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						MAURÍCIO SILVA &  
						MÁRCIA FUSARO 
						
				Organizadores 
				 
				MIA COUTO 
						
				 
				Uma literatura entre palavras 
						 
						e encantamentos 
						 
						 
				São Paulo, 2011 
						 
						
				
				ÍNDICE 
				
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				Terra sonâmbula: 
						Mia Couto e o galinheiro da história 
				 
				SUELI SARAIVA* 
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				 A ideia de identidade 
				nacional refletida nas obras de ficção moçambicanas acompanhou o 
				nascimento desse país como Estado-nação, constituindo, por 
				conseguinte, os traços característicos de uma moçambicanidade 
				literária (MATUSSE, 1998) (1).
				É justificável, neste contexto, a preocupação 
				em reiterar que “o autor, ao produzir o texto, constrói um mundo 
				possível, de acordo com a percepção que tem do mundo actual, da 
				sua experiência vivencial e da sua intenção de o representar 
				numa determinada perspectiva” (ibid., p. 71), pois é reconhecida 
				a proximidade dos textos moçambicanos com o real empírico 
				(eventos históricos, sociais, políticos etc.), que pode outorgar 
				à escrita de ficção uma legítima refração da realidade. 
				 
				
				 
				Partindo dessa 
				perspectiva, é possível observar que se na ficção de Mia Couto 
				as construções/recriações linguísticas, já extensamente 
				estudadas, não resultam “de uma atitude realista, do desejo de 
				produzir um efeito de real” (MATUSSE, 1998, p. 103), o 
				mesmo não pode ser dito de suas opções temáticas. “O desejo de 
				contar e de inventar”, assumido pelo escritor como premissa de 
				sua arte de narrar, conforme avisa na introdução de seu primeiro 
				livro de contos, Vozes anoitecidas (COUTO, 1986), 
				transpassa a fronteira porosa entre realidade e ficção para 
				tingir suas páginas literárias com as cores encarnadas da 
				realidade vivida. 
				 
				
				 
				Com o olhar do jovem que 
				testemunhou o estertor do colonialismo, as lutas de 
				independência e as mudanças advindas da autonomia conquistada, 
				já em seu aclamado romance, Terra sonâmbula (1ª edição: 
				1993), Mia Couto desenha um panorama do cenário imediato 
				pós-1975, com foco na hecatombe dos conflitos armados surgidos 
				no desfraldar da bandeira soberana. O enredo é dividido em duas 
				narrativas (a história primária do velho Tuahir e do menino 
				Muidinga, e o relato encaixado, os Cadernos de Kindzu), além 
				ainda de uma pequena narrativa subencaixada nos “Cadernos” (os 
				relatos de Farida). Além das agruras de um tempo de caos e 
				perplexidade, o enredo deixa entrever os ovos de outras 
				serpentes que eclodiriam na sociedade moçambicana quando 
				finalmente a paz fosse instaurada, após quase suas décadas de 
				lutas fratricidas. 
				 
				
				 
				Nesta que é a primeira 
				prosa longa de Mia Couto, os tempos narrados revisitam o 
				estertor do colonialismo (nas rememorações de Farida), a euforia 
				da chegada da libertação nacional (o nascimento de Junhito) e a 
				perda das ilusões (a caminhada sem destino de Tuahir e Muidinga, 
				e a peregrinação para a morte de Kindzu). 
				 
				
				 
				No enredo principal, o 
				menino Muidinga, personagem destacado ao lado do velho Tuahir, 
				perambula por uma “estrada morta”, após ser encontrado 
				moribundo, sem identidade e sem memória. A dupla intergeracional 
				mais conhecida do romance moçambicano, o velho Tuahir e o menino 
				Muidinga, já foi amplamente analisada ao longo de mais de duas 
				décadas desde a publicação da obra. A chave para a misteriosa 
				identidade do desmemoriado menino Muidinga se encontra no enredo 
				paralelo, nos escritos de Kindzu. O Autor dos escritos é um 
				jovem assassinado na estrada por onde os viajantes caminham; 
				sendo os “Cadernos” encontrados na bagagem do morto. Sua 
				leitura, feita por Muidinga para entreter o mais-velho, 
				nos chega simultaneamente em mise en abyme, permitem 
				transitar por outras esferas espaciais e temporais; de tal modo 
				a complementar a narrativa principal, traduzindo “em português 
				legível” os crimes cometidos naqueles anos em que “só as hienas 
				se arrastavam, focinhando entre cinzas e poeiras”, como dirá 
				outra personagem de Mia Couto, o “Tradutor” de Tizangara (COUTO,
				O último voo do flamingo 2005, p. 9). 
				 
				
				 
				Terra sonâmbula 
				é, portanto, a história de viajantes que perderam o mapa de seus 
				destinos. Estagnados pela guerra e outras violências, caminham 
				em passo falso, girando sobre o próprio eixo, como em rotação 
				terrestre. Seguem aguardando a hora da chegada das sonhadas 
				justiça e igualdade. Tal e qual o velho e o menino fugindo de 
				uma guerra sem rota de fuga, as gentes moçambicanas seguiam “à 
				espera do adiante. [...] na ilusão de, mais além, haver um 
				refúgio tranquilo” (COUTO, 1995, p. 9). Mas, o desejo de fugir, 
				partir, viajar torna-se irrealizável quando os indivíduos são 
				surrupiados em sua subjetividade e humanidade. Símbolos de um 
				povo, as personagens em incerto trânsito estão presas numa 
				“estrada morta” onde “a única coisa que acontece é a consecutiva 
				mudança da paisagem” (COUTO, 1995, p. 77): Além da caminhada em 
				360º do velho e do menino, também Kindzu parte de sua aldeia, 
				fugindo da destruição da guerra e em busca de um sentido de 
				identidade, mas chega em outra vila onde o que muda é, 
				novamente, apenas a paisagem: novas cores da destruição causada 
				pela mesma guerra. Não por acaso, o romance é atravessado por 
				figuras que sofrem de sonhos e enlouquecem como o pai de Kindzu 
				(COUTO, 1995, p. 18), ou que sucumbiram à impotência e se 
				tornaram sombras, como aconselhava a mãe do narrador dos 
				“Cadernos”: “Ela nos ensinava a sermos sombras, sem nenhuma 
				outra esperança senão seguirmos do corpo para a terra” (COUTO, 
				1995, p. 20). 
				 
				
				 
				Num primeiro plano, o 
				enredo põe às claras o sofrimento de uma nação que sonhou com o 
				glorioso day after da libertação nacional, mas viu-se, 
				por dezesseis anos, mergulhada na violência dos conflitos 
				armados, sendo que os inimigos do turno já não tinham contornos 
				definidos, como foi o caso do invasor europeu. Contudo, num 
				plano complementar, a construção alegórica que estrutura o 
				romance deixa entrever que os “inimigos”, quaisquer que fossem, 
				seriam aqueles que se deixaram mover por interesses contrários 
				aos preceitos ideológicos e ao sonho da nação imaginada: “Pouco 
				a pouco nos tornávamos outros, desconhecíveis. Eu vi quanto 
				tínhamos mudado foi quando mandaram o irmão mais pequeno para 
				fora de casa” (COUTO, 1995, p. 20), lamenta o narrador Kindzu. 
				 
				
				 
				O irmão que foi mandado 
				para fora de casa é a personagem Junhito, de quem a 
				representação é emblemática da paulatina morte da utopia no 
				imediato pós-independência. Nascido no dia da proclamação da 
				independência (25 de junho) é alcunhado em referência à data e 
				indicia a sua função alegórica. O pai da família, o velho Taímo, 
				que profetizava as notícias do futuro pela voz dos antepassados, 
				certo dia vestiu-se formalmente — “se gravatara, fato e sapato 
				de sola. A sua voz não variava em delírios” (COUTO, 1995, p. 19) 
				— para anunciar emocionado “um fato: a Independência do país” 
				(ibid.). Desta vez, o velho que “sofria de sonhos” (COUTO, 1995, 
				p. 18) trazia uma notícia concreta, a revelação de uma verdade, 
				de um fato que coincidiria com o nascimento de seu filho: 
				  
				
				"Nessa altura, nós nem sabíamos o 
				verdadeiro significado daquele anúncio. Mas havia na voz do 
				velho uma emoção tão funda, parecia estar ali a consumação de 
				todos seus sonhos. Chamou minha mãe e, tocando sua barriga 
				redonda como lua cheia, disse: 
				
				— Esta criança há de ser chamada 
				de Vinticinco de Junhoi" (COUTO, 1995, p. 19). 
				  
				Mas, logo se percebeu 
				que a criançA (2) vindoura não 
				comportaria tamanho estatuto nominal: “Vinticinco de Junho era 
				nome demasiado. Afinal, o menino ficou sendo só Junho. Ou de 
				maneira mais mindinha: Junhito. Minha mãe não mais teve filhos. 
				Junhito foi o último habitante daquele ventre” (COUTO, 1995,
				p. 19). Ao decidir pela abreviação do nome da criança (que 
				encerrou a fertilidade materna), a narrativa simboliza a 
				independência do país, que já nasce abreviada, encerrando um 
				sonho fértil de esperança, conforme a crítica empenhada na 
				narrativa. O pai-adivinhador talvez suspeitasse que o “vinte e 
				cinco de junho” como sinônimo de independência total, no sentido 
				apregoado pela “geração da utopia” ainda não chegara, assim como 
				acontecera com outro vinte e cinco, o de abril de 1974 
				(3). Antes mesmo de ser oficialmente promulgado o nome 
				(da criança e do fato histórico alegorizado) foi podado até o 
				diminutivo, “ficou sendo só Junho. Ou de maneira mais mindinha: 
				Junhito”: 
				  
				
				"No princípio só escutávamos as vagas novidades, acontecidas no 
				longe. Depois, os tiroteios foram chegando mais perto e o sangue 
				foi enchendo nossos medos. A guerra é uma cobra que usa nossos 
				próprios dentes para nos morder. Seu veneno circulava agora em 
				todos os rios de nossa alma. De dia já não saíamos, de noite não 
				sonhávamos. O sonho é o olho da vida. Nós estávamos cegos". 
				  
				A nova guerra, a chamada 
				“civil”, ou guerra de desestabilização, inflamou o recôndito da 
				alma humana (“usa nossos próprios dentes para nos morder”), 
				contaminou a incipiente unidade nacional e instilou o veneno da 
				fragmentação e do caos no seio das famílias: “Aos poucos eu 
				sentia a nossa família quebrar-se como um pote lançado ao chão. 
				[...]. Nós estávamos mais pobres que nunca. Junhito tinha os 
				joelhos escapando das pernas, cansado só de respirar” (COUTO, 
				1995, p. 19). 
				
				 
				Na tentativa de salvar 
				Junhito de uma morte pressentida (pelas armas dos desvalidos no 
				processo de independência), o pai manda o filho camuflar-se na 
				capoeira (o galinheiro): “Ali Junhito aprenderia a comportar-se 
				como as galinhas, comendo as sobras e dormindo ao relento. 
				Resignado a sobreviver sem glória, sem brilho, sem substância” 
				(COUTO, 2005c, p. 193). Ou seja, mal havia nascido e já devia 
				abdicar de seu pertencimento ao mundo dos humanos. Na cultura 
				africana, em que os laços familiares regem, em geral, a dinâmica 
				da vida e da morte, o ato de “[mandar] o irmão mais pequeno para 
				fora de casa” é crime de lesa-tradição familiar africana. 
				 
				
				 
				Além de denunciar a 
				perda do lastro familiar, podemos pressupor que essa 
				performatização da memória da independência descreve as 
				tentativas ocorridas, às vezes equivocadas, de preservar 
				politicamente a liberdade recém-conquistada. Tal visão crítica, 
				portanto, acrescenta às ações dos “inimigos de fora”, as 
				próprias decisões dos novos governantes que, em seu desejo de 
				consolidar, em meio ao caos, um projeto de nação — primeiro pelo 
				viés socialista e depois pela chancela do neoliberalismo 
				—acabaria por remeter a nova condição política ao “galinheiro da 
				história”: local dos bichos domesticáveis, exploráveis e 
				antropofagizáveis. Preso em tal galinheiro, tal e qual o sonho 
				da independência, em pouco tempo Junhito perderia a sua 
				identidade original: “Uma manhã, a capoeira amanheceu sem ele. 
				Nunca mais, o Junhito. Morrera, fugira, se infinitara? Ninguém 
				acertava” (COUTO, 1995, p. 22). Talvez o humano tenha se 
				convertido definitivamente em bicho; afinal, “Junhito já nem 
				sabia soletrar as humanas palavras. Esganiçava uns cóóós e 
				ajeitava a cabeça por baixo do braço. E assim se adormecia” 
				(ibid.). 
				 
				
				 
				O desaparecimento da 
				esperança, ainda na infância da libertação nacional, 
				potencializa o desequilíbrio individual e social. O velho Taímo 
				que “se gravatara, fato e sapato de sola” para anunciar a 
				“consumação de todos os seus sonhos” foi o que mais enlouqueceu 
				com esse desaparecimento precoce: “O desaparecimento de meu 
				irmão treslouqueceu toda nossa casa. Quem mais mudou foi meu 
				pai. Aos poucos foi deixando as demais ocupações, alvorando e 
				anoitecendo na beberagem” (COUTO, 1995, p. 23). 
				
				 
				Em intervenção proferida 
				na Suíça, por ocasião dos 30 anos de Independência de Moçambique 
				(4), o próprio Mia Couto explica o seu 
				intento criativo na alegorização da personagem Junhito, o 
				prometido menino-esperança que se torna símbolo do tolhimento da 
				nação:  
				  
				
				"Na altura [da criação da personagem], eu denunciava a nossa 
				progressiva perda de soberania, e uma crescente domesticação do 
				nosso espírito de ousadia. Poderíamos ser nação mas não 
				demasiado, poderíamos ser povo mas apenas se bem comportado" 
				(COUTO, 2005b, p. 193). 
				  
				Para representar no 
				plano ficcional essa situação de perda de integridade coletiva, 
				as ações transcritas nos “Cadernos de Kindzu” situam-se em 
				Matimati, uma vila de pescadores, que recebe uma multidão de 
				deslocados da guerra, vindos de diversas zonas rurais em busca 
				do precário refúgio no litoral. O espaço ficcional litorâneo tem 
				especial pertinência no enredo. O mar é tanto um ilusório portal 
				de fuga da geografia de miséria quanto um horizonte de 
				esperança, para onde se voltam os olhos famintos daqueles que 
				apenas aguardam em terra firme o que outras ondas possam trazer.
				 
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				Uma nação à beira da 
				praia
				
				 
				
				Em Terra sonâmbula, a imagem 
				da baleia que encalha na praia (COUTO, 1995, p. 27) ilumina o 
				sentido do tempo do narrado, isto é, um tempo em que os sonhos 
				grandiosos dos anos de luta pela independência encalharam na 
				praia da desesperança e da luta pela sobrevivência, mas também 
				da ganância e do egoísmo de alguns dos que detinham o poder. A 
				sonhada independência, aquela em que todos seriam justiçados por 
				seu histórico feito, seria tão fenomenal quanto a visão do maior 
				mamífero marinho. Mas, em ambos os casos, a chegada 
				grandiloquente deu lugar a uma visão apocalíptica: a 
				independência condenada pela guerra, e a baleia condenada pela 
				irreversibilidade do encalhe. Em situação de fragilidade, ambas 
				despertando desejos de apropriação e usurpação. O episódio da 
				baleia moribunda é parte da memória de infância de Kindzu, que, 
				em menino, vigiava o mar ao entardecer na esperança de avistar o 
				magnífico animal: 
				 
				  
				
				
				"Ouvíamos a baleia mas não lhe víamos. Até que, certa vez, 
				desaguou na praia um desses mamíferos, enormão. Vinha morrer na 
				areia. Respirava aos custos, como se puxasse o mundo nas suas 
				costelas. A baleia moribundava, esgoniada. O povo acorreu para 
				lhe tirar carnes, fatias e fatias de quilos. Ainda não morrera e 
				já seus ossos brilhavam no sol. Agora eu via o meu país como uma 
				dessas baleias que vêm agonizar na praia. A morte nem sucedera e 
				já as facas lhe roubavam pedaços, cada um tentando o mais para 
				si. Como se fosse o último animal, a derradeira oportunidade de 
				ganhar uma porção. De vez em quando me parecia ouvir ainda o 
				suspirar do gigante, engolindo vaga após vaga, fazendo da 
				esperança uma maré vazando" (COUTO, 1995, p. 26-27). 
				
				  
				A metáfora é iluminadora 
				tanto do advento da independência (“Até que, certa vez, desaguou 
				na praia [...]”) quanto à denúncia das atrocidades 
				cometidas contra uma nação agonizante. Na conclusão da cena, 
				Kindzu (símbolo do presente) lamenta: “Afinal, nasci num tempo 
				que não acontece. A vida, amigos, já não me admite” (ibid.). O 
				fato de a imagem rememorada por Kindzu trazer como 
				aproveitadores da baleia indefesa “o povo” em seu exercício de 
				sobrevivência, deixa entrever que o estado de violência que, 
				metaforicamente, se estabelece contra a terra, é histórico e 
				resulta, também, da luta cotidiana pela vida; no entanto, é 
				indubitável sobre quem de fato as farpas da crítica recaem. Já 
				em outra cena de semelhante violência contra o “corpo africano”, 
				o narrador que conduz a história de Tuahir e Muidinga explica 
				que um elefante é morto pelos homens da guerra, não para 
				alimentar-se de sua carne, mas para obter lucro com a venda do 
				marfim. O velho e o menino são surpreendidos em seu refúgio, no 
				ônibus incendiado, pelo enorme visitante: 
				 
				  
				
				
				"Por entre os altos capins, assoma um elefante. O bicho se 
				arrasta, cansado do seu peso. Mas há no demorar das pernas um 
				sinal de morte caminhando. E, na realidade, se vislumbra que, em 
				plenas traseiras, está coberto de sangue. O animal se afasta, 
				penoso. Muidinga sente o golpe de agonia em seu próprio peito. 
				Aquele elefante se perdendo pelos matos é a imagem da terra 
				sangrando, séculos inteiros moribundando na savana" (COUTO, 
				1995, p. 46). 
				
				  
				
				
				Assim, as imagens dos dois gigantes 
				sendo violentados, ora por uma suposta necessidade, ora pela 
				ganância, remetem a um longo processo histórico de abusos, 
				praticados também pelos “filhos da terra”.  
				 
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				 Narrativas dípticas 
				
				 
				
				Historicamente, a violência dos 
				conflitos armados (guerra civil) em Moçambique que deu a matéria 
				narrativa de Terra sonâmbula teria o seu desfecho com a 
				assinatura do “Acordo de Paz”, em 1992, mediado por forças 
				externas tutoras. Tal solução negociada e seus desdobramentos 
				para o país constituem o pano de fundo do terceiro romance de 
				Mia Couto, O último voo do flamingo (1ª edição: 2000). 
				
				 
				 A obra, 
				refletindo o “sonho diurno” (Bloch) natimorto – Junhito e o 
				galinheiro –, articula-se numa sequência temporal, da guerra 
				para a paz, estabelecendo com o primeiro romance uma 
				intertextualidade que confirma o projeto literário coutiano como 
				linearmente progressivo (6). Para além 
				de alguns elementos narrativos de Terra sonâmbula (textos 
				encaixados, narrador testemunha, espaço metonímico), O último 
				voo... recupera e desenvolve a caracterização de 
				personagens, de forma direta ou indireta. 
				 
				
				 
				As referências cruzadas 
				entre as situações narrativas, as caracterizações das 
				personagens e a configuração do espaço com as emblemáticas 
				figuras do poder, atingem o paroxismo na transposição direta de 
				uma personagem, de Terra sonâmbula para O último 
				voo..., levando o seu nome e cargo ocupado no primeiro 
				romance: o administrador Estêvão Jonas. O corrupto mandatário, 
				que no primeiro romance firmou um pacto com o espectro do 
				colonialismo, aterrissa em O último voo... com seu poder 
				fortalecido e já encorpado como representação de um grupo: as 
				elites pós-coloniais. Esse grupo social que, tanto em Moçambique 
				quanto em outros espaços africanos no século XX, experimentou, 
				de uma ou de outra forma, as três faces de sua história recente: 
				o estertor do colonialismo, a guerra civil e o tempo de paz. 
				A recorrência dessa 
				personagem-tipo caricatural na obra de Mia Couto, parece 
				advertir, dialogando com Balandier que: 
				  
				
				
				"Já se disse que o revolucionário, desde que triunfa e se 
				estabelece para governar se torna uma caricatura. É que há uma 
				passagem da comunhão libertadora para a dominação instituída, do 
				ato que sacrifica e destrói um poder ao de fundação que 
				estabelece um outro. Durante este período de transfiguração, 
				todos os caracteres ficam de qualquer modo deformados pelo 
				aumento, e, especialmente pelo aspecto dramático da instituição 
				política" (1982, p. 9). 
				
				  
				Uma das críticas 
				formuladas por Mia Couto em suas intervenções se refere ao uso 
				da miséria material para o que ele aponta como um modo de 
				comover a comunidade internacional e dela receber as chamadas 
				ajudas humanitárias (a crítica, fica claro, não necessariamente 
				está na ajuda, mas no uso político ou pessoal que se faz dela). 
				Basta recordarmos que em Terra sonâmbula o epicentro dos 
				conflitos é um navio de donativos internacionais que naufraga 
				misteriosamente ao se aproximar da baía de Matimati para 
				socorrer os milhares de deslocados da guerra ali reunidos. O 
				acidente, suspeitam os miseráveis, seria obra das próprias 
				autoridades locais, interessadas em controlar a preciosa carga, 
				não para a devida distribuição, mas para dela tirar proveitos. 
				 
				
				 
				Tal argumento acusatório 
				é recorrente em seus romances e os recursos literários usados 
				para expressar tal situação vão da alegoria à farsa, como 
				comprovam as palavras de Jonas, eximindo-se de qualquer 
				responsabilidade, transformando a população oprimida por sua 
				administração em culpada pela própria sorte: 
				  
				
				
				"— Ás vezes quase desisto de vocês, massas populares. Penso: não 
				vale a pena, é como pedir a um cajueiro para não entortar seus 
				ramos. Mas nós cumprimos destino de tapete: a História há-de 
				limpar os pés nas nossas costas" (COUTO, 1995, p. 69). 
				
				  
				
				
				Já em tempos de paz (n’O último 
				voo...), exacerba-se o egoísmo pela violência concreta, pois 
				além de sonegar a venda de alimentos subsidiados pelo governo 
				aos flagelados por uma economia destroçada, Estevão Jonas é 
				ainda acusado de “replantar” minas antipessoais (um dos mais 
				cruéis artefatos de guerra já inventados); afinal, entre outras 
				calamidades, elas atraíam a atenção e a benemerência 
				internacional, cujo mau uso era vislumbrado por indivíduos ou 
				grupos corruptos. 
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				 Considerações finais 
				
				 
				O primeiro caderno de 
				Kindzu, intitulado “O tempo em que o mundo tinha a nossa idade”, 
				o narrador inicia a sua história afirmando a dificuldade de 
				transcrever “em português visível” (como dirá o seu análogo em
				O último voo...) aquilo que ele assistiu e vivenciou: um 
				tempo de catástrofe: 
				  
				
				"Quero pôr os tempos, em sua mansa ordem, conforme esperas e 
				sofrências. Mas as lembranças desobedecem, entre a vontade de 
				serem nada e o gosto de me roubarem do presente. Acendo a 
				estória, me apago a mim. No fim destes escritos, serei de novo 
				uma sombra sem voz" (COUTO, 1995, p. 17). 
				  
				Ao final da narrativa, 
				ele retoma esse lamento angustiado: 
				  
				
				"Agora era como se esses fantasmas trabalhassem em minha cabeça 
				para me transmitirem seus segredos, revelações de um outro 
				mundo. Vou relatar o último sonho a ver se me livro do peso de 
				terríveis lembranças. Não quero que tais pensamentos me 
				regressem. Preciso dormir, totalmente dormir, me emigrar deste 
				corpo cheio de esperas e sofrências" (COUTO, 1995, p. 240). 
				  
				Ao assumir a tarefa de 
				registrar em palavras escritas essa realidade quase 
				inverossímil, uma atmosfera de sombras e engodos, Kindzu 
				torna-se, ele próprio, um sonâmbulo. Comporta-se como um 
				narrador, cujo estatuto não é o de apenas intrometer-se, opinar, 
				questionar, mas como aquele que circula por um mundo que é o 
				seu, mas ao mesmo tempo não é – como o assimilado que fora no 
				tempo colonial, sabendo, de fato, o engodo da situação 
				(7). Como eco intelectual de seu criador, ele 
				assiste a tudo, ouve relatos e testemunhos e impõe-se a dúvida 
				quanto ao estado de onirismo em que pode estar envolvido. 
				“Talvez, quem sabe, cumprisse o que sempre fora: sonhador de 
				lembranças, inventor de verdades. Um sonâmbulo passeando entre o 
				fogo. Um sonâmbulo como a terra em que nascera” (COUTO, 1995, p. 
				130). 
				 
				
				 
				O projeto literário de 
				Mia Couto especialmente exemplificado por Terra sonâmbula 
				revela, pela via da ficção, inquietações sobre os caminhos da 
				terra em que nasceu como o fruto de mundos dissonantes. O 
				escritor africano subsaariano branco, filho de ex-colonos e que 
				não deixa dúvidas sobre a sua “moçambicanidade” desempenha, sem 
				concessões político-ideológicas, o seu próprio papel de 
				narrador, ou “tradutor” deste mundo, que, afinal, é o seu espaço 
				de existência e que persiste, nesses quarenta anos de 
				independência política, a questionar se “No passado o futuro era 
				melhor?”, isto é, se o horizonte vislumbrado no pré-1975 não 
				teria prometido cores mais brilhantes do que os indefinidos 
				matizes da opaca história que ainda procura escapar do 
				“galinheiro” em que foi colocada.   
				 
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				Referências Bibliográficas 
				 
				BALANDIER, Georges. O poder em cena. Trad. Luiz Tupy Caldas de 
				Moura. Brasília: Editora da UNB, 1982. 
				 
				COUTO, Mia. Terra Sonâmbula. Lisboa: Editorial Caminho, 1993; 
				Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995. 
				 
				COUTO, Mia. O Último Vôo do Flamingo. São Paulo: Companhia das 
				Letras, 2005. 
				 
				COUTO, Mia. "Moçambique – 30 anos de independência: no passado, 
				o futuro era melhor? (Ensaio)". Via Atlântica, Universidade de 
				São Paulo, São Paulo, No. 8, 2005b. 
				 
				LEITE, Ana Mafalda. Oralidades & escritas nas literaturas 
				africanas. Lisboa: Ed. Colibri, 1998. 
				 
				MATUSE, Gilberto. A construção da imagem de moçambicanidade em 
				José Craveirinha, Mia Couto e Ungulani Ba Ka Khosa. Maputo: 
				Livraria Universitária, UEM, 1998. 
				 
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				| *Doutora 
				em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa pela 
				Universidade de São Paulo. É autora do livro 
				Boaventura Cardoso, Mia Couto e a experiência do tempo 
				no romance africano (São Paulo, Terceira 
				Margem, 2012). Professora da Universidade da Integração 
				Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB). | 
			 
			
				
				
					(1) O pesquisador 
					moçambicano reitera, por óbvio que pareça, que “o texto 
					literário constrói um mundo fictício através do qual 
					modeliza o mundo actual, representando-o metafórica ou 
					metonimicamente, instituindo, portanto, uma referencialidade 
					mediatizada” (MATUSE, 1998, p. 70). 
					
					 
				 
				
					(2) A infância é 
					uma temática constante nas literaturas africanas, e não 
					apenas como alegoria da esperança no devir, mas também como 
					a representação de um futuro natimorto, impedido de 
					florescer em meio à luta cotidiana pela sobrevivência. Já em
					Vozes anoitecidas (1986), no conto "A menina de 
					futuro torcido", Mia Couto denuncia a aniquilação do corpo 
					infante num pacto fracassado com o destino. O esgotamento do 
					futuro ainda em sua meninice é alegorizado pela 
					transformação que um pai, sonhando com dias melhores para a 
					miserável família, impõe à pequena filha, tentando 
					transformá-la numa contorcionista e negociá-la com um 
					empresário do tipo circense. Em decorrência dos severos 
					exercícios corporais, pelos quais ela deveria "amolecer os 
					ossos" e aprender a curvar-se até o chão como uma 
					invertebrada, ela não somente não salva a família da 
					miséria, bem como tal atrocidade rouba-lhe a vitalidade até 
					à morte. 
					
					 
				 
				
					(3) Como lamenta 
					a personagem de Mia Couto, na comemoração dos colonos, em 25 
					de abril de 1974: “Vinte e cinco é para vocês que vivem nos 
					bairros de cimento. Para nós, negros pobres que vivemos na 
					madeira e zinco, o nosso dia ainda está por vir” (COUTO, 
					1999, p. 11, grifo nosso). Esse dia ansiado também foi 
					celebrado efusivamente em 25 de Junho de 1975 pelos pobres 
					dos bairros de zinco, “mesmo que, na altura, lhes pesasse a 
					leve suspeita de que a libertação da miséria é um processo 
					que demora ainda várias gerações” (COUTO, 2005, p. 58). 
					  
					(5)  “Moçambique 
					— 30 anos de Independência: no passado, o futuro era 
					melhor?”. O texto está reproduzido na Revista Via 
					Atlântica, nº 8, São Paulo: FFLCH,USP, 2005, p. 191-204. 
					
					
					 
					
					(6) A tríade romanesca coutiana que 
					tematiza num movimento cumulativo, os primeiros anos da 
					independência moçambicana (Guerra → Identidade nacional → 
					Paz) é formada, respectivamente, por: Terra Sonâmbula,
					A varanda do frangipani e O último voo do flamingo. 
					Os dois primeiros localizam-se temporalmente no período da 
					guerra civil. Mas, se no primeiro o foco é o re-equilíbrio 
					social e a denúncia dos abusos em tempo de caos, no segundo, 
					o enredo questiona não apenas o "golpe" contra o povo em 
					seus direitos básicos, mas o "golpe contra o antigamente" 
					(COUTO, 2008, p. 98), um golpe contra o que se poderia 
					chamar de moçambicanidade histórica, de respeito também às 
					formas do passado, ali representadas pelos velhos insulados 
					(LEITE, 1998, p. 71). Já no terceiro (UVF) há uma clara 
					retomada de diálogo com o primeiro romance, sem deixar de 
					contemplar, também, temas abordados em A varanda...
					
					 
					
					
					
					
					 
					
					
					(7) Kindzu sente-se provocado e 
					ameaçado pela palavra “patrão” que ouve dirigida a si pela 
					boca de um desafeto que, por inveja, condenava sua 
					assimilação aos valores branco-europeus: “Patrão. Aquele 
					moço teimava em chamar-me assim. Em sua boca aquele termo 
					surgia como ofensa, um cuspe azedo. Mostrava que, apesar de 
					meus modos assimilados, eu pertencia à sua raça. Um dia iria 
					pagar ter traído essa condição” (COUTO, 1995, p. 132). 
					
					
					 
					
					
					 
					
					
					 
				 
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