Em 1982 comemorei o 25
de Abril no Brasil, nas cidades do Rio de
Janeiro e de S. Paulo. Acompanhei nessa viagem o
conselheiro da revolução António Marques Júnior,
que recentemente nos deixou. Este texto é também
uma homenagem de saudade.
Pela resolução 83/82 de
21 de Abril, o Conselho da Revolução, pouco
antes de terminar o seu mandato, promoveu a
oficial general o “Capitão” João Sarmento
Pimentel, velho republicano, militante da
oposição ao regime do Estado Novo, que viveu
largos anos exilado no Brasil. O Marques Júnior
foi encarregado de lhe entregar as estrelas de
general, deslocando-se para esse propósito a sua
casa, em S. Paulo. Pela amizade que nos ligava e
por várias conversas que já tivéramos acerca
desta promoção, entendeu convidar-me para o
acompanhar. Foi para mim um enorme privilégio.
Em virtude de se
comemorar nesse ano o 8º aniversário do 25 de
Abril, aproveitámos para passar alguns dias
junto da comunidade portuguesa do Rio de
Janeiro, antes de seguirmos para S. Paulo. O
Marques Júnior tornou-se desde logo uma estrela,
não só junto dos portugueses, mas também junto
dos brasileiros que se associaram às
comemorações do 25 de Abril. Com a sua
sensibilidade, entusiasmo, sentimento e
verdadeira paixão pela revolução portuguesa e
pela conquista da liberdade em Portugal, o
Marques Júnior sensibilizou todos os que
assistiram à sessão comemorativa e emocionou-se
quando teve de falar sobre a nossa revolução.
Foi uma espontânea simpatia mútua, entre ele e
todos os que o escutavam.
Lembro-me que estava
presente a escritora brasileira Lygia Fagundes
Teles que muito se comoveu com o capitão
português e que teve para com ele palavras de
muita admiração por aquilo que os capitães
tinham feito em Portugal, ao restituir a
liberdade ao povo, o que mais uma vez
sensibilizou profundamente o Marques Júnior.
Numa das noites assistimos a uma representação
teatral, com a sala completamente cheia, tendo
um dos actores saudado a nossa presença na sala,
o que desencadeou uma prolongada salva de
palmas. E como não podia deixar de ser, mais uma
vez o Marques Júnior expôs toda a sua emoção,
embargando-se-lhe a voz ao tentar agradecer.
Para mim foi também uma
surpresa enorme. Já conhecia o Marques Júnior
desde o 25 de Abril e já tinha trabalhado com
ele nas comemorações do 3º aniversário do 25 de
Abril, mas nunca me tinha apercebido desta sua
face tão humana e sensível.
Daí em diante a cena era
sempre a mesma, quando se falava em democracia,
liberdade, 25 de Abril, capitães, era certo e
sabido que ambos ficávamos comovidos, de olhos
húmidos e voz embargada, a que se seguiam as
palmas compensadoras.
Recompensados com este
acolhimento fraterno nos mais diversos eventos
em que participámos no Rio de Janeiro, seguimos
para S. Paulo para cumprirmos a missão que
levávamos. Em toda a viagem, desde Lisboa, fomos
planeando o nosso encontro com o “Capitão”, que
conhecíamos dos seus livros e da sua vida. Eu
terminara o curso de História em 1980 e tivera
oportunidade de ler as “Memórias do Capitão”,
publicadas em 1974, ano da Revolução. Levava o
livro comigo para conseguir a dedicatória, pelo
que tivemos oportunidade de reler, por exemplo,
a sua participação na primeira revolta contra a
Ditadura Militar em 3 de Fevereiro de 1927, no
Porto. Numa escrita vigorosa, como aliás em todo
o livro, o Capitão explica como se adiou a
revolta de 31 de Janeiro, data simbólica, para 3
de Fevereiro, sendo que, mesmo assim, Lisboa só
poderia apoiar a revolta 12 horas depois!
“Acreditando na promessa, aceitaram [os
revolucionários do Porto] implicitamente a
derrota”, afirma o Capitão. E nem isso, pois os
revolucionários de Lisboa só saíram no dia 7 (a
“revolução do remorso”, como lhe chama nas suas
Memórias), podendo assim a ditadura “bater os
seus inimigos, primeiro um e, depois deste
vencido, o outro”.
Conversando sobre o
longo e corajoso rumo de vida do nosso
antecessor, que se exilara logo a seguir à
revolução do Porto de 1927 e só voltara a
Portugal depois do 25 de Abril para comemorar
finalmente a liberdade de todos, concluíamos que
seria um privilégio podermos falar com o nosso
anfitrião e entregar-lhe as estrelas de general,
afinal mais merecidas do que muitas outras…
O Marques Júnior
preparava algumas palavras para dizer na
ocasião, mas acabou por desistir e concluir que
diria as palavras que o coração lhe ditasse no
momento…
Fomos directamente para
sua casa, onde toda a família nos esperava. Era
o dia 25 de Abril de 1982!
O Capitão (que aliás já
era coronel, anteriormente promovido pelo
Conselho da Revolução!) João Sarmento Pimentel
recebeu-nos na sua cadeira de rodas, do alto dos
seus 94 anos, com um visível contentamento e
agrado, que as suas palavras de boas vindas
acentuaram e, mais uma vez, nos comoveram. O
Marques Júnior, no seu curto improviso disse o
que era essencial, antes de se calar emocionado
- o quanto Portugal devia aos lutadores
antifascistas, e como o 25 de Abril não fora
mais que a continuação dessa mesma luta do povo
português. E que as estrelas que lhe levávamos
eram um tributo justo e mínimo à sua resistência
em prol da liberdade e da democracia, agora
implantadas em Portugal. Acho que o Marques
Júnior não deixou de fora nenhuma das palavras
que lhe embargavam a voz e lhe humedeciam os
olhos!
No fim, saímos de sua
casa com a plena satisfação do dever cumprido, e
eu trazia um autógrafo na primeira edição das
“Memórias do Capitão” que não podia deixar de me
enternecer: “Ao major Aniceto Afonso, homenagem
do general João Sarmento Pimentel. São Paulo, 25
de Abril de 1982”, encimado pelo seu ex-libris!
O que hoje posso aqui
deixar é o parágrafo final do Prefácio de Jorge
de Sena: “Se lesse estas páginas, o Camões que
escreveu as cartas picarescas, as canções
diáfanas de espiritualidade, e soube tão bem o
que é o heroísmo que fez Fernão Veloso contar
dos Doze de Inglaterra, por certo enxugaria, oh
disfarçadamente, uma lágrima de satisfação.
Afinal, ainda Portugal vai dando, numa mesma
pessoa, homens e escritores”.
E posso também envolver
nesta homenagem o meu companheiro António
Marques Júnior, membro por direito da galeria
dos homens excepcionais que Portugal ainda vai
dando…
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