Cabeçalho de Manuel A. e Sousa
Revista TriploV de Artes, Religiões & Ciências . ns . nº61. novembro-dezembro 2016 . ÍNDICE
Homenagem de A viagem dos argonautas e do Triplov a José Afonso



Risoleta C Pinto Pedro (Elvas, Portugal). Publicou até hoje: A Criança Suspensa, Prémio Ferreira de Castro, O Corpo e a Tela, Hugin, O Aniversário, Prémio Revelação APE/IPBL 1994, Difel, O Arquitecto, Hugin, Venite In Silentio, Unicepe, Porto, 2004, O Sol do Tarot de Sintra, Indícios de Oiro, 2009, Adelaide Cabete e a Palavra encontrada, Padrões Culturais, 2010, entre outros. Foi também premiada na poesia pela SLP, tem escrito teatro, canções, libretos de ópera, cantata, musical, texto para bandas desenhadas. Fez crónica (“Quarta-Crescente”) para a Antena 2. Continua a publicar crónicas em periódicos generalistas, literários e de artes plásticas.
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RISOLETA PINTO PEDRO 

A Utopia segundo José Afonso


É ao som da Estrela d’Alva que escrevo. Pela voz do amado trovador. Haverá outro mais amado após D. Dinis? São estas as únicas vozes que poderão ser seguidas. Outros caminhos precisamos de inventar. Ouço a voz e ecoando lá muito atrás outro som, outras vozes, as mesmas palavras, a mesma música que tantos anos cantei numa versão a quatro vozes a ampliar a luz da estrela.

Não há como o escuro para ver ou inventar novas estrelas. E se os tempos em que José Afonso viveu aspiravam à luz, não menos o são estes nossos. É que então estávamos fechados num quarto escuro guardado por um ogre moralista e austero. Hoje a porta do quarto abriu-se e apercebemo-nos que o escuro também estava lá fora e que está para lá da moral e da austeridade e que os ogres se multiplicam com muita velocidade. E que nós os alimentamos e que austeridade é a palavra prisão. As prisões não são para todos. Há sempre os que ficam de fora. No V Império não haverá prisões, não haverá fome, e teremos recuperado a inocência. Os adultos acham isto impossível. As crianças não. É necessário procurar as crianças que abandonámos dentro de nós. Para isso preciso de uma luz forte. Ouço a música e usarei as palavras de Zeca Afonso para compor o “meu” texto.

Com a Estrela no rosto como sorriso tentarei a altura que as trovas e as cantigas libertadas da  garganta como luz farão entrar pelas janelas das caves como dos andares mais elevados. Será tanto o fulgor que a noite ainda menina iluminará a vila e o espanto de uma nova e desconhecida fraternidade encherá de povo a cidade. Em cada esquina um amigo, um rosto sem medo, uma natural diferença na igualdade e pessoas sem idade. Nos campos será coroada a azinheira, companheira antiga e firme, à beira da água a vontade unirá gaivotas e homens. Os pombos deixarão de ser perseguidos e a noite será suave e fina como areia. Também o mar voltará ao azul e dormiremos ao relento de olhos no infinito, no meio da praça. Gente, muita gente libertará a estátua que criou em si e a febre aclarará o breu. Cada mulher, cada homem extrairá de dentro de si uma desconhecida figura que como estrela de cinco pontas indicará todos os caminhos do Universo. Longe, muito longe, apenas uma memória que não deve ser totalmente esquecida, num gritar abafado ao fundo de um lago de breu onde a rusga parece ridícula como palhaços de papel. Os caminhos são ladeados de pão, o chão é espaço de valsa para gente, e a rua é segura. Todo o Menino é d'oiro e o Menino do bairro negro é belo. O bairro pintou-se de todas as cores e a lembrança do negro foi transportada para a Canção do mar, para que não se esqueça o lugar de onde se começou.

Os vampiros são uma recordação engraçada do folclore, trazem trouxas às costas e cantam o coro dos caídos. No caminho por onde passam soltam-se pombas a limpar o ar.

À volta deles as crianças fazem uma ronda e conduzem-nos aos altos castelos onde também poderão ser felizes.

Dos montes erguidos vigia-os o pastor de Bensafrim para que lá fiquem durante a noite e apenas saiam ao sol, que os curará do medo que de si mesmo ganharam.

Domesticados os ogres pelo amor, vejam bem, quem imaginaria, o Natal será simples, já não vai ser preciso o pai natal e os outros pais morrerem esmagados sob sacos de compras à porta do centro comercial. Bastará, para serem felizes, recordar o eterno e sagrado nascer, ao som da balada do sino.

Serão reais o cavaleiro e o anjo, quotidianos como o pão e a oração. Tecto de mendigo será dourado, como o do rei. Os velhos nomes apenas persistirão durante algum tempo, pelo antigo hábito. O cigano honrará a viagem. Assim vou eu, já o tempo se habitua ao bem e minha diáspora continua, rebolar-me-ei na erva na companhia do Arcanjo, o senhor das Utopias em acção, ao som do Coro da Primavera. E nunca mais ninguém será como a toupeira, pois por trás daquela janela alta que ali vêem canta o Juiz e o seu veredicto é o poema conjunto de Zeca Afonso e D. Dinis.

Risoleta C. Pinto Pedro, 31 de Outubro de 2016

 
 
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