O documentário
intitulado Vida activa - O espírito de
Hannah Arendt, realizado por Ada Ushpiz,
aparece nos cartazes de cinema num momento que
convida a vermo-nos ao espelho nele e a
declararmos o que a filósofa declarou, face à
banalidade do Mal que levou seres humanos
normais a insultarem, roubarem, torturarem e
assassinarem mais de dez milhões de outros seres
humanos: "Tenho vergonha de ser um ser humano".
O filme é um concentrado
de informações, quase sempre simultâneas, em
vários meios: texto escrito, banda sonora com
leituras e entrevistas, imagens, tradução em
legenda, o que torna inexequível uma apreensão
satisfatória de quanto encerra em
pensamento, sobretudo tratando-se de apreender
conceitos filosóficos difíceis, pois contradizem
o senso comum. É o caso da expressão-chave
"banalidade do Mal", que não sugere que
o mal seja de aceitar, sim que, ao tornarmos
banal a falta de valores, ao habituarmo-nos a
essa circunstância do que é normal, o tornamos
normativo. Do normativo ao legal vai um passo,
da legitimidade do genocídio à dificuldade de o
condenar vai outro passo. E é neste passo, o da
legitimação, que Hannah Arendt fala de
banalidade do Mal.
A obra de Arendt,
discípula e amiga de Karl Jaspers, amante de
Heidegger ("todos os homens a trairam", diz-se,
no filme) funda as ideias na análise do que
aconteceu no período nazi. Ia eu vendo o
documentário e
ia-as assimilando como se fossem espelho do que
hoje acontece na Europa e no mundo todo. Por
exemplo, o que é que legitimou o extermínio de
milhões de ciganos, judeus, deficientes e tantos outros
seres humanos?
A migração é perigosa. As
massas humanas em
deslocação forçada não
têm defesa, nem sequer a das instituições
humanitárias. Essas massas de gente podem a dado
passo ser exterminadas, porque a banalidade do
Mal isso legitima. Quais as condições para o
extermínio? - O estarem fora do Estado cujas
leis protegem os cidadãos dessa nacionalidade.
Cidadãos num Estado a que não pertencem não têm
direitos - a não ser, se não forem rasgados, os
Direitos do Homem, mas parece que esses não
existiam na Alemanha nazi, apesar de se
inscreverem nas constituições democráticas modernas, a
exemplo da dos Estados Unidos da América.
Populações deslocadas do Estado de onde são
nativas não têm direitos, tendem a ser vistas
pelo Estado recetor como lixo, podendo assim ser descartadas por
boas pessoas que se defenderão, caso sejam
levadas a julgamento, com "Limitei-me a
cumprir ordens superiores".
Hannah Arendt foi
atacada e caluniada por pensadores e não
pensadores de todos os quadrantes, incluídos
judeus, porque o seu pensamento era livre e
independente, por isso não tinha a proteção de
nenhum partido, nenhum paradigma dominante. O
pensamento livre é cruel porque isento, e isento
também de emoções. Só uma pessoa ferida desde a
cabeça aos pés consegue pensar sem lágrimas, daí
a repulsa judaica por uma ideia que julgo a
psicologia defende, que é a de os judeus -
alguns, parte-se do princípio - terem pactuado
com os nazis. Julgo ser ideia assente que em
geral se estabelece um pacto de cooperação entre
vítima e carrasco, para não dizer que tenho
disso experiência vivida: o pacto estabelece-se
para que não haja sangue, para que a situação
não piore, para que alguns sejam salvos. A
vítima ajuda o carrasco para que tudo corra bem
ao carrasco, para que o carrasco não trema e
desvie a lâmina do pescoço da vítima, porque a
tremura eleva o drama aos cumes da tragédia. Foi
assim que Mishima não morreu nem à primeira nem
à segunda tentativa de ser decapitado, porque o
decapitador estava tão trémulo que preferiu
suicidar-se a matar o amigo. Esta ideia de que
os judeus tinham pactuado com os alemães,
defendida pela judia Hannah Arendt, não foi
aceite, tal como não foi compreendida a da
banalidade do Mal. No entanto parece simples: se matarmos uma pessoa,
isso custa muito; a segunda já
não custa tanto e a terceira e a quarta já
entram na rotina. Se matarmos mil, a coisa passa
a ser uma banalidade, pode mesmo ser submetida
ao parlamento uma lei que permita exterminar
com rapidez todos os mexicanos, portugueses, franceses,
etc., de dado país, onde não são nativos.
Ser ou não ser nativo,
vejamos. Ignoro a História do conceito de
nativismo, conheço-o do século XVIII, quando nas
colónias da América, Brasil incluído, começaram
a surgir os movimentos independentistas. Nativo era o já nascido
nas colónias, por oposição à geração de pais e
avós, potencialmente descartáveis pelos nativos,
se se opusessem à independência. E agora é numa
nação com mais de duzentos anos de independência
que tenta emergir de novo um nativismo que na
raiz exprime o desejo de descartar imigrantes
não nascidos no lugar de imigração? Vamos, em
Portugal, supondo, descartar todos os chineses e
indianos vindos da Ásia e só poupar os filhos
aqui nascidos? É contra este princípio
nativista que muitos reclamam hoje, dia 21 de
janeiro de 2017, nos EUA, entre eles a
diversificada população de atores, oriundos um
pouco de todo o mundo, e até de Portugal.
Temos em palco um
Trumpithecus phalocentricus que trouxe à
ribalta procissões da Ku Klux Klan a
aplaudir-lhe o racismo, o machismo, a xenofobia, a
homofobia, a discriminação da mulher, etc..
Sabemos que a História não se repete. Não, claro
que não haverá mais câmaras de gás. O futuro só
permite soluções tecnologicamente mais
avançadas: a próxima escória que aparecer,
decerto será reciclada em microondas para
fabrico de papel de parede.
O que a minha memória
reteve, de uma visita a Dachau, antigo campo de
concentração, perto de Berlim, não foram as latrinas nem o vazio
interminável de armazéns onde os judeus foram
exterminados com gás, sim os candeeiros de mesa com
abat-jours feitos de pele humana.
A questão não é a de
esperarmos que os alemães tivessem vergonha de
ser alemães nem que os americanos se venham a
envergonhar de ser americanos por terem eleito
um energúmeno (a que Domingos da Mota dedica o
poema "Onfaloscopia"), esquecidos de que
foram dos primeiros e mais importantes
promotores da democracia, sim a de nos
envergonharmos todos se permitirmos mais
banalidades do Mal, tal como a alemã Hannah
Arendt se envergonhou, declarando: "Tenho vergonha
de ser um ser humano".
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