O Zeca foi sempre um
andarilho.
Nasceu em Aveiro e
aos 3 anos foi para Angola porque o pai tinha
sido colocado como delegado do Procurador da
República, e a família zarpou para lá. Desses
tempos sempre guardou uma grata memória e
adoração por África. A relação física com a
natureza criou -lhe uma profunda ligação ao
continente africano que o iria acompanhar toda a
vida. Entretanto veio para Portugal porque os
pais não paravam e em 1939 foram viver
para Timor, tendo ficado cativos dos ocupantes
japoneses durante três anos, entre 1942 e 1945.
Nessa altura já o
futuro cantor estudava e jogava futebol em
Coimbra. Entrou para o Orfeão e para a Tuna e
aconteceu que tinha voz e jeito para o
Fado…Entretanto, nascia a agitação estudantil em
1961. O Zeca era mais velho, licenciado em
letras com uma tese sobre Jean Paul Sartre,
autor proibido pela Censura, e aderiu à luta
participando nas serenatas às colegas…que
estavam em lares de freiras. Convém
esclarecer que esta táctica – além do lado
da sedução romântica –, também tentava liberta
–las do jugo conservador da Igreja para que elas
votassem na lista progressista para a Associação
Académica de Coimbra. O fado de Coimbra
conseguiu esse milagre e a partir daí começou a
agitação estudantil pelas cidades
Universitárias. Começaram a chamar ao Zeca o
rouxinol do Mondego…e os estudantes começaram
com o luto Académico. Particularmente importante
em Coimbra. A Académica estava em 1º lugar nos
campeonatos de basket e hóquei em patins e no 2º
ou 3º lugar em futebol. Cumprindo o luto
faltaram aos jogos nestas modalidades. Mas no
futebol, como o jogo seguinte era com o
Sporting, a GNR prendeu os futebolistas elevou
–os para “ estágio” para o Luso…no domingo houve
o jogo, com milhares de estudantes gritando
palavras de ordem e com o relvado cercado por
GNR armados virados para a assistência. Ao
intervalo o jogo estava 0-0 porque a Académica
não se mexia e o Sporting passava a bola entre
eles, mas não metiam golo…no intervalo a Pide
foi aos balneários e o Sporting lá ganhou o jogo
aplaudido com todo o estádio de pé.
O luto Académico foi
cumprido e devidamente castigado. Dezenas de
prisões para Caxias, Peniche e Companhia
Disciplinar de Penamacor, expulsões da
Universidades, mas os dados estavam lançados:
chegava o fim do fascismo, só adiado com a
criminosa e mortífera guerra colonial, ultimo
recurso de sustentação do regime.
É no meio dessa
turbulência que, uma noite, eu vejo o Zeca a
dedilhar uma suave canção, bonita mas que não
resistia à galhofa dos matulões com os copos…era
“ O meu menino é d’oiro”…abria –se o novo
caminho da canção e da música em Portugal.
Bairro negro… Vampiros, Coro da Primavera…O Zeca
começou a ter mais consciência politica, corria
o país como professor de Francês e História, até
que foi expulso do ensino.
Tinhamos criado
grandes laços de amizade, ele incomodava-se por
só cantar no meio estudantil e como havia na
minha terra – Grândola – um clube popular com o
fascinante nome Sociedade Musical Fraternidade
Operária Grandolense, que tinha uma corajosa
programação cultural, propus e foi aceite pela
direcção um espectáculo em Maio de 1964 que eu
organizei com Carlos Paredes na 1ª parte e
o Zeca na 2ª. Êxito incrível com um ambiente
tão quente e fraterno que o inspirou para fazer
o poema Grândola, Vila Morena, que as
voltas do destino transformaram na senha do
Movimento das Forças Armadas no golpe de 25 de
Abril de 1974.
O sucesso perseguia o
Zeca, mas o dr. José Afonso não tinha descanso
nem modo de vida. Andarilho é andarilho e foi
até Moçambique onde continuou a sua acção
cultural, chegando a musicar uma peça de Bertolt
Brecht, A Excepção e a Regra.
Regressando a Portugal,
também actuou para a emigração portuguesa pela
Europa em espectáculos organizados por
Associações e pelo Teatro Operário.
Com o 25 de Abril foi um
herói admirado e respeitado e também atacado por
dogmatismos e sectarismos inqualificáveis.
Com a recuperação da
direita foi humilhado por escribas que tiveram o
descaramento de atacar a sua música, a que ele
respondeu com obras belíssimas – entre elas ,
para o teatro A BARRACA, de que é justo destacar
o trabalho em “ Zé do Telhado” e a obra-prima
UTOPIA para “ Fernão, mentes?”
Infelizmente, teve uma
morte prematura e injusta. Mas o seu funeral em
Setúbal teve centenas de milhar de pessoas que
acorreram de todo o país cantando “ Grândola,
Vila Morena”.
Foi a justíssima
homenagem ao grande poeta da FRATERNIDADE.
Eterna saudade.
Teu Hélder
Lisboa, 6 de Outubro
2016
|