Manuel Maria Barbosa
du Bocage faz parte do grupo desditoso de poetas
cuja biografia vem secundarizando a sua produção
poética. Por bons e maus motivos, a sua vida
tormentosa e picaresca instituiu-se como eixo do
interesse público, menorizando as razões mais
altas da sua grandeza, que residem em quanto
escreveu. É certo que a sua obra nunca teria
crescido nos moldes conhecidos se não houvesse
nela uma constante projecção do eu. Por isso
mesmo, há que ter em conta o quanto existe de
contaminação subjectiva nos seus poemas,
invalidando, por si só, quaisquer estudos que
pretendam catar entre os versos apenas uma
representação histórica de um percurso
atribulado. Por mais que usemos uma joeira,
nunca saberemos porém até que ponto fingiu ou
foi sincero na sua poesia. Nem isso interessa
muito, se a aquilatarmos enquanto obra de arte e
não como mero documento histórico de uma época.
Só enquanto objecto artístico, devidamente
salvaguardado (como diria Heidegger) nas
múltiplas leituras oferecidas pela sua abertura
irradiante, a sua produção vale a pena – porque
só desse modo é nossa contemporânea. Ainda
assim, não poderemos aplicar ao poeta
setubalense os princípios hermenêuticos, hoje em
parte ultrapassados, decorrentes da “morte do
autor”. Se a biografia não explica nem deve
explicar o que deve ser visto apenas como arte,
não deixa de se instituir como auxiliar no
percurso legente. Deve existir, contudo, uma
grande cautela, para que seja vencida a tentação
que nos leva, com frequência, a uma cómoda
fixação no sentido literal dos poemas,
esquecendo que além dele há muita alegoria,
moralidade e anagogia.
Ao lermos, por exemplo, aquele que é talvez o
seu soneto mais conhecido (“Já Bocage não
sou!...”[1]), é difícil não nos lembrarmos dos
paralelos que poderemos estabelecer entre a
metanóia aí apresentada e aquela que modificou a
vida de nomes tão importantes como Guerra
Junqueiro ou Gomes Leal (para não sairmos do
território nacional). São percursos incómodos
aqueles que emergem. O mesmo Junqueiro que, na
nota posfacial d’ Os Simples (1892)[2], declara
que “redobra em mim […] a aversão e a
hostilidade à igreja católica, grosseira fórmula
materialista do transcendente e divino espírito
de Jesus”, assevera em data próxima de 1918 que
tinha sido “muito injusto com a Igreja”,
sublinhando que uma grande parte do que
escrevera tinha nascido “d’ um racionalismo
desvairador, um racionalismo de ignorancia,
estreito e superficial”. Por isso afirma: “Ha na
grandiosa historia do catolicismo paginas de
horror, mas a Igreja com os Evangelhos
cristianizou e salvou o mundo. No catolicismo
existem absurdos, mas no amago da sua doutrina
resplandecem verdades fundamentaes, verdades
eternas, as verdades de Deus […]”[3].
Percebe-se, nas palavras do autor d’ A Velhice
do Padre Eterno, que a sua hostilidade nada
tinha que ver com qualquer espécie de
anti-teísmo, ateísmo ou sequer agnosticismo.
Também não se tratava de um anti-catolicismo
irracional, mas tão só de um exaltado repúdio de
formas religiosas pouco evangélicas, praticadas
por ministros tornados funcionários públicos.
Auxiliar de um Estado despótico, tomada de
assalto por um fanatismo que se entrançara com
os interesses argentários e fundiários da
nobreza e com a cegueira dos ignorantes, essa
Igreja chegara ao século XVIII em formas mortas
e vazias que um Santo António de Lisboa não se
importaria de atacar com o seu martelo[4].
Bocage e Junqueiro, tal como Gomes Leal, usaram
os seus instrumentos verbais e artísticos no
mesmo sentido, fustigando a hipocrisia, a
simonia e também a apostasia. Chamar-lhes
“anti-clericais” parece assim exagerado e
injusto, pois o que estava em causa era a
necessidade de ver as “verdades eternas” livres
da submissão a ditames e práticas que nada
tinham de cristãos, não a rejeição primária do
segundo estado[5].
Chegados a uma idade madura, Bocage e Junqueiro
terão no entanto percebido o quão longe tinham
ido os meios por si usados na sua (legítima)
exaltação reformista e, sobretudo, as
consequências que tal gerara em sujeitos em
crise. “Incapaz de assistir num só terreno, /
Mais propenso ao furor do que à ternura”, o
sujeito poético de Manuel Maria entende que a
imitação da sátira e da licença dos seus
predecessores (“Outro Aretino fui”) contribuíra
não para o restauro, mas para a ruína e
demolição, confundindo o usufruto da liberdade
com as suas formas degradadas. Reconhece a “vã
figura” representada por seu “louco intento”,
loucura que residiu, sobretudo, num afastamento
da luz da Razão, movido pelo “tropel das
paixões”, pela cegueira dos “Prazeres, sócios
[s]eus e [s]eus tiranos”. Não se trata, todavia,
apenas de um confronto com a ignomínia patética
do passado de uma “alma, que sedenta em si não
coube”, mergulhada no “abismo […] dos
desenganos”. Além dos veios biográficos que, de
facto, contêm, os poemas de Bocage oferecem
sobre esta matéria algo que transcende o eu
espelhado nos versos, propondo uma via
purgativa, que conduzirá à justa medida no
pensamento e na acção.
Desejando pôr em prática uma ars moriendi,
Bocage inicia a sua metanóia pela confissão (“Eu
aos céus ultrajei” – “A santidade / Manchei!”) e
pelo arrependimento (“Eu me arrependo”). A
conversão passa por uma revisão estética, que
assume a crítica do deleite que se fica apenas
pela forma do poema, pela sua composição
agradável aos sentidos e ao gosto. Esse “som
fantástico” é agora para o sujeito apenas
sonoridade vazia, diletante, mergulhada numa
fantasia que não chegou ainda à imaginação (essa
sim divina, como defendem vários autores). O
perigo maior está no entanto, segundo afirma,
naqueles que transfiguram essa irrealidade em
realidade, crendo nela. Esses, crédulos, e
apenas esses, são “gente impia” que deve
“Rasga[r] [s]eus versos”, pois são foco de uma
transitoriedade que aparenta ser eterna, quando
na melhor das hipóteses é apenas longeva.
Usando termos e conceitos desenvolvidos por
Martin Buber[6], permito-me afirmar que Bocage
chega à maturidade poética, filosófica e
religiosa, ao perceber que a centração no Eu
conduz à esterilidade narcísica e especular,
pois transforma o mundo e os outros num Isso, ou
seja, em meros objectos. Só a percepção do Tu
divino (como elemento com quem se deve
estabelecer uma relação dinâmica e indissolúvel)
torna possível o nascimento da dignidade do
Outro. Ao afirmar “Já Bocage não sou”, assinala
a quem saiba lê-lo uma mudança de paradigma
existencial e vivencial que tem como corolário a
crença “na eternidade”. O Eu dominante e
autotélico apaga-se para se transformar em Eu-Tu
dialogante. Assim se compreende o carácter
luminoso e redentor atribuído à dor. Essa
conversão (ou metanóia) só pôde ocorrer porque,
antes, perante “o triste abatimento / Em que [o]
faz jazer [sua] desgraça”, soube “fech[ar] os
olhos, adorando / Os castigos do Céu como
favores.”
|