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Filipa Barata (Lisboa, 21.1.1981)
licenciou-se em Estudos Portugueses e Franceses na Faculdade de
Letras de Lisboa, aí tendo defendido tese de mestrado intitulada O
lugar do Eu e do(s) Outro(s) nas “Memórias” de Raul Brandão.
Ainda iniciou o doutoramento em Literatura Portuguesa Contemporânea,
tendo deixado quase pronta uma dissertação sobre “A Construção do
Sujeito em Miguel Torga”. Colaborou em várias publicações nacionais
e estrangeiras e foi colaboradora do CLEPUL. Faleceu a 2 de Maio de
2014. |
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FILIPA BARATA
Sobre
Contramina
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No panorama de certa poesia portuguesa mais actual, e em especial no da
sua geração, a voz de Ruy Ventura quase se assemelha a um oásis no meio
do deserto poético de composições sobrecarregadas de imagens urbanas
vazias, onde, em muitos casos, as referências culturais ou mesmo
literárias são vagas.
Não será esta uma tendência exclusiva da poesia portuguesa, mas a
crescente vulgarização da linguagem, onde o banal e o rotineiro tomam
ares poéticos, apontando para um vazio pontuado por sensações
imprecisas, onde se sente a ausência de um pensamento consentâneo que,
porventura, não deve estar ausente desta ou de outras formas de escrita.
É neste contexto que Ruy Ventura nos dá a conhecer o seu último título,
Contramina, depois de
Arquitectura do Silêncio (2000),
Chave de Ignição (2009) e
Instrumentos de Sopro (2010), entre
outros.
Um livro algo original este
Contramina, que se não encontra essa
originalidade em cada um dos elementos de per si, que o compõem,
encontra-a certamente no modo como combina aquilo que parece ser a sua
principal substância (metafísica, espiritual) com a estrutura que o
enforma. Trata-se de um texto cuja filiação a um determinado género é
difícil, porque, se o teor da sua mensagem é aparentemente poético, a
verdade é que a sua forma o aproxima muito mais do género dramático –
ou, pelo menos, do que convencionalmente se entende por cada um desses
géneros.
Talvez não seja despiciendo que nos demoremos sobre a questão do género
textual, em Contramina, já que isto levanta problemas teóricos,
que apesar de não serem absolutamente novos, suscitam perguntas que nos
permitem reflectir sobre o modo como lemos e classificamos certos
textos. Assim, comecemos por colocar algumas perguntas: porque é que
podemos considerar Contramina um livro de poesia? O que existe aí
de poético? Será que se trata efectivamente de um texto poético ou é o
modo como o lemos que é poético? Haverá um modo poético de ler certos
textos que os pode transfigurar em poéticos mesmo que a sua mensagem não
pretenda, porventura, ser poética?
Esperando poder responder a estas e outras questões em espaço mais
oportuno, importa, no entanto, referir que apesar de Contramina
aparecer classificado como um livro de poesia, esse é talvez apenas um
modo de tornar a sua classificação mais fácil, uma vez que a sua
mensagem parece aproximar-se mais do campo da filosofia mística ou de
algumas das principais questões que rodeiam o pensamento cristão. Convém
notar, aliás, que é talvez na reflexão sobre a palavra, e por extensão a
divina, que encontramos um dos núcleos mais profícuos desta escrita. Na
interrogação sobre a palavra de Deus e de como ela devém fogo ora
purificador, ora transformador alicerça-se a força da linguagem, na qual
inevitavelmente entroncam os mistérios sobre a existência humana e, por
acréscimo, as questões de índole metafísica e espiritual que
Contramina põe em cena. Atentemos, assim, para uma das falas que
pertence ao nome de João:
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sabemos distinguir a matéria do lugar? que voz se ouve? o pacto ecoa
na palavra – e num brilho que a existência resguarda no fogo ou no
fingimento. ter colhões, olhar olímpico – dizem – para descobrir (entre
a execução e o roubo, entre excrementos e ruídos), sem nome, a gruta, a
praia, a serra, o bosque, o prado, a rua, a casa, o largo – e, neles, o
reino de Deus. (p. 12)
Cumpre dizer, ainda, que certas marcas do Antigo Testamento, mas também
do Novo, estão patentes nesta obra sobretudo ao nível de uma linguagem
que procura ser simbólica e, nesse sentido, desfazer-se um pouco de
alguns elementos estilísticos. Vejamos, por isso, uma das falas que
compete ao nome de Agostinho: |
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a voz conta o temor da passagem, a audição de um segredo que o
confronto regista e multiplica. há pontes e açudes, mas ninguém conhece
a largura das águas, a extensão das margens e a humidade da terra que o
lodo acolhe e estrutura. verbo ecoando pelo mapa, este grito no parto.
pomba voando da mão ao encontro do tiro ou da serpente. (p. 11).
Não estamos, portanto, no campo da literatura e sua retórica, no sentido
mais ortodoxo do termo, porque Contramina nos atrai para essa
linguagem depurada, que busca libertar-se de conotações demarcadas para
ganhar uma natureza de símbolo, na qual a palavra transponha os limites
do humano. Daí que uma análise puramente literária do seu conteúdo se
torne difícil. Neste sentido, não devemos estranhar que, enquanto
objecto literário, o texto de Contramina possa ser menos
interessante, pese embora o facto de aparecer classificado, pelo próprio
autor, no seu blogue pessoal, como um livro de poesia. No fundo, como
vimos anteriormente, estamos perante um texto arredio a categorizações,
mas é, provavelmente, nessa pertença a um género que temos de
questioná-lo e interpretá-lo e, sobretudo, tentar perceber porque joga
tão habilmente com as formas literárias que usa.
Se tivermos em conta o diálogo que se trava entre as várias vozes que,
através do índice de figuras, atribuímos a referentes concretos – uma
vez que muitos deles dizem respeito a nomes de personagens de ficção,
poetas, pintores, filósofos, santos, etc. –, facilmente nos recordamos
daquele outro diálogo que mantêm entre si as veladoras n’
O
Marinheiro, de Fernando Pessoa. Estamos assim dentro da
Contramina como num drama extático, sem movimento, onde a única
coisa que pode ser digna dessa designação é a própria voz ou, no caso da
obra em apreço, as vozes que se cruzam e que todas juntas procuram, quem
sabe, as razões metafísicas e espirituais da sua própria existência.
Cada uma dessas vozes, provenientes de áreas de conhecimento diversas,
tende a usar um conjunto de vocábulos comuns como se se tratasse de um
idioma que se modifica com a intervenção de cada uma dessas vozes. Posto
isto, talvez não seja descabido referir que, em
Contramina –
termo equivalente a mina usado por empréstimo do castelhano na raia
alentejana de Portalegre, concelho natal de Ruy Ventura – assistimos à
invenção de um idioma, do espírito, das coisas naturais, se quisermos,
de onde, porém, não se ausenta o grande espírito criador que modula ao
mesmo tempo cada um desses elementos, e dessas palavras, fazendo-as
nascer da junção dos sons tal como os minérios que se extraem da mina
são resultado químico de vários fenómenos:
sangra-se o poema. não sobrevive se a água não circula pelas veias.
setenta por cento do poema é apenas água (salgada), sal da terra. a mina
sustenta todas as formas de vida que povoam e elevam a existência.
haverá células mortas (o ferro evita a anemia, mas não impede a secura e
o apodrecimento das palavras). o corpo permanece. com sangue, sem água,
não passará no entanto de um cadáver – múmia conservada como pedra numa
redoma de vidro. (p. 55-56).
Vale a pena destacar, ainda, que se
Contramina é sinónimo de
idioma tem a ligá-lo à imagem de onde provém uma espécie de silêncio
inicial no qual tudo o que é visível e invisível conhece a sua origem e
o seu fim, fazendo lembrar nisto muito da filosofia trágica patente na
obra de Raul Brandão, sobretudo em títulos como
Húmus ou
El-Rei Junot.
(in
Navegações, Porto Alegre, v. 7, n. 1, p. 105-106, jan.-jun.
2014: 105 - 106) |
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