REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


NS | número 59 | julho-agosto | 2016

 
 



MAURÍCIO SILVA &
MÁRCIA FUSARO
Organizadores

MIA COUTO

Uma literatura entre palavras
e encantamentos


São Paulo, 2011

ÍNDICE

O romance Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra e a moçambicanidade literária em Mia Couto

THIAGO LAURITI*

Quando já não havia outra tinta no mundo:
o poeta usou do seu próprio sangue.
Não dispondo de papel,
ele escreveu no próprio corpo.
Assim, nasceu a voz, o rio
em si mesmo ancorado.
Como o sangue: sem foz nem nascente

(Mia Couto,
Lenda de Luar-do-Chão)

 

 O presente artigo não pretende ser uma exaustiva análise da riquíssima obra Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, de Mia Couto, um dos mais importantes autores da África de hoje, mas sim uma análise dos traços da moçambicanidade nela existentes.

Partimos da ideia de que é a busca pela identidade individual e coletiva no contexto moçambicano que mobiliza o movimento narrativo, ligado à recorrente atitude estética do autor, sempre presente nos seus livros, de apresentar a dicotomia entre a tradição e a modernidade. Esta se configura como a hipótese central deste trabalho e o seu fio condutor. A explicitação do enredo, que falaremos no item a seguir, talvez esclareça melhor o que se acaba de esboçar.

A tradição (Dito Mariano: “o munumuzama”, o patriarca) e a modernidade (seu neto/filho Marianinho) vão se confrontar e se alimentar miticamente, no decorrer da obra inteira. O passado e o presente (que é embrião do futuro) amalgamam-se na obra “o tempo atrás eu vou matando. Não quero isso atrás de mim” (COUTO, 2003, p. 259). O antigo revela-se ao novo em meio a inúmeros dilemas e contradições na busca da identidade nacional, por meio da compreensão da tradição e da memória coletiva, muito embora o próprio Mia Couto declare que “a identidade não existe, é uma procura infinita” (COUTO, 1998). É o metaforizado ato da escritura (das cartas) um dos possíveis caminhos que Mia Couto utiliza para auxiliar na construção da identidade nacional, como se vê no seguinte trecho: “Eu dou as vozes, você dá a escritura” (COUTO, 2003, p. 65).

Moçambique, depois de anos de cativeiro, conseguiu a independência e a autonomia por que tanto esperava e, a partir daí, iniciou a reconstrução de sua identidade própria, pela volta ao passado e às tradições, buscando o que lhe era inato e relegando a um plano inferior as características da escrita ocidental, por essa razão percebe-se uma oralidade própria e muito marcante na obra sob análise. A africanidade, assim, nasce do choque cultural com a metrópole e configura-se pela procura do que é autêntico, das origens e pela rejeição a tudo o que é colonial. Mia Couto, situado em um marco literário pós-colonial, aparece identificado com essa busca, isto é, marcado por uma africanidade (ligada à moçambicanidade) que se opõe à ideia de europeidade.

 

Mia Couto e a obra Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra

É unânime o reconhecimento da crítica ao considerar Mia Couto um dos mais importantes autores africanos da atualidade. No livro Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, o jovem estudante universitário Marianinho retorna à sua terra natal, Luar-do-Chão, depois de viver por longos anos afastado da ilha, para enterrar seu avô Dito Mariano. Ao voltar, entretanto, sente-se estrangeiro entre os seus e em sua casa. Há, durante toda trama, indícios que levam o leitor a perceber que a sua busca pela identidade perdida é, na verdade, uma procura infinita que não terminará nunca.

Enquanto viveu na cidade, longe da ilha, transformou-se em um “mulango”, vale dizer, assumiu os hábitos dos brancos e agora não se reconhece mais entre a sua raça. Essa divisão entre os mundos pode ser observada já a partir da chegada de Marianinho à ilha:

 

Quando me dispunha a avançar, o Tio me puxa para trás, quase violento. Ajoelha-se na areia e, com a mão esquerda, desenha um círculo no chão. Junto à margem, o rabisco divide os mundos – de um lado a família; do outro, nós, os chegados”. (COUTO, 2003, p. 26)

 

Trata-se de um metafórico regresso, um verdadeiro ritual de passagem do protagonista que volta para presenciar e coordenar o cerimonial da morte de seu avô que, na realidade, descobrirá que é seu pai, mas que possibilitará o seu reencontro com suas raízes e um renascimento tanto familiar quanto pessoal.

Por ser o neto favorito do patriarca – Dito Mariano (o “munumuzana”, isto é, o homem mais velho da família) – o protagonista recebe a incumbência de dirigir as cerimônias fúnebres do avô, que se recusa a ser enterrado antes de revelar uma série de intrigas e segredos familiares que envolvem os outros personagens do livro: seu pai, Fulano Malta; sua avó Dulcineusa; seus tios Abstinêncio, Ultímio e Admirança (que descobrirá ser sua verdadeira mãe) e Maravilhosa (já morta e que ele julgava ser sua mãe). Não era apenas Marianinho que estava indo aos funerais no Luar-do-Chão, era toda a família: “A ilha era a nossa origem, o lugar primeiro do clã, os Malilanes. Ou, no aportuguesamento: os Marianos” (COUTO, 2003, p. 18).

Além desse clã aparecem outros personagens que ajudam a delinear a trama como: a cega Miserinha (amante de Dito Mariano), o médico indiano Amílcar Mascarenha que é chamado para atestar a morte do patriarca; o padre Nunes, o sacerdote português que vivia na ilha; o velho ferroviário, João Loucomotiva que tresloucado vivia perambulando pelo local; o feiticeiro e adivinho Muana Wa Nuveti, os padrinhos portugueses (Frederico Lopes e Maria da Conceição Lopes); além do coveiro Curozero Muando e sua irmã Nyemberli e o velho João Sabão assassinado misteriosamente na ilha.

Todos esses personagens gravitam em torno da morte de Dito Mariano que permanece estranhamente semimorto, já que embora declarado “clinicamente morto”, não o está definitivamente por desígnios que escapam à compreensão dos familiares e dos demais personagens. Marianinho tem a missão de enterrar o avô, que se recusa a morrer e ser enterrado, antes de conseguir reconstruir a história de sua família. Trata-se do passado que se recusa a ser enterrado.

Nesse processo de reconstrução histórico-familiar, Marianinho torna-se o guardião da memória e das tradições de Luar-do-Chão e chega até a remover o metafórico telhado de Nyumba-kaya, nome da casa da família, durante os dias do velório para manter o costume local.

Durante sua permanência na ilha, o protagonista recebe uma série de cartas anônimas que o ajudam a refazer o histórico familiar dos Malilanes e que metaforicamente teriam sido escritas pelo próprio avô semimorto:

 

Estas cartas, Mariano, não são escritos. São falas. Sente-se, se deixe em bastante sossego e escute. Você não veio a esta ilha para comparecer perante um funeral. [...] Você cruzou essas águas por motivo de nascimento. Para colocar nosso mundo no devido lugar. Não veio salvar o morto. Veio salvar a vida, a nossa vida. Todos aqui estão morrendo não por doença, mas por demérito de viver [...]. Esse é o serviço que vamos cumprir aqui, você e eu, de um e outro lado das palavras. Eu dou as vozes, você dá a escritura. Para salvarmos Luar-do-Chão, o lugar aonde ainda vamos nascendo. E salvarmos nossa família, que é o lugar onde somos eternos” (COUTO, 2003, p. 64-65).

 

As sucessivas cartas anônimas que progressivamente ele vai recebendo guiam Marianinho a investigar e entender a morte inacabada do avô e de um crime e do assassinato de João Sabão que mantém sob suspeição os habitantes da ilha. Ele percebe que todos os habitantes da ilha têm um segredo a revelar, tanto o coveiro Curozero Muando e sua irmã, quanto o Padre Nunes, seus padrinhos o casal Lopes, a cega Miserinha, o doutor Mascarenhas e, principalmente, os membros de sua família.

O patriarca não pode ser enterrado antes de o neto ressignificar a história do clã e saber toda a verdade que está encoberta. É preciso “destelhar a casa” para que a história verdadeira possa eclodir:

 

Mariano, esta é sua urgente tarefa: não deixe que completem o enterro. Se terminar a cerimônia você não receberá as revelações [...]. Essas cartas são o modo de lhe ensinar o que você deve saber. Neste caso, não posso usar os métodos da tradição: você já está longe dos Malilanes e seus xicuembos. A escrita é a ponte entre os nossos e os seus espíritos. Uma primeira ponte entre os Malilanes e os Marianos [...]. Alguns parentes vão querer abreviar este momento. Não deixe que isso aconteça. A sua tarefa é repor as vidas, endireitar os destinos dessa nossa gente. Cada um tem seus segredos, seus conflitos. Lhe deixarei conselhos para guiar as condutas dos seus familiares” (COUTO, 2003, p 125-126).

 

Cabe ao protagonista resistir à heterogeneidade dos tempos-espaços e tranquilizar os espíritos que habitam Luar-do-Chão e o rio Madzimi, já que ao regressar Mariano pôde testemunhar a ação de destruição que esse tempo mítico exerce sobre o espaço. Tudo é miséria, decadência e abandono das tradições, forçando-o a assumir a missão de encontrar um caminho para salvar a sua terra que é também a sua raça, sua gente, sua história e a si próprio. É esse o belíssimo projeto fabulístico que Mia Couto utiliza para propor, por intermédio de seu protagonista, a necessidade de resgate e reconstrução da África pós-colonial, que não se refere apenas à metáfora política, mas também ao resgate da própria identidade e destino humanos. Por essa razão, na última carta de Dito Mariano, quando consegue ser enterrado, ele faz sua última revelação:

 

“Você, meu neto, cumpriu o ciclo de visitas. E visitou casa, terra, homem, rio: o mesmo ser, só diferindo em nome [...]. Lhe contei tudo sobre sua família, desfiz o laço da mentira. Agora, já não arrisco ser emboscado pelo segredo. O caçador lança fogo no capim por onde vai caminhando. Eu faço o mesmo com o passado. O tempo para trás eu o vou matando. Não quero isso atrás de mim, sei de criaturas que se alojam lá, nos tempos revirados [...]. Você é meu filho. Meu maior filho, pois nasceu de uma amor sem medida. Por isso não o escolhi para cerimoniar minha passagem para a outra margem. Você se escolheu sozinho, a vida escreveu no seu nome o meu próprio nome” (COUTO, 2003, p. 259-260).

 


A moçambicanidad
e (1)
literária em Mia Couto

A moderna literatura moçambicana elegeu a questão da busca da identidade cultural como “locus” privilegiado de seu projeto estético. O contexto, as linguagens e a atitude estética dos escritores variam, mas a condição cultural do moçambicano é sempre tema recorrente dessa literatura.

Segundo Joana Faria, o conceito de moçambicanidade literária,

 

“ressalva o que é autêntico, a cultura ancestral moçambicana, o culto dos antepassados, a vida tribal e indígena, entre outros aspectos, preponderando às formas de vida originais deste país africano sobre o mundo racional europeu” (FARIA, 2005, p. 16).

 

Já para Laranjeira (1995, p. 268), a moçambicanidade literária é definida como uma literatura de “produção e promoção do nativismo (2), do telurismo (3) e do casticismo (3)”, das raízes e da cultura que emolduram o estilo de vida do moçambicano, ou seja, uma literatura dotada de “construção ideológica determinada, como todas as ideologias”, conforme afirma Mendonça (1995, p. 37). Portanto, podemos considerar que a moçambicanidade literária foi um exercício espontâneo de escritores moçambicanos, motivados pelo anseio da afirmação de uma identidade nacional legítima através da ruptura com os modelos literários portugueses.

A questão da moçambicanidade literária também é explorada por Matusse (1998) que não a vê desligada da essência da africanidade. O autor defende que a literatura moçambicana em Língua Portuguesa constitui-se, como as demais literaturas africanas, a partir da tradição literária europeia. A consciência da alteridade traz a necessidade de os intelectuais romperem com os modelos herdados e procurar novos caminhos para firmar a sua diferença. Assim, “dada a circunstância de se tratar de uma literatura gerada no prolongamento da literatura e cultura portuguesas, a construção da moçambicanidade literária deve ser vista como uma negação da portugalidade” (MATUSSE, 1998, p. 74).

Gilberto Matusse (1998) destaca quatro domínios na construção da imagem de moçambicanidade: o primeiro refere-se à subversão ou dessacralização dos símbolos da cultura de referência; o segundo caracteriza-se pela oposição ao espírito de assimilação, recuperando os valores que são negados e postos em confronto com os valores nativos; o terceiro aponta para a adoção de modelos literários diferentes dos modelos portugueses para marcar essa diferença, concomitantemente a uma filiação ao movimento de emancipação das culturas; e, finalmente, a reprodução de formas consagradas pela crítica como características da moçambicanidade.

Dessa forma, a imagem de moçambicanidade é definida por Matusse (1998) como uma prática literária em que seus autores estão inseridos em um sistema originalmente de tradição literária portuguesa, mas que são movidos pelo desejo de afirmar uma identidade própria, por meio de estratégias textuais que representem uma ruptura com essa referência. O objetivo recorrente é, portanto, marcar a diferença filosófica, ética e estética da literatura nacional.

 

Se a africanidade surge do choque cultural com Portugal e caracteriza-se pela busca da diferença com o que é nativo, rejeitando tudo o que é colonial, a moçambicanidade está marcada pelo conceito de autonomia e pelo anseio de reconfiguração cultural.

 

Nesse contexto, insere-se Mia Couto que é um exemplo dessa moçambicanidade que nasce na década de 50 com José Craveirinha. A partir dos primeiros anos de guerrilha de, 1964 até 1975, com a libertação da colônia, surge a segunda geração da qual Craveirinha é mentor e ainda participante ativo, seguida pela terceira geração, que abrange as décadas de 80 e 90, a qual pertence o autor sob estudo.

 

Mia Couto faz ecoar as tradições de Moçambique e traz inovação literária, por meio do hibridismo e da recriação conferida à linguagem que exercita em suas obras. Com ele, à semelhança do que faz Guimarães Rosa na literatura brasileira, surgem os neologismos, a livre criatividade da palavra e a observação crítica da realidade moçambicana.

 

É nesse cenário, que as diversas culturas e raças ganham expressão, que a tradição e o novo se confrontam e é possível entender os contornos do que se vem chamando de “moçambicanidade”.

 

É por meio de sua palavra poética que o leitor pode perceber a energia do seu país e a força do seu mundo, em relação ao qual ele se sente cúmplice do sofrimento e da luta de um povo.

 

O eixo vertebral da escrita de Mia Couto, no qual se insere o embrião da sua moçambicanidade, é a representação da oralidade desse povo em que a memória e a tradição constituem a base da diferença que expressa. Por meio da inovadora linguagem que emprega na obra Um rio chamado tempo uma casa chamada terra, Mia Couto dá voz a Moçambique de hoje e procura um sentido para o cenário que o rodeia. Nessa obra, constata-se uma narrativa rica em poesia e neologismos que surgem da aglutinação entre o português e os dialetos de Moçambique, que o faz recorrer ao discurso popular e à intertextualização da oralidade. Constituem-se como temas do livro sob análise: o amor à terra, a busca da identidade não encontrada, a importância da memória, a procura da voz da terra, o respeito à ancestralidade, a centralidade do tempo, a esperança no futuro, o respeito à alteridade e também a discrepância entre o parecer e o ser.

 

É relevante observar, também, que em Mia Couto tudo o que é natural e original assume grande importância; por essa razão, para produzir diferentes configurações da ideia de nação, o autor utiliza de forma recorrente as forças essenciais do mundo: a água, o ar, o fogo e a terra como imagens que simbolizam diferentes conceitos dos quais trataremos no item a seguir.

A identidade africana expressa pelas forças da natureza e pelo tempo, em Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra

As referências ao rio Madzimi, à chuva, ao céu, ao vento, às árvores, ao fogo e à terra que se recusa a receber um morto, à casa Nyumba-kaya e ao tempo são referências recorrentes nessa obra e servem como suportes metafóricos, quase alegóricos, usados como referências à identidade africana.

 

O tempo, metaforizado pelo rio, é um elemento essencial no livro e não se refere apenas ao “chrònos”, entendido como o tempo mensurável, mas, sobretudo ao “kairòs”, isto é, ao tempo mítico da fruição humana que ressalta o poder da memória coletiva e da aprendizagem por que passa Marianinho, estabelecendo a dualidade entre o antes e o depois, o passado, em detrimento do presente e do futuro que está por ser construído: “O rio é como o tempo! Nunca houve princípio, concluía. O primeiro dia surgiu quando o tempo já se havia estreado” (COUTO, 2003, p. 61). Nesse fragmento, antevê-se uma óptica que opõe ao tempo cronológico, que é cíclico, o tempo kairótico da eterna reconstrução humana. Os personagens vivem em outro tempo, o da fruição, o da busca da identidade nacional, que está latente antes dos tempos cronológicos, só possível de ser alcançado através dos elementos naturais.

 

A água é outro elemento recorrente na obra e talvez possa estar relacionada com a origem do mundo e com a maternidade, com a matriz essencial para a existência do homem. Trata-se da simbologia mais fortemente marcada no livro, sob a forma do rio ou da chuva, metaforizando talvez a pureza, a limpeza e a purificação que o processo de autoconhecimento humano deve trazer:

 

Nenhum país é tão pequeno como o nosso. Nele só existem dois lugares: a cidade e a ilha. A separá-los, apenas um rio. Aquelas águas, porém, afastam mais do que a própria distância. São duas nações mais longínquas que planetas. Somos um povo, sim, mas de duas gentes, duas almas” (COUTO, 2003, p.18).

 

Nesse fragmento, é possível perceber que o rio (água) simboliza a força capaz de reestruturar uma nação perdida no tempo, mas também o elemento que separa e denuncia divergências culturais. O rio foi responsável pela morte de sua mãe, que morreu afogada para poder redimir-se de seus pecados. A mesma função apresenta a chuva no trecho: “Desde o funeral que não pára de chover. Nos campos, a água é tanta que os charcos se cogumelam aos milhares” (COUTO, 2003, p. 243). Somente depois de descoberta a verdadeira história do protagonista, quando ele já está purificado, a chuva cessa, pois não é mais necessária.

 

O avô, Dito Mariano, também insiste em ser enterrado próximo ao rio:

 

Me leve para o rio. Já chegou o meu tempo [...] Pois eu quero ser enterrado junto ao rio. É lá que deverei ser enterrado. Eu sou um mal-morrido. Já viu chover nestes dias? Pois sou eu que estou travando a chuva. Por minha culpa, a lua, mãe da chuva, perdeu a gravidez. Sabe Marianinho? Quando você nasceu eu lhe chamei de ‘água’. Mesmo antes de ter nome de gente, essa foi a primeira palavra que lhe ditei: madzi. E agora lhe chamo outra vez de ‘água’. Sim, você é a água que me prossegue onda sucedida em onda, na corrente do viver” (COUTO, 2003, p. 238).

 

É essa metáfora de continuidade de vida, de força, de luta e de purificação que acompanha a imagem da água durante todo o livro, transmitindo também a ideia de recomeço, de esperança como resultado natural da desgraça.

 

E, finalmente, a terra é outro elemento simbólico que aparece repetidas vezes, neste livro de Mia Couto, para simbolizar a base, o chão, a estrutura que prende Marianinho às suas raízes, àquilo que o país foi e que se deve preservar.

 

No livro, está presente a ideia de que a terra associada à casa Nyumba-kaya é o porto seguro de Marianinho e contempla afundo todos os demais elementos: rio, mar, homem: “Você, meu neto, cumpriu o ciclo de visitas. E visitou terra, homem, rio: o mesmo ser, só diferindo em nome. Há um rio que nasce dentro de nós, corre por dentro da casa e deságua não no mar, mas na terra. Esse rio uns chamam de vida” (COUTO, 2003, p. 258).

 

A vida de todos os personagens passa pela casa, metáfora da continuidade e do retorno às origens. É somente pelo empoderamento e reconquista da própria história que se torna possível recuperar a identidade. O protagonista percebe que a terra/casa lhe pertence que ele é a própria casa e não será preciso “vendê-la” a estranhos, porque o chão tem de ser preservado e amado, para que ocorra a continuidade da existência de um povo:

 

Essa casa nunca será sua, Tio Ultímio. – Ai não?! E porquê, posso saber? – Porque essa casa sou eu mesmo. O senhor vai ter que comprar a mim para ganhar posse da casa. E para isso, Tio Ultímio, para isso nenhum dinheiro é bastante!” (COUTO, 2003, p. 249). 

Considerações finais

O bom do caminho é haver volta. Para ida sem vinda
basta o tempo” (COUTO, 2003, p. 123)
.

 

Este artigo não se propôs à tarefa de ser um estudo exaustivo da obra de Mia Couto, mas uma reflexão direcionada para os índices de moçambicanidade presentes em Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, que pudessem delinear, contextualizadamente, a busca da identidade nacional na obra estudada. Tal objetivo foi alcançado.

Não é de se espantar que o Realismo Maravilhoso de Mia Couto gere simpatia em seus leitores, pela simplicidade com que retrata a busca da identidade de Moçambique. O autor trabalha ludicamente com as palavras e expõe uma visão simples do mundo que transporta o leitor para a singeleza do enredo que apresenta. Ele parece ser o mediador entre as histórias que ouve e o leitor que as consome, colocando sua escrita como fomentadora de sonhos.

 

Em certos momentos, o leitor sente-se Marianinho ao ler as cartas de seu avô: “Aquelas cartas me fizeram nascer um avô mais próximo, mais a jeito de ser meu. Pela sua grafia em meus dedos ele se estreava como pai e eu renascia em outra vida”. (COUTO, 2003, p. 257).

 

Se os manuscritos de Dito-Mariano cumpriram sua missão, o livro de Mia Couto também o faz, pois converte o leitor em um viajante entre esses mundos fabulísticos que o texto apresenta e a realidade.

 

Utilizando polifonicamente as palavras do patriarca, concluímos que o leitor que visita essa obra “encontrará não a folha escrita, mas um vazio que você mesmo irá preencher com suas caligrafias”, pois há grandeza em sua palavra pontuada por espaços que ele nunca tocou...mas sugeriu...

Referências bibliográficas

COUTO, Mia. “Escrita desarrumada”. Folha de São Paulo, São Paulo, 18 de novembro de 1998.

COUTO, Mia. Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra. São Paulo, Companhia da Letras, 2003.

FARIA, Joana Daniela Vilaça. “Mia Couto-Luandino Vieira: uma leitura em travessia pela escrita criativa ao serviço das identidades”. Braga, Universidade do Minho, 2005 (Dissertação de Mestrado).

HOUAISS, Antonio. Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa (cd-rom). Rio de Janeiro, Objetiva, 2001.

LARANJEIRA, Pires. Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa. Lisboa, Universidade Aberta, 1995.

LEITE, Fábio. "Valores civilizatórios em sociedades negro-africanas". África: Revista do Centro de Estudos Africanos. São Paulo, Universidade de São Paulo, 1995/1996, p.103-118.

MATUSSE, Gilberto. A construção da Moçambicanidade em José Craveirinha, Mia Couto e Ungulani Ba Khosa. Maputo, Livraria Universitária/UEM, 1998.

MENDONÇA, Fátima. “A Literatura Moçambicana em Questão”. Discursos: Literaturas Africanas e Língua Portuguesa, Coimbra, Universidade Aberta, No. 09: 37-40, 1995.

*Doutorando e Mestre em Letras com foco em Literatura Infanto-Juvenil e Educação (FFLCH-USP). Especialista em Direito Constitucional (Direitos Humanos) pela Faculdade Autônoma de Direito (FADISP) e em Psicopedagogia Clínica e Institucional (UNINOVE). Bacharel em Direito e licenciado em Pedagogia (UNINOVE). Professor de ensino superior (UNINOVE) e colaborador dos grupos de pesquisa Tempo-Memória: Educação, Literatura e Linguagens (UNINOVE/CNPq) e Literatura Infantil/Juvenil e Sociedade (FFLCH-USP).

(1) A primeira vez que a palavra moçambicanidade surgiu foi nos jornais O Africano (1909-1918), O Brado Africano (1918) e O Itinerário (1919), fundados pelos irmãos José e João Albasini.

(2) A palavra nativismo se refere a “atitude ou política de favorecer os habitantes nativos de um país” (Cf. Dicionário Etimológico Houaiss).

(3) A palavra telurismo se refere a “influência do solo de uma região sobre o caráter e os costumes de seus habitantes” (Cf. Dicionário Etimológico Houaiss).

(4) A palavra casticismo se refere a “pureza e/ou perfeição de linguagem; vernaculismo” (Cf. Dicionário Etimológico Houaiss).

 

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