Risoleta C Pinto Pedro (Elvas, Portugal).
Publicou até hoje: A Criança Suspensa, Prémio
Ferreira de Castro, O Corpo e a Tela, Hugin, O Aniversário, Prémio
Revelação APE/IPBL 1994, Difel, O Arquitecto, Hugin, Venite In Silentio,
Unicepe, Porto, 2004, O Sol do Tarot de Sintra, Indícios de Oiro, 2009,
Adelaide Cabete e a Palavra encontrada, Padrões Culturais, 2010, entre
outros. Foi também premiada na poesia pela SLP, tem escrito teatro,
canções, libretos de ópera, cantata, musical, texto para bandas
desenhadas. Fez crónica (“Quarta-Crescente”) para a Antena 2. Continua a
publicar crónicas em periódicos generalistas,
literários e de artes plásticas.
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É ao som da
Estrela d’Alva que escrevo. Pela voz do amado
trovador. Haverá outro mais amado após D. Dinis?
São estas as únicas vozes que poderão ser
seguidas. Outros caminhos precisamos de
inventar. Ouço a voz e ecoando lá muito atrás
outro som, outras vozes, as mesmas palavras, a
mesma música que tantos anos cantei numa versão
a quatro vozes a ampliar a luz da estrela.
Não há como o
escuro para ver ou inventar novas estrelas. E se
os tempos em que José Afonso viveu aspiravam à
luz, não menos o são estes nossos. É que então
estávamos fechados num quarto escuro guardado
por um ogre moralista e austero. Hoje a porta do
quarto abriu-se e apercebemo-nos que o escuro
também estava lá fora e que está para lá da
moral e da austeridade e que os ogres se
multiplicam com muita velocidade. E que nós os
alimentamos e que austeridade é a palavra
prisão. As prisões não são para todos. Há sempre
os que ficam de fora. No V Império não haverá
prisões, não haverá fome, e teremos recuperado a
inocência. Os adultos acham isto impossível. As
crianças não. É necessário procurar as crianças
que abandonámos dentro de nós. Para isso preciso
de uma luz forte. Ouço a música e usarei as
palavras de Zeca Afonso para compor o “meu”
texto.
Com a Estrela
no rosto como sorriso tentarei a altura que as
trovas e as cantigas libertadas da
garganta
como luz farão entrar pelas janelas das caves
como dos andares mais elevados. Será tanto o
fulgor que a noite ainda menina iluminará a vila
e o espanto de uma nova e desconhecida
fraternidade encherá de povo a cidade. Em cada
esquina um amigo, um rosto sem medo, uma natural
diferença na igualdade e pessoas sem idade. Nos
campos será coroada a azinheira, companheira
antiga e firme, à beira da água a vontade unirá
gaivotas e homens. Os pombos deixarão de ser
perseguidos e a noite será suave e fina como
areia. Também o mar voltará ao azul e dormiremos
ao relento de olhos no infinito, no meio da
praça. Gente, muita gente libertará a estátua
que criou em si e a febre aclarará o breu. Cada
mulher, cada homem extrairá de dentro de si uma
desconhecida figura que como estrela de cinco
pontas indicará todos os caminhos do Universo.
Longe, muito longe, apenas uma memória que não
deve ser totalmente esquecida, num gritar
abafado
ao fundo de um lago de breu onde a
rusga parece
ridícula como palhaços de papel. Os caminhos são
ladeados de pão, o chão é espaço de valsa para
gente, e a rua é segura. Todo o Menino é d'oiro
e o
Menino do bairro negro
é belo. O bairro pintou-se de todas as cores e a
lembrança do negro foi transportada para a
Canção do mar,
para que não se esqueça o lugar de onde se
começou.
Os vampiros são uma recordação engraçada do
folclore, trazem trouxas às costas e cantam o
coro dos caídos. No caminho por onde passam
soltam-se pombas a limpar o ar.
À volta deles as crianças fazem uma ronda e
conduzem-nos aos altos castelos onde também
poderão ser felizes.
Dos montes erguidos vigia-os o pastor de
Bensafrim para que lá fiquem durante a noite e
apenas saiam ao sol, que os curará do medo que
de si mesmo ganharam.
Domesticados os ogres pelo amor, vejam bem, quem
imaginaria, o Natal será simples, já não vai ser
preciso o pai natal e os outros pais morrerem
esmagados sob sacos de compras à porta do centro
comercial. Bastará, para serem felizes, recordar
o eterno e sagrado nascer, ao som da balada do
sino.
Serão reais o cavaleiro e o anjo, quotidianos
como o pão e a oração. Tecto de mendigo será
dourado, como o do rei. Os velhos nomes apenas
persistirão durante algum tempo, pelo antigo
hábito. O cigano honrará a viagem. Assim vou eu,
já o tempo se habitua ao bem e minha diáspora
continua, rebolar-me-ei na erva na companhia do
Arcanjo, o senhor das Utopias em acção, ao som
do Coro da Primavera. E nunca mais ninguém será
como a toupeira, pois por trás daquela janela
alta que ali vêem canta o Juiz e o seu veredicto
é o poema conjunto de Zeca Afonso e D. Dinis.
Risoleta C. Pinto Pedro, 31 de Outubro de 2016
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