Revista TriploV de Artes, Religiões & Ciências . ns . nº 60. setembro-outubro 2016 .
ÍNDICE


Maria Estela Guedes (Portugal, 1947). Poeta, dramaturga, historiadora da História Natural e da Maçonaria Florestal Carbonária, além de exegeta da obra de Herberto Helder. Faz parte do Conselho Editorial da revista Incomunidade e colabora com Carlos Loures em:
http://aviagemdosargonautas.net/.
Dirige coleções na editora Apenas Livros, entre elas
cadeRnos suRRealistas sempRe. Tem umas dezenas de títulos publicados.
Foto: José Emílio-Nelson

MARIA ESTELA GUEDES

Julião Sarmento e o seu vestido preto,
Silvestre Pestana e a sua luz
«Tecnoforma» foi o título escolhido por Silvestre Pestana para a retrospetiva da sua obra na Fundação de Serralves, no Porto, que visitei em Agosto de 2016. Também vi «No fio da respiração», outra retrospetiva, agora de Julião Sarmento, na galeria da Câmara Municipal de Matosinhos.
Imagem em: http://www.cm-matosinhos.pt/frontoffice/pages/1464?event_id=3799
 
Os dois artistas recordaram-me Ernesto de Sousa, por motivos vários, artísticos todos embora em direções distintas. Por exemplo, ambos me trouxeram à lembrança as obras com que participaram na primeira caixa «Pipxou», organizada pelo Triplo V, grupo de intervenção artística constituído em Lisboa nos anos 80 por três pessoas: Ernesto de Sousa, o líder, por mim e por Fernando Camecelha. A colaboração de Julião Sarmento simula uma carta em papel impresso da empresa «Silva Tavares & Cia Lda. confecções e lacticínios»,  que apresenta, além do texto escrito, mais pormenores, como o desenho de um queijo e de uma camisa de homem. Reservando o queijo para a merenda, a obra cruza as artes plásticas com o design de roupa, tendência de estilista que parece subjacente, na exposição em Matosinhos, ao desenho e aos vestidos pretos usados pelo manequim de mulher sem cabeça que domina a sala.
Uma das diferenças entre a obra de arte e outra qualquer obra, seja ela o mais deslumbrante vestido de um costureiro da moda, vem de que a obra de arte irradia sentidos, nem sempre programados pelo autor, ao passo que o vestido completa-se num mutismo que passa a palavra a quem o veste - seja o top model, em primeiro lugar. Isto para dizer que o manequim de Julião Sarmento, por ser uma escultura e não um boneco de loja de roupa nem um modelo humano, também fala mais do que se possa pensar, por isso despertou em mim, mulher, a vontade de reagir, pedindo a Julião Sarmento que, para a próxima, se quiser um manequim sem cabeça, esculpa um de homem. 

Helena Almeida decapitou-se, mas precisamente: é a imagem da artista que surge mutilada e não a da mulher em geral. O valor semântico dos dois gestos é muito diferente, tanto mais que a obra de Julião Sarmento comporta sentidos de uma sexualidade muito forte.

Silvestre Pestana participou na primeira caixa «Pipxou» com fotografias de uma performance com néons, agora exibidas também em Serralves. Outros, os azuis, temo-los em slide show no Triplov.

O principal motivo de estes artistas trazerem Ernesto de Sousa à minha mente, para além, claro, do afeto à obra de ambos que ele manifestava, é a questão do novo. Nem sei se tal assunto estará ainda em voga, parece antiquado vir hoje, em 2016, falar do novo em arte. Embaraça-me a questão, digo com franqueza. Paciência, não vim aqui fazer um discurso para me situar numa linha da frente que deixou de se chamar vanguarda, sim para dizer que estou viva, atuante, presente, e acompanho os amigos e companheiros sempre que posso.

Então, o novo é terrível, porque o seu destino está traçado. E quando o novo se apropria das novas tecnologias - o novo consegue-se de maneiras várias, eu costumo falar dos híbridos, muito menos perigosos do que se pensa, pelo contrário - a arte, acoplada a essas novas tecnologias, fica dependente delas. Um telefone dos anos setenta data a obra que o usa, a lata de sopa de Andy Wharol é uma peça de museu, o recurso a materiais perecíveis, como o papel de jornal, conta com a desintegração rápida da obra, e apetece-me recordar um episódio pessoal, o da obra de arte comestível que o Ernesto de Sousa me desafiou a compor - uma belíssima tarte de maçã que esteve anos exposta numa parede de sua casa até que um dia a Isabel Alves informou, para meu desapontamento, que a excelsa obra de arte tinha caído ao chão desfeita em pó.

O recurso à tecnologia é próprio de Silvestre Pestana, que manifesta também o uso da hibridação, no caso com a ciência, quando organiza quadros sobre papel milimétrico com pequenos utensílios de secretária, por exemplo. Híbrido também o trabalho que recorre à música e ao filme em vídeo. Tudo isto cria cenários interativos que às vezes se dimensionam como ficção científica, e aqui a ciência e a tecnologia assumem o seu maior esplendor para a amante que sou dos néons de Silvestre Pestana.

Todos estes artifícios vão desaparecer, sob a pressão de tecnologias sempre mais novas, porém há artistas, como Julião Sarmento e Silvestre Pestana, que conseguem ultrapassar a efemeridade de materiais pobres e funcionalmente ultrapassados no seu enquadramento de vida real. Silvestre Pestana tem a seu favor, não o néon, sim a luz. Mais forte que o pensamento, em Julião Sarmento, o que alicerça a sua obra é a paixão.
 
Em baixo, imagens da exposição de Silvestre Pestana
 
 
 
A participação de Silvestre Pestana na caixa Pipxou é uma foto desta série.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
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