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Maria
Estela Guedes (Portugal, 1947). Poeta, dramaturga,
historiadora da História Natural e da
Maçonaria Florestal Carbonária, além de
exegeta da obra de Herberto Helder. Faz
parte do
Conselho Editorial da revista
Incomunidade e
colabora com Carlos Loures em:
http://aviagemdosargonautas.net/.
Dirige coleções na editora Apenas
Livros, entre elas
cadeRnos
suRRealistas sempRe.
Tem umas dezenas de títulos publicados.
Foto: José Emílio-Nelson |
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MARIA ESTELA
GUEDES
Julião Sarmento
e o seu vestido preto,
Silvestre Pestana e a sua luz
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«Tecnoforma» foi o
título escolhido por Silvestre Pestana para a
retrospetiva da sua obra na Fundação de
Serralves, no Porto, que visitei em Agosto de 2016.
Também vi «No fio da
respiração», outra retrospetiva, agora de Julião
Sarmento, na galeria da Câmara Municipal de
Matosinhos.
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Imagem em:
http://www.cm-matosinhos.pt/frontoffice/pages/1464?event_id=3799
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Os dois
artistas recordaram-me Ernesto de Sousa,
por motivos vários, artísticos todos
embora em direções distintas. Por
exemplo, ambos me trouxeram à lembrança
as obras com que participaram na
primeira caixa «Pipxou», organizada pelo
Triplo V, grupo de intervenção artística constituído
em Lisboa nos anos 80
por três pessoas: Ernesto de Sousa, o
líder, por mim e por Fernando Camecelha.
A colaboração de Julião Sarmento
simula uma carta em papel impresso da
empresa «Silva Tavares & Cia Lda.
confecções e lacticínios», que
apresenta, além do texto escrito, mais
pormenores, como o
desenho de um queijo e de uma camisa de
homem. Reservando o queijo para
a merenda, a obra cruza as artes
plásticas com o design de roupa,
tendência de estilista que parece
subjacente, na exposição em Matosinhos,
ao desenho e aos vestidos pretos usados
pelo manequim de mulher sem cabeça que
domina a sala. |
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Uma das diferenças
entre a obra de arte e outra qualquer obra, seja
ela o mais deslumbrante vestido de um costureiro da
moda, vem de que a obra de arte irradia
sentidos, nem sempre programados pelo autor, ao
passo que o vestido completa-se num mutismo que
passa a palavra a quem o veste - seja o top
model, em primeiro lugar. Isto para dizer
que o manequim de Julião Sarmento, por ser uma escultura e não um
boneco de loja de roupa nem um modelo humano, também fala mais do que
se possa pensar, por isso despertou em mim, mulher, a vontade de
reagir, pedindo a Julião Sarmento que,
para a próxima, se quiser um manequim sem
cabeça, esculpa um de homem.
Helena Almeida
decapitou-se, mas
precisamente: é a imagem da artista que surge
mutilada e não a da mulher em geral. O valor
semântico dos
dois gestos é muito diferente, tanto mais que a
obra de Julião Sarmento comporta sentidos de uma sexualidade
muito forte.
Silvestre Pestana participou na primeira caixa
«Pipxou» com fotografias de
uma performance com néons, agora exibidas também
em Serralves. Outros, os azuis, temo-los em slide show no Triplov.
O principal motivo de estes artistas trazerem
Ernesto de Sousa à minha mente, para além, claro,
do afeto à obra de ambos que ele manifestava, é
a questão do novo. Nem sei se tal assunto estará
ainda em voga, parece antiquado vir hoje, em
2016, falar do novo em arte. Embaraça-me a
questão, digo com franqueza. Paciência, não
vim aqui fazer um discurso para me situar numa linha da frente
que deixou de se chamar vanguarda, sim para
dizer que estou viva, atuante, presente, e
acompanho os amigos e companheiros sempre que
posso.
Então, o novo é terrível, porque o seu destino
está traçado. E quando o novo se apropria das
novas tecnologias - o novo consegue-se de
maneiras várias, eu costumo falar dos híbridos,
muito menos perigosos do que se pensa, pelo
contrário - a arte, acoplada a essas novas
tecnologias, fica dependente delas. Um telefone
dos anos setenta data a obra que o usa, a lata
de sopa de Andy Wharol é uma peça de museu, o
recurso a materiais perecíveis, como o papel de
jornal, conta com a desintegração rápida da
obra, e apetece-me recordar um episódio pessoal,
o da obra de arte comestível que o Ernesto de
Sousa me desafiou a compor - uma belíssima tarte
de maçã que esteve anos exposta numa parede de
sua casa até que um dia a Isabel Alves informou,
para meu desapontamento, que a excelsa obra de
arte tinha caído ao chão desfeita em pó.
O recurso à tecnologia é próprio de Silvestre
Pestana, que manifesta também o uso da
hibridação, no caso com a ciência, quando
organiza quadros sobre papel milimétrico com
pequenos utensílios de secretária, por exemplo.
Híbrido também o trabalho que recorre à música e
ao filme em vídeo. Tudo isto cria cenários
interativos que às vezes se dimensionam como
ficção científica, e aqui a ciência e a
tecnologia assumem o seu maior esplendor para a
amante que sou dos néons de Silvestre Pestana.
Todos estes artifícios vão desaparecer, sob a
pressão de tecnologias sempre mais novas, porém
há artistas, como Julião Sarmento e Silvestre
Pestana, que conseguem ultrapassar a efemeridade
de materiais pobres e funcionalmente
ultrapassados no seu enquadramento de vida real.
Silvestre Pestana tem a seu favor, não o néon,
sim a luz. Mais forte que o pensamento, em
Julião Sarmento, o que alicerça a sua obra é a
paixão. |
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Em baixo, imagens da
exposição de Silvestre Pestana
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A participação de Silvestre Pestana na caixa
Pipxou é uma foto desta série. |
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