REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


ns | número 63 | março-abril 2017

     
  Joaquim Simões (Portugal).
Cronista, poeta, dramaturgo.
 
 
JOAQUIM SIMÕES

Oito poemas de juventude

Um qualquer impulso de origem desconhecida levou-me a resgatar à poeirama do tempo oito poemas de que a minha juventude é responsável, e a trazê-los até aqui. Deles, apenas o primeiro é inédito. Os musicados por Xico Zé Henriques foram cantados, à época, em diversos espectáculos quer em bares quer em alguns Encontros de jazz. Os restantes três, juntamente com mais uns quantos, esses tiveram uma edição de autor prefaciada pelo Manuel Grangeio Crespo, que o Luiz Pacheco se prontificou, entre cervejolas, a distribuir e a incluir na crítica literária que fazia no Diário Popular. Todos eles assinados enquanto Manuel Bolinhas.

A gravura junta é do Nicolau Saião, que achou por bem fazer-me companhia e a quem só posso agradecer por isso.

Pronto. Estão avisados.

Canção

 

Beija um pássaro de manhã

Bebe água numa fonte

Fica sábio de repente

Passa por cima da ponte

 

Traga o sangue que te corre

Dentro do corpo vermelho

Come o pão que não te morre

Dentro do corpo e sê velho

 

Como a Terra que tu vês

Esculpir os dentes ao jovem

Abre as tuas mãos e crê

Nos gritos que não te fogem

 

Cuspirás então em festa

Uma canção como esta

(1973)

Nós viemos

 

nós viemos

demorámos muito

viemos por todos os caminhos

 

mas já cá chegámos

 

trouxemos a loucura nos cabelos

saímos do lago com a força pálida

do raio tempestuoso

vomitámos no café

tropeçámos na taberna

 

mas já cá chegámos

 

viemos de muitos sítios

todos muito à rasca

cultivando os amigos

num belo jardim

amparando as rosas

enfeitando os dedos

os pés nus num raio de lua

a boca debaixo de um raio de sol

 

mas já cá chegámos

 

espalhámos por aí

mantas nas sarjetas

orámos em silêncio

comemos do que os pobres tinham

bebemos do que os cães não queriam

somos crucificados lentamente

somos envenenados lentamente

 

mas já cá chegámos

 

com um sorriso nos dentes

descemos e subimos pelo menos

duas vezes ao dia a Avenida da Liberdade

 

e não viemos exactamente

para ficar

(1973)

 

Não há-de ser nada!

 

volto a casa à noite com o saco cheio

de tretas

após ter corrido o dia inteiro pelas vossas ruas

e valetas

deito-me na cama entre a espada e a parede

vi cães mortos de trânsito e de sede

na cidade gelada! descanso em pesadelos!

mas isto já passa!

isto não há-de ser nada!

 

cravadas há muito no meu corpo estão as notas

de um piano

mudo

que a surdez e a solidão rainhas de nós todos

cavaram a martelo

sobre isto tudo!

em cima da tumba vai ficar somente

a flor de plástico a aguçar o dente

para a vida vomitada! dói-me a barriga!

mas isto já passa!

isto não há-de ser nada!

 

dia a dia vejo o sol a ser dobado e metido dentro

de cabidela

esparguete sem carne que mata com miolos de fome

o filho do dono

da cadela

é no talho que compro os foguetes para a festa

com gente de cabo a rabo! e o vazio é o que resta

essa tosca marmelada! tenho os olhos peganhentos!

mas isto já passa!

isto não há-de ser nada!

 

o suor executa o arco-íris sobre o meu esqueleto

murcho

e a histeria colectiva faz queimar o último

cartucho

a bala não me atinge mas um amigo meu

leva com ela nas ventas e já morreu!

é vossa esta jogada! é uma vergonha!

mas isto já passa!

isto não há-de ser nada!

 

pensei por muito tempo em me calar

viver deixar-vos morrer

sem saberdes de mim

mas pode alguém viver sem outros?

mas pode alguém amar sem outros?

se isto que digo é assim

então só resta cantar

e esperar a vida no fim

 

a dor que sinto entretanto

da vida que desperdiço

a dizer o que sabeis

muito bem pela calada

põe-me o cérebro às três pancadas!

 

mas isto já passa!

isto não há-de ser nada!

(Janeiro-Fevereiro de 1974)

   
   Nicolau Saião, "Disto e daquilo"  
 

Canta

 

canta canta

cantor

e que a garganta

que nos canta o desencanto

e nos encanta

encantando o desencanto

nos encante amanhã

passado o canto

deste tão triste

triste castrado

desencanto

(1978)

Maré cheia (musicado por Xico Zé Henriques)

 

Sentir cá dentro

a onda num vaivém

como um sonho que a gente tem

 

Moldar o mundo

agarrar num punhado

de areia

e fazê-la girar

na maré cheia

 

Olhar e ver

a lua ao meio-dia

a luz nos teus olhos

o vento nas asas da gaivota

 

E ser feliz

como quem tem raiz

na água

ou te dá um beijo

na ponta do nariz

(1979)

 

O laço

(musicado por Xico Zé Henriques)

 

A tua boca clara

O teu olhar

de amor e ironia

A tua pele

macia

 

Risos e momentos

num turbilhão

O futuro lá fora

é um rato que nos rói

o tempo

 

Ora

Agora

é que a vida se constrói

Agora

 

Uma risada que desfaz o laço

Olha

As minhas mãos cheias

do embaraço

da escolha

(1980)

 

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
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De bar em bar

(musicado por Xico Zé Henriques)

                                                                (ao ritmo de Manuel Bandeira)

 

Vagueio de bar em bar

de rua em rua

fazendo por esquecer

que nunca hei-de ter

o teu amor

que nunca hei-de ver

o teu corpo nu

na minha cama

 

E caio na lama

do meu desejo insatisfeito

A minha vida assim

esvaziada de sentido…

 

E é nesse instante

nesse segundo

é num segundo

que eu entendo a maior dor

que a gente sente sente

neste mundo

(1980) 

 
 

Sonho de menino

(musicado por Xico Zé Henriques)

 

 

Ai!, tão bom que seria

a gente ver raiar o dia

e de repente

estar tudo tão diferente

que a nossa felicidade se chamasse

toda a gente

 

Ai!, tão bom que seria

poder enfim olhar de frente a alegria

não ouvir a voz do medo

da fome da tirania

da vergonha e do segredo

 

Ver o teu corpo lindo à luz do sol

ver pintada de riso uma viela

e mil fogueiras a dançar pela cidade

com a chama da verdade

num rodopio sensual

ao bater de uma chinela

 

Ai!, tão bom que seria

adormecer

e acordar no sonho de um menino

e não do de alma penada

volteando amargurada

em busca do seu destino…

(1980)

   
 

 

© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
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