O porquê de uma
leitura incompleta, lapso gerador de um remorso
só devidamente equacionado quando o tempo e o
distanciamento agudizam a extensão da lacuna,
não é de explicação aceitável quando as razões
aduzíveis são o descaso e a preguiça. Se
relativamente ao romance de David
Mourão-Ferreira Um Amor Feliz não houve descaso
– a edição inaugural do livro fora-me oferecida
pelo autor com uma dedicatória amigável e ainda
percorri uma vintena de páginas – uma certa
forma de preguiça pode ter “adiado” a leitura
crítica até aos dias de hoje, quanto a mim o
melhor álibi para justificar o diferimento.
Todavia levei a peito vencer a falta de empatia
com as propostas iniciais do romance –
porventura a causa escondida da primeira
rejeição – e a tirar a limpo uma pendência que
viria a ser também condicionada pela avalancha
de literatura passiva que inflaccionou de laudas
encomiásticas a recepção da obra. Que me perdoe
o David, onde quer que agora repouse, a tardia
assunção de uma nova atitude, que decorre, ao
menos, da empenhada leitura integral do seu
livro e também de algumas achegas externas
perante as quais me curvo respeitoso e
obrigado.*
Começo, no entanto, por
dizer que voltei a “sentir” os travões
inibidores do passado na segunda tentativa de
abordagem à ficção romanesca de DM-F na justa
medida em que a sua escrita poética desde sempre
me tocou, sendo a imediata comparação entre uma
e outra causa do retraimento da tempestiva
reaproximação. Em poesia, seja num poema de
fundo, numa letra para fado ou numa quadra
castiça, David não cede um nico à facilidade.
Cada verso é pesado, ritmado, medido, e cada
estrofe é um prodígio de equilíbrio estético,
sustentados pela rigorosa disciplina por ele
imposta ao trabalho lírico. Na prosa romanesca
não é bem assim. Julgo que no primeiro terço,
quando a narrativa anda à procura de um norte
para orientar na mensagem a temática escolhida,
os desníveis de qualidade formal torpedeiam a
ambição de amplitude desde cedo sintomática das
ambições do autor. Diálogos lassos, uso e abuso
do advérbio de modo, indecisa formulação
ambiental, um certo empastelamento da narrativa
com repetições desnecessárias, são empecilhos
que dificultam a adesão incondicional do leitor,
por essa altura já a fazer esforços para não
bater em retirada ante os obstáculos que se lhe
deparam. Dir-se-ia que David procurava um
estilo, mas que a prosa lhe saía rebuscada,
minada ainda, talvez, por um treino de ensaísta
que dificultava a fluidez do discurso ficcional
na direcção desejável à captação da mensagem
pelo receptor-alvo.
Desta vez, porém, não
havia preguiça e o esforço continuado em levar o
livro até ao fim foi culminado com a
rectificação de uma atitude apriorística inócua.
Atitude fora de tempo? Admito que sim. Mas
perfazendo o livro neste ano de 2016 a bonita
idade de 30 anos e não cessando a editora
(Presença) de o reimprimir (a 17ª edição data de
2009) parece-me de todo legítimo emendar a mão,
não corrigindo qualquer opinião anterior, que
não existiu, mas colmatando o “buraco” da
indiferença contemporânea da primitiva versão.
A dado passo, nesta nova
fase, fui forçado a reconhecer que no livro
alguma coisa mudara. E mudara no escritor.
Fiquei com a impressão – e perdoe-se-me o
impressionismo pois David já cá não está para
aprovar ou não – o autor-narrador porfia em
divertir-se com a própria teia que está a tecer
e nos leva a participar, cada vez com maior
empenhamento, no desenrolar do enredo, logo, a
divertirmo-nos também. Um Amor Feliz é,
evidentemente, um romance de relações perigosas.
A livros celebérrimos, muito populares, cujo
tema era a traição conjugal, chama-se-lhes agora
“romances de adultério” e tiveram o seu auge nos
séculos XVIII, XIX e princípios de XX. O romance
de David sendo igualmente “de adultério”
corresponde a uma evolução deste tipo de
problema que não passa já pela noção de pecado
ou de ilícito criminal mas por uma espécie de
convenção mais ou menos snobe que entre os
membros da classe abastada naturaliza a figura
do “amante” como questão inerente a uma qualquer
alteração de mentalidades, um tique de casta
superior muito ao gosto do novo-riquismo dos
anos oitenta do século passado. Ou seja: já não
há tragédia no adultério, já ninguém precisa de
desafiar ninguém para um duelo por motivos
passionais ou lavar a sua honra por outros meios
violentos, pondo em risco a própria vida. Os
grandes protagonistas deste “caso” são Y, amante
do escultor Fernão, o pediatra assistente marido
de Y e a pediatra, superiora hierárquica deste e
mulher do escultor, que jamais põe em causa a
“fidelidade” do consorte, e segundas figuras com
desempenhos formidáveis como Floripes, a
empregada doméstica que se ocupa das limpezas no
atelier do escultor e sua filha Zu,
cabeleireira. E um poeta muito conhecido, quase
sempre de cachimbo na boca.
Quando as linhas de
força de todas estas individualidades de papel e
tinta se cruzam em alta tensão David
Mourão-Ferreira atinge um empolgante patamar de
realização artística que já subjugou o leitor,
mesmo o reticente, que não se afastará do livro
antes da derradeira página. Chega a pensar-se
que Fernão é o alter-ego de David, uma vez que o
escultor tem um passado de mulherengo deveras
impressionante ainda que viva com Y uma paixão
assolapada por inaptidão do marido em cumprir os
mínimos dos deveres conjugais processando a
história com superior minudência as escapadelas
de Y ao atelier do escultor para se amarem.
Este, aliás, é chantageado pelo marido de Y,
através da mulher pediatra num imbróglio
pelintra de tráfico de influências que acaba por
não resultar. No contexto, Floripes e Zu sobem a
grande altura como personagens secundárias, de
recorte trivial, cujas falas de uma
espontaneidade demolidora condimentam a intriga
com as “verdades” que o conspícuo atelier nelas
inspira.
Mas não. Fernão não é o
alter-ego de David. O alter-ego de David é o
próprio David, o grande poeta que incentivará Y
a escrever melhor poesia e sobre a qual exerce
um inusitado fascínio, ajudado pelo seu ícone
favorito, o imprescindível cachimbo. Cachimbo
que já seria adereço suficiente para reconhecer
na personagem o equivalente da vida real tantas
vezes é ele mencionado para identificar o
portador. David, portanto, “rouba” Y a Fernão,
mas nas páginas finais desmonta toda a estrutura
da trama, ponto por ponto, denunciando a sua
intervenção como autor-narrador responsável pela
arquitetura do romance, e revelando o pobre
escultor como uma marioneta por si manipulada,
convocada para um desfecho esclarecedor como
naqueles romances policiais em que o
investigador reúne todos os suspeitos no salão
para nomear o criminoso ou como nos filmes de
Hitchcock em que o realizador aparece sempre na
fita. O narcisismo de David Mourão-Ferreira
impediu-o de manter escondida a mão que geria a
trama, tornando inútil o diplomático diálogo
final entre escultor e poeta porquanto são
numerosas as pistas salpicadas no texto que
indiciam a sua presença activa na confecção do
produto. Mas que ganhariam em ter sido mantidas
tapadas para que o leitor pudesse gabar-se de as
ter destapado.
Por fim, na solidão do
atelier, Fernão recebe um dia uma carta de Y.
Terá ela levado com os
pés do famigerado poeta garanhão e estará de
volta?
Jamais o saberemos. O
romance atinge o seu termo sem que a carta seja
aberta.
E isso importa, depois
de termos chegado onde chegámos e de sabermos
como?
Independentemente do
tema do adultério e do que o rodeia, Um Amor
Feliz é um cáustico testemunho da sociedade
portuguesa ilustrada do início dos anos oitenta
com seus tiques de novo-riquismo, seus ainda mal
digeridos contrastes resultantes da mudança de
regime, seus políticos corruptos ou
incompetentes, suas redes de influência, o
ridículo dos partys em embaixadas, a
mediocridade cultural e um sem número de outras
manchas no cadastro de que, como país, segundo
David, não devemos orgulhar-nos. Felizmente que
o escultor tem em Lisboa o atelier que é
simultaneamente ninho de amor e, bem longe, no
Monte Estoril, o doce lar onde reside com sua
mulher, a fiel pediatra que lhe tolera tudo,
sempre tão embrenhada no seu trabalho e na
carreira que de nada desconfia – não tem a
sensibilidade para os “cheiros” da impagável
Floripes.
Ah, Mestre, Mestre,
se este divã falasse, era cá um destes berreiros
de mulherio que até se ouvia na Outra Banda! Mas
de há uns meses a esta parte sei muito bem que
tem sido sempre a mesma senhora, que o meu nariz
nestas coisas nunca se engana, e deve ser pessoa
de grande categoria, lá isso deve, porque fica
sempre tudo muito bem cheiroso e muito
asseadinho […] Ai que se esse espelho fosse um
quadro com os retratinhos à la minuta de todas
as madamas que têm aqui vindo!... Eu é que sei,
não que as tenha visto, mas até houve muitas
ocasiões em que elas eram às três e às quatro na
mesma semana, agora uma, agora outra, e deviam
ser todas da alta, olá se deviam, mas eu
distinguia-as logo pelo perfume, que este meu
nariz nunca se engana.
A Floripes.
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