundo. E isto
conta ou deve contar quando se mede a obra de um
homem pelo raio da ambição que nele encarna e
não apenas pela fulgurância sem espessura de um
acerto sem raízes nem alcance”. (p.380).
Em
“Evocação espectral”, o ensaísta recorda a
Coimbra de seus vinte anos, de quando conheceu o
médico Adolfo Rocha, então já conhecido
literariamente como o poeta e contista Miguel
Torga, no auge de sua fama como autor de
Bichos e Contos da Montanha.
Mais jovem 15 anos, Lourenço diz que, a
essa época, não seria a pessoa mais indicada
para se ocupar da obra de Torga “com
objetividade e justiça”, apesar da amizade que
mantiveram e que continuaram epistolarmente
depois que o “aprendiz de filósofo” se foi para
Hamburgo.
Outro
texto de poucas, mas densas, linhas é o que leva
por título “Jorge de Sena” e que evoca este
poeta, romancista, critico literário, ensaísta,
dramaturgo, erudito e tradutor, um dos autores
mais marcantes do século XX português. Dele diz:
“Herdeiro do modernismo tanto como do movimento
Presença, foi não menos sensível ao
questionamento da cultura e da literatura,
levada a cabo pelo surrealismo. Vendo bem, sua
obra é inclassificável”. (p. 461). Acrescente-se
aqui que o seu modernismo vinha de sua ligação
com o movimento deflagrado a partir da revista
Presença (1927-1940), fundada por José
Régio, Branquinho da Fonseca (1905-1974) e João
Gaspar Simões (1903-1987).
Para
Lourenço, na poesia portuguesa, de tradição
quase só lírica, a obra de Jorge de Sena “é
quase uma exceção, pelo seu gosto descritivo,
discursivo e, sobretudo, pela sua vontade de se
oferecer um inimigo “objetivo” opondo-se ao
intimismo confessional”. Diz mais: “O paradigma
poético de Jorge de Sena é o de Camões, a quem
não só consagrou estudos que fizeram – e fazem –
data, mas a quem se assimilou simbolicamente,
vendo nele o poeta perseguido pela mediocridade
da sua época e pela mentira do mundo”. (p. 461).
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IV |
Eduardo Lourenço, nascido em São Pedro do Rio
Seco, concelho de Almeida, distrito da Guarda,
província da Beira Alta, concluiu a Licenciatura
na Faculdade de Letras de Lisboa em 1946,
assumindo em seguida as funções de professor
assistente, cargo que desempenhou até 1953.
Desse ano até 1958, exerceu as funções de leitor
de Língua e Cultura Portuguesa nas universidades
de Hamburgo, Heidelberg e Montpellier.
No
período de 1958-1959, atuou como professor
convidado na Universidade Federal da Bahia. Foi
ainda leitor nas universidades de Grenoble e
Nice, na França. Nesta última universidade, foi
maitre-assistant, cargo que manteve até a
sua jubilação em 1989. Na França, terra natal de
sua esposa, Annie Salomon (1928-2013), viveu por
seis décadas. Pela editora Gallimard, de Paris,
lançou Une Vie Écrite.
Seu
primeiro livro, Heterodoxia I, é de 1949.
Com mais de 40 livros publicados, é autor de
O Desespero Humanista na Obra de Miguel Torga
(1955), Heterodoxia II (1967), Sentido
e Forma da Poesia Neo-realista (1968),
Fernando Pessoa Revisitado – leitura
estruturante do Drama em Gente, (1973), O
Labirinto da Saudade – psicanálise mítica do
destino português (1978), Fernando, rei
da nossa Baviera (1986), Nós e a Europa
ou as duas razões (1988), A Europa
Desencantada – para uma mitologia europeia
(1994), O Esplendor do Caos (1998),
Portugal como Destino seguido de Mitologia da
Saudade (1999), A Nau de Ícaro seguido de
Imagem e Miragem da Lusofonia (1999), As
Saias de Elvira e outros ensaios (2006) e
Paraíso sem Mediação (breves ensaios sobre
Eugénio de Andrade (2007), entre outros.
No
Brasil, a presença de seus livros é ainda
restrita, embora tenha conquistado o Prêmio
Camões em 1996. Na sequência, a Companhia das
Letras, de São Paulo, publicou Mitologia da
Saudade (1997) e A Nau de Ícaro
(2001). Em 2015, a editora portuguesa Gradiva
reuniu seus principais ensaios de temática
brasileira no volume Do Brasil: Fascínio e
Miragem.
Acumulou mais de 20 prêmios. Em 2016, ganhou a
Prêmio Vasco Graça Moura – Cidadania Cultural. É
Doutor Honoris Causa pelas universidades
do Rio de Janeiro (1995), de Coimbra (1996),
Nova de Lisboa (1998) e de Bolonha (2006). De
2002 a 2012, exerceu as funções de administrador
não executivo da Fundação Calouste Gulbenkian.
Foi ainda adido cultural na Embaixada de
Portugal em Roma.
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"Estátua heterodoxa" de
Eduardo Lourenço por Leonel Moura
Foto em:
http://www.leonelmoura.com/index.php/3d-art/eduardo-lourenco/
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