REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


ns | número 63 | março-abril 2017

 
 





Michel Houellebecq
(Ilha da Reunião, 26 de fevereiro de 1958), é um escritor francês: ficcionista, poeta e ensaísta. Conhecido sobretudo como ficcionista, Houellebecq é considerado um dos maiores autores franceses contemporâneos, também dos mais traduzidos, e, sem dúvida, o mais controverso, amado e repudiado, um verdadeiro iconoclasta. os seus livros abordam sempre temas polémicos. Em 2010, com o livro La Carte et le Territoire (ficção) recebeu o Prémio Goncourt, o mais importante da literatura francesa. No entanto é com a poesia que Houellebeqc inicia, em 1991, a sua carreira literária.

Os poemas de Houellebeqc apresentam uma visão implacável, pessimista e tragicómica do mundo, da ruindade do convencionalismo e ideias dominantes, da miséria e precariedade da existência, da caducidade dos nossos corpos, do desespero existencial. A sua linguagem é agreste, contundente e provocante. É um poeta da radicalidade na tradição dos poètes maudits.  


MICHEL HOUELLEBECQ

Dez poemas

Versões de Luís Costa

L’amour, L’amour

 

 

Num cinema porno, casais de reformados

Contemplavam céticos

Os jogos mal filmados de duas parelhas lascivas

Não havia argumento

 

Eis aqui, disse para comigo, o rosto do amor

O autêntico rosto

Alguns são sedutores e seduzem sempre

O resto sobrevive.

 

Não existe o destino nem a fidelidade

Mas só corpos que se atraem

Sem nenhum apego e sem piedade

Jogam e destroçam-se.

 

Alguns são sedutores, portanto, muito amados

Sabem o que é um orgasmo

Porém há outros tantos, fartos, sem nada que ocultar

Nem sequer um fantasma.

 

Apenas uma solidão agravada pelo impudico

Gozo das mulheres

Apenas uma certeza: isto não é para mim

Enfim, um pequeno drama obscuro.

 

Com certeza morrerão um pouco desenganados

Sem ilusões poéticas *

Praticarão lá no fundo a arte de desprezar-se

Será algo mecânico.

 

Dirijo-me àqueles que nunca foram amados

Que nunca souberam gostar

Dirijo-me aos ausentes do sexo liberal

E do prazer ordinário.

 

Não temeis, amigos, a vossa perda é mínima

O amor não existe em nenhum lugar

É só um jogo cruel de que sois as vítimas

Uma jogada de especialistas.

 

*No original: Sans illusions lyriques (sem ilusões líricas)

Mundo exterior

 

 

Há qualquer coisa morta no fundo de mim

Uma vaga necrose uma ausência de alegria

Transporto comigo uma parcela de inverno

Vivo em metade de Paris como no deserto

 

Saio durante o dia a comprar cerveja

No supermercado há alguns anciãos

Evito com facilidade o seu olhar ausente

E não me apetece falar com as raparigas da caixa

 

Não guardo rancor a quem me achou mórbido

Sempre tive o dom de destruir ambientes

Não posso partilhar mais que vagos sofrimentos

Lamentos  fracassos  uma experiência de vazio

 

Nada interrompe jamais o sonho solitário

Que faz de vida e destino provável

Segundo os médicos sou o único culpado

 

Na verdade  envergonho-me e devia calar-me

Observo tristemente como as horas decorrem

As estações sucedem-se no mundo exterior.

 

Irreconciliável

 

 

O meu pai era um idiota bárbaro e solitário.

Ébrio de deceção, só diante do televisor,

Rumiava planos frágeis e muito bizarros,

A sua maior alegria era vê-los fracassar.

 

Tratava-me como uma rata acossada;

A mera ideia de ter um filho, creio, enojava-o.

Não suportava pensar que um dia o ultrapassasse,

Só porque eu ficava vivo, e ele batia a bota.

 

Morreu em abril, gemente e perplexo,

No seu olhar havia uma cólera infinita.

Todos os três minutos insultava minha mãe,

Criticava a primavera, fazia troça do sexo.

 

No final, pouco antes da última agonia,

Um breve sossego percorreu-lhe o peito.

E sorrindo disse: banho-me na minha urina,

Depois, apagou-se com um suave estertor. 

 

É certo que este mundo onde nos falta o ar

Só nos inspira um asco manifesto

Uma ânsia de gritar sem já nada esperar

E nem lermos mais os títulos dos jornais.

 

Queremos regressar à antiga morada

Onde a plumagem de um anjo cobria nossos pais

Queremos reaver essa moral estranha

Que santifica a vida até ao instante final

 

Queremos algo como uma fidelidade

Como uma imbricação de doces dependências

Algo que transcenda e contenha a vida

Já não podemos passar sem a eternidade.

O comboio que ficou parado entre as nuvens 

Podia ter-nos conduzido a um destino melhor

Cometemos o erro de acreditarmos na sorte 

Eu não quero morrer, a morte é uma miragem.

 

O frio desce às nossas artérias

Como uma garra à procura da esperança *

Já não existe o tempo da inocência

Ouço a agonia do meu irmão.  

 

Os seres humanos lutam por pedaços de tempo

Ouço o crepitar das armas automáticas

Eu poderia comparar as origens étnicas

Dos cadáveres empilhados no compartimento.

 

A crueldade cavalga os corpos

Com uma ebriedade insaciável

A História trará o esquecimento

Então, viveremos a segunda morte.

 

 

*No original: comme une main (como uma mão)

So long

 

 

Há sempre uma cidade com rastos de poetas

Que entre os seus muros cruzaram seus destinos

Água por todo o lado, a memória sussurra

Nomes de gente, nomes de cidades, olvidos.

 

E é sempre a mesma velha história

Horizontes desfeitos e salões de massagem

Solidão assumida, vizinhos respeitáveis

Há, portanto, gente que existe e baila

 

São gente de outra espécie, de uma outra raça

Nós dançamos exaltados uma dança cruel

Temos poucos amigos, mas nosso é o céu

E o desvelo sem fim dos espaços.

 

O tempo, o velho tempo que tece a sua vingança

O rumor incerto da vida que passa

Os silvos do vento, o gotejar da água

E o quarto amarelento onde a morte avança.

Já não tenho vida interior

Nem paixão, nem calor

Em breve serei a súmula

Do meu próprio volume.

 

Chega sempre o dia

Em que racionalizamos

Chega sempre a manhã

Do futuro abolido.

 

O caminho reduz-se

A um espaço cinzento

Sem sabor, sem prazer,

Serenamente demolido.

 

A fadiga central de uma noite sem astros

Adornada de nada

(Piedoso, o esquecimento pôs o seu véu

Sobre as coisas e as gentes)

 

O elemento bizarro

Disperso sobre as águas

Acorda a memória,

Sobe à cabeça como um vinho

Da Bulgária.

Arte moderna

 

 

Impressão de paz no átrio

Vídeos traficados da guerra do Líbano

 

Cinco machos ocidentais

Discutem sobre ciências humanas.

 

Rastos noturnos

Um astro cintila, só,

Preparado para as longínquas eucaristias.

 

Os destinos acumulam - se, perplexos,

Imóveis.

 

Nós marchamos, eu sei,

Na direção das manhãs estranhas.

 

 

 

 

Nota: o poema Mundo exterior foi traduzido do livro La Poursuite du bonheur; o poema O comboio que ficou parado entre as nuvens, do livro Renaissance; os outros da antologia Non réconcilié. Anthologie personnelle : 1991-2013
 
 

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