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						MAURÍCIO SILVA &  
						MÁRCIA FUSARO 
						
				Organizadores 
				 
				MIA COUTO 
						
				 
				Uma literatura entre palavras 
						 
						e encantamentos 
						 
						 
				São Paulo, 2011 
						 
						
				
				ÍNDICE 
				
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				 O romance 
				 Um rio 
				chamado tempo, uma casa chamada terra e a moçambicanidade 
				literária em Mia Couto 
				 
				THIAGO LAURITI* 
				
				 
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				“Quando já não 
				havia outra tinta no mundo:  
				o poeta usou do seu próprio sangue.  
				Não dispondo de papel,  
				ele escreveu no próprio corpo.  
				Assim, nasceu a voz, o rio  
				em si mesmo ancorado.  
				Como o sangue: sem foz nem nascente”  
				(Mia Couto,  Lenda de Luar-do-Chão) 
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				  O presente artigo não 
				pretende ser uma exaustiva análise da riquíssima obra Um rio 
				chamado tempo, uma casa chamada terra, de Mia Couto, um dos 
				mais importantes autores da África de hoje, mas sim uma análise 
				dos traços da moçambicanidade nela existentes. 
				
				 
				
				Partimos da ideia de que é a busca pela identidade 
				individual e coletiva no contexto moçambicano que mobiliza o 
				movimento narrativo, ligado à recorrente atitude estética do 
				autor, sempre presente nos seus livros, de apresentar a 
				dicotomia entre a tradição e a 
				modernidade. Esta se configura como a hipótese 
				central deste trabalho e o seu fio condutor. A explicitação do 
				enredo, que falaremos no item a seguir, talvez esclareça melhor 
				o que se acaba de esboçar. 
				
				 
				A tradição (Dito Mariano: “o munumuzama”, o 
				patriarca) e a modernidade (seu neto/filho Marianinho) vão se 
				confrontar e se alimentar miticamente, no decorrer da obra 
				inteira. O passado e o presente (que é embrião do futuro) 
				amalgamam-se na obra “o tempo atrás eu vou matando. Não 
				quero isso atrás de mim” (COUTO, 2003, p. 259). O antigo 
				revela-se ao novo em meio a inúmeros dilemas e contradições na 
				busca da identidade nacional, por meio da compreensão da 
				tradição e da memória coletiva, muito embora o próprio Mia Couto 
				declare que “a identidade não existe, é uma procura 
				infinita” (COUTO, 1998). É o metaforizado ato da 
				escritura (das cartas) um dos possíveis caminhos que Mia Couto 
				utiliza para auxiliar na construção da identidade nacional, como 
				se vê no seguinte trecho: “Eu dou as vozes, você dá a 
				escritura” (COUTO, 2003, p. 65). 
				
				 
				
				Moçambique, depois de anos de cativeiro, conseguiu a 
				independência e a autonomia por que tanto esperava e, a partir 
				daí, iniciou a reconstrução de sua identidade própria, pela 
				volta ao passado e às tradições, buscando o que lhe era inato e 
				relegando a um plano inferior as características da escrita 
				ocidental, por essa razão percebe-se uma oralidade própria e 
				muito marcante na obra sob análise. A africanidade, assim, nasce 
				do choque cultural com a metrópole e configura-se pela procura 
				do que é autêntico, das origens e pela rejeição a tudo o que é 
				colonial. Mia Couto, situado em um marco literário pós-colonial, 
				aparece identificado com essa busca, isto é, marcado por uma 
				africanidade (ligada à moçambicanidade) que se opõe à ideia de 
				europeidade. 
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				Mia Couto e a obra 
				Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra 
				
				 
				
				É unânime o reconhecimento da 
				crítica ao considerar Mia Couto um dos mais importantes autores 
				africanos da atualidade. No livro Um rio chamado tempo, uma 
				casa chamada terra, o jovem estudante universitário 
				Marianinho retorna à sua terra natal, Luar-do-Chão, depois de 
				viver por longos anos afastado da ilha, para enterrar seu avô 
				Dito Mariano. Ao voltar, entretanto, sente-se estrangeiro entre 
				os seus e em sua casa. Há, durante toda trama, indícios que 
				levam o leitor a perceber que a sua busca pela identidade 
				perdida é, na verdade, uma procura infinita que não terminará 
				nunca. 
				
				 
				Enquanto viveu na cidade, longe da ilha, transformou-se 
				em um “mulango”, vale dizer, assumiu os hábitos dos 
				brancos e agora não se reconhece mais entre a sua raça. Essa 
				divisão entre os mundos pode ser observada já a partir da 
				chegada de Marianinho à ilha: 
				  
				
				“Quando me 
				dispunha a avançar, o Tio me puxa para trás, quase violento. 
				Ajoelha-se na areia e, com a mão esquerda, desenha um círculo no 
				chão. Junto à margem, o rabisco divide os mundos – de um lado a 
				família; do outro, nós, os chegados”. (COUTO, 2003, p. 
				26) 
				
				  
				
				Trata-se de um metafórico regresso, um verdadeiro ritual 
				de passagem do protagonista que volta para presenciar e 
				coordenar o cerimonial da morte de seu avô que, na realidade, 
				descobrirá que é seu pai, mas que possibilitará o seu reencontro 
				com suas raízes e um renascimento tanto familiar quanto pessoal. 
				
				 
				
				Por ser o neto favorito do patriarca – Dito Mariano (o “munumuzana”, 
				isto é, o homem mais velho da família) – o protagonista recebe a 
				incumbência de dirigir as cerimônias fúnebres do avô, que se 
				recusa a ser enterrado antes de revelar uma série de intrigas e 
				segredos familiares que envolvem os outros personagens do livro: 
				seu pai, Fulano Malta; sua avó Dulcineusa; seus tios 
				Abstinêncio, Ultímio e Admirança (que descobrirá ser sua 
				verdadeira mãe) e Maravilhosa (já morta e que ele julgava ser 
				sua mãe). Não era apenas Marianinho que estava indo aos funerais 
				no Luar-do-Chão, era toda a família: “A ilha era a nossa 
				origem, o lugar primeiro do clã, os Malilanes. Ou, no 
				aportuguesamento: os Marianos” (COUTO, 2003, p. 18). 
				
				 
				
				Além desse clã aparecem outros personagens que ajudam a 
				delinear a trama como: a cega Miserinha (amante de Dito 
				Mariano), o médico indiano Amílcar Mascarenha que é chamado para 
				atestar a morte do patriarca; o padre Nunes, o sacerdote 
				português que vivia na ilha; o velho ferroviário, João 
				Loucomotiva que tresloucado vivia perambulando pelo local; o 
				feiticeiro e adivinho Muana Wa Nuveti, os padrinhos portugueses 
				(Frederico Lopes e Maria da Conceição Lopes); além do coveiro 
				Curozero Muando e sua irmã Nyemberli e o velho João Sabão 
				assassinado misteriosamente na ilha. 
				
				 
				
				Todos esses personagens gravitam em torno da morte de 
				Dito Mariano que permanece estranhamente semimorto, já que 
				embora declarado “clinicamente morto”, não o está 
				definitivamente por desígnios que escapam à compreensão dos 
				familiares e dos demais personagens. Marianinho tem a missão de 
				enterrar o avô, que se recusa a morrer e ser enterrado, antes de 
				conseguir reconstruir a história de sua família. Trata-se do 
				passado que se recusa a ser enterrado. 
				
				 
				
				Nesse processo de reconstrução histórico-familiar, 
				Marianinho torna-se o guardião da memória e das tradições de 
				Luar-do-Chão e chega até a remover o metafórico telhado de 
				Nyumba-kaya, nome da casa da família, durante os dias do velório 
				para manter o costume local. 
				
				 
				
				Durante sua permanência na ilha, o protagonista recebe 
				uma série de cartas anônimas que o ajudam a refazer o histórico 
				familiar dos Malilanes e que metaforicamente teriam sido 
				escritas pelo próprio avô semimorto: 
				  
				
				“Estas cartas, 
				Mariano, não são escritos. São falas. Sente-se, se deixe em 
				bastante sossego e escute. Você não veio a esta ilha para 
				comparecer perante um funeral. [...] Você cruzou essas águas por 
				motivo de nascimento. Para colocar nosso mundo no devido lugar. 
				Não veio salvar o morto. Veio salvar a vida, a nossa vida. Todos 
				aqui estão morrendo não por doença, mas por demérito de viver 
				[...]. Esse é o serviço que vamos cumprir aqui, você e eu, de um 
				e outro lado das palavras. Eu dou as vozes, você dá a escritura. 
				Para salvarmos Luar-do-Chão, o lugar aonde ainda vamos nascendo. 
				E salvarmos nossa família, que é o lugar onde somos eternos” 
				(COUTO, 2003, p. 64-65). 
				  
				
				As sucessivas cartas anônimas que progressivamente ele 
				vai recebendo guiam Marianinho a investigar e entender a morte 
				inacabada do avô e de um crime e do assassinato de João Sabão 
				que mantém sob suspeição os habitantes da ilha. Ele percebe que 
				todos os habitantes da ilha têm um segredo a revelar, tanto o 
				coveiro Curozero Muando e sua irmã, quanto o Padre Nunes, seus 
				padrinhos o casal Lopes, a cega Miserinha, o doutor Mascarenhas 
				e, principalmente, os membros de sua família. 
				
				 
				
				O patriarca não pode ser enterrado antes de o neto 
				ressignificar a história do clã e saber toda a verdade que está 
				encoberta. É preciso “destelhar a casa” para que a história 
				verdadeira possa eclodir: 
				  
				
				“Mariano, esta 
				é sua urgente tarefa: não deixe que completem o enterro. Se 
				terminar a cerimônia você não receberá as revelações [...]. 
				Essas cartas são o modo de lhe ensinar o que você deve saber. 
				Neste caso, não posso usar os métodos da tradição: você já está 
				longe dos Malilanes e seus xicuembos. A escrita é a ponte entre 
				os nossos e os seus espíritos. Uma primeira ponte entre os 
				Malilanes e os Marianos [...]. Alguns parentes vão querer 
				abreviar este momento. Não deixe que isso aconteça. A sua tarefa 
				é repor as vidas, endireitar os destinos dessa nossa gente. Cada 
				um tem seus segredos, seus conflitos. Lhe deixarei conselhos 
				para guiar as condutas dos seus familiares” (COUTO, 2003, 
				p 125-126). 
				  
				
				Cabe ao protagonista resistir à heterogeneidade dos 
				tempos-espaços e tranquilizar os espíritos que habitam 
				Luar-do-Chão e o rio Madzimi, já que ao regressar Mariano pôde 
				testemunhar a ação de destruição que esse tempo mítico exerce 
				sobre o espaço. Tudo é miséria, decadência e abandono das 
				tradições, forçando-o a assumir a missão de encontrar um caminho 
				para salvar a sua terra que é também a sua raça, sua gente, sua 
				história e a si próprio. É esse o belíssimo projeto fabulístico 
				que Mia Couto utiliza para propor, por intermédio de seu 
				protagonista, a necessidade de resgate e reconstrução da África 
				pós-colonial, que não se refere apenas à metáfora política, mas 
				também ao resgate da própria identidade e destino humanos. Por 
				essa razão, na última carta de Dito Mariano, quando consegue ser 
				enterrado, ele faz sua última revelação: 
				  
				
				“Você, meu 
				neto, cumpriu o ciclo de visitas. E visitou casa, terra, homem, 
				rio: o mesmo ser, só diferindo em nome [...]. Lhe contei tudo 
				sobre sua família, desfiz o laço da mentira. Agora, já não 
				arrisco ser emboscado pelo segredo. O caçador lança fogo no 
				capim por onde vai caminhando. Eu faço o mesmo com o passado. O 
				tempo para trás eu o vou matando. Não quero isso atrás de mim, 
				sei de criaturas que se alojam lá, nos tempos revirados [...]. 
				Você é meu filho. Meu maior filho, pois nasceu de uma amor sem 
				medida. Por isso não o escolhi para cerimoniar minha passagem 
				para a outra margem. Você se escolheu sozinho, a vida escreveu 
				no seu nome o meu próprio nome” (COUTO, 2003, p. 
				259-260). 
				  
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				A moçambicanidade (1)
				literária em Mia Couto 
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				 A moderna literatura moçambicana elegeu 
				a questão da busca da identidade cultural como “locus” 
				privilegiado de seu projeto estético. O contexto, as linguagens 
				e a atitude estética dos escritores variam, mas a condição 
				cultural do moçambicano é sempre tema recorrente dessa 
				literatura. 
				Segundo Joana Faria, o conceito de 
				moçambicanidade literária, 
				  
				“ressalva o que é autêntico, a cultura 
				ancestral moçambicana, o culto dos antepassados, a vida tribal e 
				indígena, entre outros aspectos, preponderando às formas de vida 
				originais deste país africano sobre o mundo racional europeu” 
				(FARIA, 2005, p. 16). 
				  
				Já para Laranjeira (1995, p. 268), a 
				moçambicanidade literária é definida como uma literatura de 
				“produção e promoção do nativismo (2), do telurismo (3) e do 
				casticismo (3)”, das raízes e da cultura que emolduram o estilo 
				de vida do moçambicano, ou seja, uma literatura dotada de 
				“construção ideológica determinada, como todas as ideologias”, 
				conforme afirma Mendonça (1995, p. 37). Portanto, podemos 
				considerar que a moçambicanidade literária foi um exercício 
				espontâneo de escritores moçambicanos, motivados pelo anseio da 
				afirmação de uma identidade nacional legítima através da ruptura 
				com os modelos literários portugueses. 
				
				 
				A questão da moçambicanidade literária 
				também é explorada por Matusse (1998) que não a vê desligada da 
				essência da africanidade. O autor defende que a literatura 
				moçambicana em Língua Portuguesa constitui-se, como as demais 
				literaturas africanas, a partir da tradição literária europeia. 
				A consciência da alteridade traz a necessidade de os 
				intelectuais romperem com os modelos herdados e procurar novos 
				caminhos para firmar a sua diferença. Assim, “dada a 
				circunstância de se tratar de uma literatura gerada no 
				prolongamento da literatura e cultura portuguesas, a construção 
				da moçambicanidade literária deve ser vista como uma negação da 
				portugalidade” (MATUSSE, 1998, p. 74). 
				
				 
				Gilberto Matusse (1998) destaca quatro 
				domínios na construção da imagem de moçambicanidade: o primeiro 
				refere-se à subversão ou dessacralização dos símbolos da cultura 
				de referência; o segundo caracteriza-se pela oposição ao 
				espírito de assimilação, recuperando os valores que são negados 
				e postos em confronto com os valores nativos; o terceiro aponta 
				para a adoção de modelos literários diferentes dos modelos 
				portugueses para marcar essa diferença, concomitantemente a uma 
				filiação ao movimento de emancipação das culturas; e, 
				finalmente, a reprodução de formas consagradas pela crítica como 
				características da moçambicanidade. 
				
				 
				Dessa forma, a imagem de moçambicanidade 
				é definida por Matusse (1998) como uma prática literária em que 
				seus autores estão inseridos em um sistema originalmente de 
				tradição literária portuguesa, mas que são movidos pelo desejo 
				de afirmar uma identidade própria, por meio de estratégias 
				textuais que representem uma ruptura com essa referência. O 
				objetivo recorrente é, portanto, marcar a diferença filosófica, 
				ética e estética da literatura nacional. 
				  
				Se a africanidade surge do choque 
				cultural com Portugal e caracteriza-se pela busca da diferença 
				com o que é nativo, rejeitando tudo o que é colonial, a 
				moçambicanidade está marcada pelo conceito de autonomia e pelo 
				anseio de reconfiguração cultural. 
				  
				Nesse contexto, insere-se Mia Couto que 
				é um exemplo dessa moçambicanidade que nasce na década de 50 com 
				José Craveirinha. A partir dos primeiros anos de guerrilha de, 
				1964 até 1975, com a libertação da colônia, surge a segunda 
				geração da qual Craveirinha é mentor e ainda participante ativo, 
				seguida pela terceira geração, que abrange as décadas de 80 e 
				90, a qual pertence o autor sob estudo. 
				  
				Mia Couto faz ecoar as tradições de 
				Moçambique e traz inovação literária, por meio do hibridismo e 
				da recriação conferida à linguagem que exercita em suas obras. 
				Com ele, à semelhança do que faz Guimarães Rosa na literatura 
				brasileira, surgem os neologismos, a livre criatividade da 
				palavra e a observação crítica da realidade moçambicana. 
				  
				É nesse cenário, que as diversas 
				culturas e raças ganham expressão, que a tradição e o novo se 
				confrontam e é possível entender os contornos do que se vem 
				chamando de “moçambicanidade”. 
				  
				É por meio de sua palavra poética que o 
				leitor pode perceber a energia do seu país e a força do seu 
				mundo, em relação ao qual ele se sente cúmplice do sofrimento e 
				da luta de um povo. 
				  
				O eixo vertebral da escrita de Mia 
				Couto, no qual se insere o embrião da sua moçambicanidade, é a 
				representação da oralidade desse povo em que a memória e a 
				tradição constituem a base da diferença que expressa. Por meio 
				da inovadora linguagem que emprega na obra Um rio chamado tempo 
				uma casa chamada terra, Mia Couto dá voz a Moçambique de hoje e 
				procura um sentido para o cenário que o rodeia. Nessa obra, 
				constata-se uma narrativa rica em poesia e neologismos que 
				surgem da aglutinação entre o português e os dialetos de 
				Moçambique, que o faz recorrer ao discurso popular e à 
				intertextualização da oralidade. Constituem-se como temas do 
				livro sob análise: o amor à terra, a busca da identidade não 
				encontrada, a importância da memória, a procura da voz da terra, 
				o respeito à ancestralidade, a centralidade do tempo, a 
				esperança no futuro, o respeito à alteridade e também a 
				discrepância entre o parecer e o ser. 
				  
				É relevante observar, também, que em Mia 
				Couto tudo o que é natural e original assume grande importância; 
				por essa razão, para produzir diferentes configurações da ideia 
				de nação, o autor utiliza de forma recorrente as forças 
				essenciais do mundo: a água, o ar, o fogo e a terra como imagens 
				que simbolizam diferentes conceitos dos quais trataremos no item 
				a seguir. 
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				 A identidade 
				africana expressa pelas forças da natureza e pelo tempo, 
				em Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra 
				
				 
				
				As referências ao rio Madzimi, à chuva, ao céu, ao vento, 
				às árvores, ao fogo e à terra que se recusa a receber um morto, 
				à casa Nyumba-kaya e ao tempo são referências recorrentes nessa 
				obra e servem como suportes metafóricos, quase alegóricos, 
				usados como referências à identidade africana. 
				  
				
				O tempo, metaforizado pelo rio, é um elemento essencial 
				no livro e não se refere apenas ao “chrònos”, entendido 
				como o tempo mensurável, mas, sobretudo ao “kairòs”, isto 
				é, ao tempo mítico da fruição humana que ressalta o poder da 
				memória coletiva e da aprendizagem por que passa Marianinho, 
				estabelecendo a dualidade entre o antes e o depois, o passado, 
				em detrimento do presente e do futuro que está por ser 
				construído: “O rio é como o tempo! Nunca houve princípio, 
				concluía. O primeiro dia surgiu quando o tempo já se havia 
				estreado” (COUTO, 2003, p. 61). Nesse fragmento, 
				antevê-se uma óptica que opõe ao tempo cronológico, que é 
				cíclico, o tempo kairótico da eterna reconstrução humana. Os 
				personagens vivem em outro tempo, o da fruição, o da busca da 
				identidade nacional, que está latente antes dos tempos 
				cronológicos, só possível de ser alcançado através dos elementos 
				naturais. 
				  
				
				A água é outro elemento recorrente na obra e talvez possa 
				estar relacionada com a origem do mundo e com a maternidade, com 
				a matriz essencial para a existência do homem. Trata-se da 
				simbologia mais fortemente marcada no livro, sob a forma do rio 
				ou da chuva, metaforizando talvez a pureza, a limpeza e a 
				purificação que o processo de autoconhecimento humano deve 
				trazer: 
				  
				“Nenhum país é 
				tão pequeno como o nosso. Nele só existem dois lugares: a cidade 
				e a ilha. A separá-los, apenas um rio. Aquelas águas, porém, 
				afastam mais do que a própria distância. São duas nações mais 
				longínquas que planetas. Somos um povo, sim, mas de duas gentes, 
				duas almas” (COUTO, 2003, p.18). 
				  
				
				Nesse fragmento, é possível perceber que o rio (água) 
				simboliza a força capaz de reestruturar uma nação perdida no 
				tempo, mas também o elemento que separa e denuncia divergências 
				culturais. O rio foi responsável pela morte de sua mãe, que 
				morreu afogada para poder redimir-se de seus pecados. A mesma 
				função apresenta a chuva no trecho: “Desde o funeral que 
				não pára de chover. Nos campos, a água é tanta que os charcos se 
				cogumelam aos milhares” (COUTO, 2003, p. 243). Somente 
				depois de descoberta a verdadeira história do protagonista, 
				quando ele já está purificado, a chuva cessa, pois não é mais 
				necessária. 
				  
				
				O avô, Dito Mariano, também insiste em ser enterrado 
				próximo ao rio: 
				  
				
				“Me leve para o 
				rio. Já chegou o meu tempo [...] Pois eu quero ser enterrado 
				junto ao rio. É lá que deverei ser enterrado. Eu sou um 
				mal-morrido. Já viu chover nestes dias? Pois sou eu que estou 
				travando a chuva. Por minha culpa, a lua, mãe da chuva, perdeu a 
				gravidez. Sabe Marianinho? Quando você nasceu eu lhe chamei de 
				‘água’. Mesmo antes de ter nome de gente, essa foi a primeira 
				palavra que lhe ditei: madzi. E agora lhe chamo outra vez de 
				‘água’. Sim, você é a água que me prossegue onda sucedida em 
				onda, na corrente do viver” (COUTO, 2003, p. 238). 
				  
				
				É essa metáfora de continuidade de vida, de força, de 
				luta e de purificação que acompanha a imagem da água durante 
				todo o livro, transmitindo também a ideia de recomeço, de 
				esperança como resultado natural da desgraça. 
				  
				
				E, finalmente, a terra é outro elemento simbólico que 
				aparece repetidas vezes, neste livro de Mia Couto, para 
				simbolizar a base, o chão, a estrutura que prende Marianinho às 
				suas raízes, àquilo que o país foi e que se deve preservar. 
				  
				
				No livro, está presente a ideia de que a terra associada 
				à casa Nyumba-kaya é o porto seguro de Marianinho e contempla 
				afundo todos os demais elementos: rio, mar, homem: “Você, 
				meu neto, cumpriu o ciclo de visitas. E visitou terra, homem, 
				rio: o mesmo ser, só diferindo em nome. Há um rio que nasce 
				dentro de nós, corre por dentro da casa e deságua não no mar, 
				mas na terra. Esse rio uns chamam de vida” (COUTO, 2003, 
				p. 258). 
				  
				
				A vida de todos os personagens passa pela casa, metáfora 
				da continuidade e do retorno às origens. É somente pelo 
				empoderamento e reconquista da própria história que se torna 
				possível recuperar a identidade. O protagonista percebe que a 
				terra/casa lhe pertence que ele é a própria casa e não será 
				preciso “vendê-la” a estranhos, porque o chão tem de ser 
				preservado e amado, para que ocorra a continuidade da existência 
				de um povo: 
				  
				
				“Essa casa 
				nunca será sua, Tio Ultímio. – Ai não?! E porquê, posso saber? – 
				Porque essa casa sou eu mesmo. O senhor vai ter que comprar a 
				mim para ganhar posse da casa. E para isso, Tio Ultímio, para 
				isso nenhum dinheiro é bastante!” (COUTO, 2003, p. 249).  
				
				 
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				 Considerações 
				finais 
				
				 
				
				“O bom do 
				caminho é haver volta. Para ida sem vinda  
				basta o tempo” (COUTO, 
				2003, p. 123). 
				  
				
				Este artigo não se propôs à tarefa de ser um estudo 
				exaustivo da obra de Mia Couto, mas uma reflexão direcionada 
				para os índices de moçambicanidade presentes em Um rio 
				chamado tempo, uma casa chamada terra, que pudessem 
				delinear, contextualizadamente, a busca da identidade nacional 
				na obra estudada. Tal objetivo foi alcançado. 
				
				 
				
				Não é de se espantar que o Realismo Maravilhoso de Mia 
				Couto gere simpatia em seus leitores, pela simplicidade com que 
				retrata a busca da identidade de Moçambique. O autor trabalha 
				ludicamente com as palavras e expõe uma visão simples do mundo 
				que transporta o leitor para a singeleza do enredo que 
				apresenta. Ele parece ser o mediador entre as histórias que ouve 
				e o leitor que as consome, colocando sua escrita como 
				fomentadora de sonhos. 
				  
				
				Em certos momentos, o leitor sente-se Marianinho ao ler 
				as cartas de seu avô: “Aquelas cartas me fizeram nascer um 
				avô mais próximo, mais a jeito de ser meu. Pela sua grafia em 
				meus dedos ele se estreava como pai e eu renascia em outra vida”. 
				(COUTO, 2003, p. 257). 
				  
				
				Se os manuscritos de Dito-Mariano cumpriram sua missão, o 
				livro de Mia Couto também o faz, pois converte o leitor em um 
				viajante entre esses mundos fabulísticos que o texto apresenta e 
				a realidade. 
				  
				
				Utilizando polifonicamente as palavras do patriarca, 
				concluímos que o leitor que visita essa obra “encontrará 
				não a folha escrita, mas um vazio que você mesmo irá preencher 
				com suas caligrafias”, pois há grandeza em sua palavra 
				pontuada por espaços que ele nunca tocou...mas sugeriu... 
				
				 
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				Referências 
				bibliográficas 
				
				 
				
				COUTO, Mia. “Escrita desarrumada”. Folha de São Paulo, São 
				Paulo, 18 de novembro de 1998. 
				
				COUTO, Mia. Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra. São 
				Paulo, Companhia da Letras, 2003. 
				
				FARIA, Joana Daniela Vilaça. “Mia Couto-Luandino Vieira: uma 
				leitura em travessia pela escrita criativa ao serviço das 
				identidades”. Braga, Universidade do Minho, 2005 (Dissertação de 
				Mestrado). 
				
				HOUAISS, Antonio. Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa 
				(cd-rom). Rio de Janeiro, Objetiva, 2001. 
				
				LARANJEIRA, Pires. Literaturas Africanas de Expressão 
				Portuguesa. Lisboa, Universidade Aberta, 1995. 
				
				LEITE, Fábio. "Valores civilizatórios em sociedades 
				negro-africanas". África: Revista do Centro de Estudos 
				Africanos. São Paulo, Universidade de São Paulo, 1995/1996, 
				p.103-118. 
				
				MATUSSE, Gilberto. A construção da Moçambicanidade em José 
				Craveirinha, Mia Couto e Ungulani Ba Khosa. Maputo, Livraria 
				Universitária/UEM, 1998. 
				
				MENDONÇA, Fátima. “A Literatura Moçambicana em 
				Questão”. Discursos: Literaturas Africanas e Língua Portuguesa, 
				Coimbra, Universidade Aberta, No. 09: 37-40, 1995. 
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				*Doutorando e Mestre 
				em Letras com foco em Literatura Infanto-Juvenil e Educação 
				(FFLCH-USP). Especialista em Direito Constitucional (Direitos 
				Humanos) pela Faculdade Autônoma de Direito (FADISP) e em 
				Psicopedagogia Clínica e Institucional (UNINOVE). Bacharel em 
				Direito e licenciado em Pedagogia (UNINOVE). Professor de ensino 
				superior (UNINOVE) e colaborador dos grupos de pesquisa 
				Tempo-Memória: Educação, Literatura e Linguagens (UNINOVE/CNPq) 
				e Literatura Infantil/Juvenil e Sociedade (FFLCH-USP). 
					 
					
					
						
						(1) A 
						primeira vez que a palavra moçambicanidade surgiu 
						foi nos jornais O Africano (1909-1918), O 
						Brado Africano (1918) e O Itinerário (1919), 
						fundados pelos irmãos José e João Albasini. 
					 
					
						
						(2) A 
						palavra nativismo se refere a “atitude ou 
						política de favorecer os habitantes nativos de um país” 
						(Cf. Dicionário Etimológico Houaiss). 
					 
					
						
						(3) A 
						palavra telurismo se refere a “influência 
						do solo de uma região sobre o caráter e os costumes de 
						seus habitantes” (Cf. Dicionário Etimológico 
						Houaiss). 
					 
					
						
						(4) A 
						palavra casticismo se refere a “pureza e/ou 
						perfeição de linguagem; vernaculismo” (Cf. 
						Dicionário Etimológico Houaiss). 
					 
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