Revista TriploV
ns . nº62. janeiro-fevereiro 2017 . ÍNDICE



Mário Montaut (Brasil). Compositor, cantor, poeta, residente em São Paulo. Muitas das suas canções são interpretadas por Ana Lee. Alguns CDs: Samba De Alvrakélia, Bela Humana Raça, De Viés.

MÁRIO MONTAUT

Notas sobre um choque essencial

 

 

 

Anti-Char

 

Poesia intransitiva,

sem mira e pontaria:

sua luta com a língua acaba

dizendo que a língua diz nada.

 

É uma luta fantasma,

vazia, contra nada;

não diz a coisa, diz vazio;

nem diz coisas, é balbucio.

 

João Cabral De Melo Neto, esse poeta impressionantemente objetivo, de objetividade quase mística, teve potência para essa infinita poesia crítica, e me torna agora impossível sem ela uma contemplação maior do que em Char ele pensa não ver, entre os intensos e bons golpes que em termos de René Char revelam a aproximação de um “Leal Adversário”. É como o diagnóstico musical de uma desolação relativa e inconteste. Foi dessa maneira que João Cabral me apresentou a esse poeta. Para deleite do meu caos o súbito raio desse choque essencial.

 

Agora...

 

“O fio de uma faca

mordendo o corpo humano,

de outro corpo ou punhal

tal corpo vai armando,

 

pois lhe mantendo vivas

todas as molas da alma

dá-lhes ímpeto de lâmina

e cio de arma branca,”

 

“Uma Faca Só Lâmina”, poema orgânico, física sutil dos enxertos, bem merece este palpável trecho de alma, um dos poemas de “Folhas de Hipno”, escrito por René Char durante a Segunda Guerra Mundial, quando sob o cognome Alexandre ele atuou como capitão da Resistência francesa. Um pequeno feitiço para João Cabral:

 

“No teu corpo consciente, a realidade está adiantada de alguns minutos de imaginação. Esse tempo jamais recuperado é um abismo alienado  dos actos deste mundo. Nunca é uma simples sombra, apesar do seu perfume de clemência nocturna, de sobrevivência religiosa, de infância incorruptível.”

(tradução de Margarida Vale de Gato)

 

Tempo que também acolhe Dalí, Pessoa, Castañeda e Tom Jobim. Outra apalpadela possível aqui:

 

“Nossa palavra, em arquipélago, vos oferece, após a dor e o desastre, morangos que ela traz das gândaras da morte, assim como os dedos quentes de tê-los procurado.”

(A palavra em arquipélago-tradução de Augusto Contador Borges)

 

Isso tudo me veio à memória ao ouvir um solo de Jimi Hendrix.

 
 
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