1:3
Senhor, venha agendar
sua morte em terra tropical de avícola belezura. Venha entre
morenas índias com cachos de tetas murchas, venha entre os bagos
vermelhos conhecer os pentelhos inexistentes indígenas. Venha
morrer como fazemos há meio milênio, pois não faltarão
modalidades na copa dos corpos importados. Morrer de noite de
susto de dengue de pressa de sangue de tiro. Aqui se morre
feliz. Se morre depressa. Se morre com a benção da carcaça
corrupta que esvaziou o versículo da bíblia da camisinha da
traveca sem remédio no posto logo de manhã no assalto do resíduo
minério. Venha que afundo sua língua na minha serra pelada de
entranhas sem sombra. O corpo da menina custa o que custa uma
cerveja gelada, e estamos conversados. Sua olímpica morte, seu
dinheiro compra tanto aqui. Venha de viés que há de durar sua
oblíqua impressão. Venha para a apoteose do saci no saguão do
aeroporto; apenas um par de moedas pelo cheiro de merda, e todo
um rio de janeiros. Em que mais posso ajudá-lo, senhor? Aceita
uma boceta com maconha, um filé de bronha, um rabo de leite ou
prefere ver o menu? Nós aceitamos convênios, nós assinamos
contratos. Venha para morrer encostado, com seu dinheiro e seu
tédio. Nós podemos lhe satisfazer por dias a fio, até sua carne
ficar molinha para nós.
1:6
Amo meu país, seus
quadris prazenteiros, habilidosos em capturar o mais volátil
capital. Amo cada miss que derrota uma venezuelana; amo quem
conquista a cobiça, com uma cruzada roliça, cada infiel que
passou. Não há volatilidade. Não há. Foram anos dividindo para
todos. E se hoje falta, um exército de putas há de prover
carestias. Pátria grande, eu te evoco, dos pipocos que ouço do
Morro dos Macacos, dos arrepios que tenho no sovaco da mulher
amada, que a ordem há de imperar, que o os morros serão
pacificados e a bala será detida em seu voo pela fé do pastor.
Eu prometo, nunca mais molharei a mão da polícia, nem farei gato
de água, luz e internet. Observo cada mandamento de Deus. E com
a vizinha já não me engraçarei, uma ou duas vezes na semana,
porque respeito o compadre Jackson, jornalista bem informado,
que nunca mais fará matéria sobre boi zebu. E o fiofó de Eulália
não mais comercializarei. Desde que o rábula sacripanta se
apropriou de nós, entendi o sentido de mim, e lhe faço
oferendas, comunistas em bandejas de prata, para que o novo
patriarca nos possa prover. E nesta nova pátria é que quero
morrer, contente e contrito, de braços dados com o Juiz a quem
dirijo grito, prece e o rabo guloso de minha irmã. Assim será a
terra de Jubiabá, ancas para os governantes e dedicação infinita
para nós.
3:2
Como vota o senhor
deputado, nobre colega, meu correligionário? Pela família, pela
Igreja, por Deus, pela Nação. Voto pelos meus eleitores, da
minha cidade, pelo meu bairro, minha rua, pelo destino
financeiro dos meus filhos, pela manutenção das nossas terras,
porque hoje é um dia feliz, em que vamos tirar o país da mão dos
bandidos, que assaltaram nossos cofres, que criaram um rombo e
desemprego, que botaram discussões de gênero nas escolas, que
redistribuíram renda aos miseráveis que não trabalham. Vamos
escorraçar esta corja. E eu voto, com a consciência, com as mãos
limpas, por um novo tempo, porque defendo as esperanças, para
nossas crianças, pelo estado do tempo, pelos peixes dos rios,
pelas filas de formigas que rumam ao formigueiro, pelo mosquito
da dengue, que não vai mais picar nenhum brasileiro, pelo fim da
companheirada, das esquerdas, eu voto sem medo, eu voto com a
mão do grande herói nacional, Coronel Ustra, nosso salvador, eu
voto contra os gays que emporcalham nossas mentes, eu voto pela
tortura, pelo exército, eu voto consciente de que os fracos não
perseverem, eu voto pela livre iniciativa, pela natureza, pela
vida, eu voto com uma pistola em riste, neste dia feliz, pelas
forças armadas que hão de conduzir a nação. Eu voto com
convicção, sem desejo, sem dúvida, sem sim e sem não. Eu não
acredito em voto: eu mando, eu mato.
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Wilson
Alves-Bezerra é escritor, crítico literário, tradutor e
professor do Departamento de Letras da Universidade Federal de
São Carlos (Brasil), onde atua na graduação em Letras e na
pós-graduação em Estudos de Literatura. Atualmente é Coordenador
de Cultura da universidade. É doutor em literatura comparada
pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, mestre em língua
espanhola e literaturas espanhola e hispanoamericana pela
Universidade de São Paulo. Tem um livro de contos - Histórias
Zoófilas e outras atrocidades (EDUFSCar / Oitava Rima, 2013) e
outro de poemas, Vertigens (Iluminuras, 2015). Traduziu dois
romances do argentino Luis Gusmán – Pele e Osso (2009) e Hotel
Éden (2013), ambos pela Iluminuras; sua tradução de Pele e Osso
foi finalista do Prêmio Jabuti 2010 na categoria Melhor tradução
literária espanhol-português. Traduziu ainda três livros de
contos do uruguaio Horacio Quiroga: Contos da Selva (2007),
Cartas de um caçador (2007) e Contos de amor de loucura e de
morte (2014), todos pela Iluminuras. Como ensaísta, lançou
Reverberações da fronteira em Horacio Quiroga (Humanitas/FAPESP,
2008) e Da Clínica do Desejo a sua escrita (Mercado de
Letras/FAPESP, 2012). Como resenhista na área de literatura tem
textos publicados nos suplementos literários dos jornais O
Globo, O Estado de São Paulo, Zero Hora, Jornal do Brasil, além
do mexicano El Universal. Atualmente colabora também com a
revista argentina Los Inútiles (de siempre). O texto "Da
cremação de Herberto Helder" fará parte do livro Romã sem rosto,
de lançamento próximo.
Links pessoais:
facebook.com/historiaszoofilas
https://youtu.be/jdbrLUn0R98
https://youtu.be/INbNTCBJpM8
https://youtu.be/L8h61wrfqJ0
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