REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


NS | número 59 | julho-agosto | 2016

 
 



MAURÍCIO SILVA &
MÁRCIA FUSARO
Organizadores

MIA COUTO

Uma literatura entre palavras
e encantamentos


São Paulo, 2011

ÍNDICE
Terra sonâmbula: Mia Couto e o galinheiro da história
SUELI SARAIVA*

 

A ideia de identidade nacional refletida nas obras de ficção moçambicanas acompanhou o nascimento desse país como Estado-nação, constituindo, por conseguinte, os traços característicos de uma moçambicanidade literária (MATUSSE, 1998) (1). É justificável, neste contexto, a preocupação em reiterar que “o autor, ao produzir o texto, constrói um mundo possível, de acordo com a percepção que tem do mundo actual, da sua experiência vivencial e da sua intenção de o representar numa determinada perspectiva” (ibid., p. 71), pois é reconhecida a proximidade dos textos moçambicanos com o real empírico (eventos históricos, sociais, políticos etc.), que pode outorgar à escrita de ficção uma legítima refração da realidade.

Partindo dessa perspectiva, é possível observar que se na ficção de Mia Couto as construções/recriações linguísticas, já extensamente estudadas, não resultam “de uma atitude realista, do desejo de produzir um efeito de real” (MATUSSE, 1998, p. 103), o mesmo não pode ser dito de suas opções temáticas. “O desejo de contar e de inventar”, assumido pelo escritor como premissa de sua arte de narrar, conforme avisa na introdução de seu primeiro livro de contos, Vozes anoitecidas (COUTO, 1986), transpassa a fronteira porosa entre realidade e ficção para tingir suas páginas literárias com as cores encarnadas da realidade vivida.

Com o olhar do jovem que testemunhou o estertor do colonialismo, as lutas de independência e as mudanças advindas da autonomia conquistada, já em seu aclamado romance, Terra sonâmbula (1ª edição: 1993), Mia Couto desenha um panorama do cenário imediato pós-1975, com foco na hecatombe dos conflitos armados surgidos no desfraldar da bandeira soberana. O enredo é dividido em duas narrativas (a história primária do velho Tuahir e do menino Muidinga, e o relato encaixado, os Cadernos de Kindzu), além ainda de uma pequena narrativa subencaixada nos “Cadernos” (os relatos de Farida). Além das agruras de um tempo de caos e perplexidade, o enredo deixa entrever os ovos de outras serpentes que eclodiriam na sociedade moçambicana quando finalmente a paz fosse instaurada, após quase suas décadas de lutas fratricidas.

Nesta que é a primeira prosa longa de Mia Couto, os tempos narrados revisitam o estertor do colonialismo (nas rememorações de Farida), a euforia da chegada da libertação nacional (o nascimento de Junhito) e a perda das ilusões (a caminhada sem destino de Tuahir e Muidinga, e a peregrinação para a morte de Kindzu).

No enredo principal, o menino Muidinga, personagem destacado ao lado do velho Tuahir, perambula por uma “estrada morta”, após ser encontrado moribundo, sem identidade e sem memória. A dupla intergeracional mais conhecida do romance moçambicano, o velho Tuahir e o menino Muidinga, já foi amplamente analisada ao longo de mais de duas décadas desde a publicação da obra. A chave para a misteriosa identidade do desmemoriado menino Muidinga se encontra no enredo paralelo, nos escritos de Kindzu. O Autor dos escritos é um jovem assassinado na estrada por onde os viajantes caminham; sendo os “Cadernos” encontrados na bagagem do morto. Sua  leitura, feita por Muidinga para entreter o mais-velho, nos chega simultaneamente em mise en abyme, permitem transitar por outras esferas espaciais e temporais; de tal modo a complementar a narrativa principal, traduzindo “em português legível” os crimes cometidos naqueles anos em que “só as hienas se arrastavam, focinhando entre cinzas e poeiras”, como dirá outra personagem de Mia Couto, o “Tradutor” de Tizangara (COUTO, O último voo do flamingo 2005, p. 9).

Terra sonâmbula é, portanto, a história de viajantes que perderam o mapa de seus destinos. Estagnados pela guerra e outras violências, caminham em passo falso, girando sobre o próprio eixo, como em rotação terrestre. Seguem aguardando a hora da chegada das sonhadas justiça e igualdade. Tal e qual o velho e o menino fugindo de uma guerra sem rota de fuga, as gentes moçambicanas seguiam “à espera do adiante. [...] na ilusão de, mais além, haver um refúgio tranquilo” (COUTO, 1995, p. 9). Mas, o desejo de fugir, partir, viajar torna-se irrealizável quando os indivíduos são surrupiados em sua subjetividade e humanidade. Símbolos de um povo, as personagens em incerto trânsito estão presas numa “estrada morta” onde “a única coisa que acontece é a consecutiva mudança da paisagem” (COUTO, 1995, p. 77): Além da caminhada em 360º do velho e do menino, também Kindzu parte de sua aldeia, fugindo da destruição da guerra e em busca de um sentido de identidade, mas chega em outra vila onde o que muda é, novamente, apenas a paisagem: novas cores da destruição causada pela mesma guerra. Não por acaso, o romance é atravessado por figuras que sofrem de sonhos e enlouquecem como o pai de Kindzu (COUTO, 1995, p. 18), ou que sucumbiram à impotência e se tornaram sombras, como aconselhava a mãe do narrador dos “Cadernos”: “Ela nos ensinava a sermos sombras, sem nenhuma outra esperança senão seguirmos do corpo para a terra” (COUTO, 1995, p. 20).

Num primeiro plano, o enredo põe às claras o sofrimento de uma nação que sonhou com o glorioso day after da libertação nacional, mas viu-se, por dezesseis anos, mergulhada na violência dos conflitos armados, sendo que os inimigos do turno já não tinham contornos definidos, como foi o caso do invasor europeu. Contudo, num plano complementar, a construção alegórica que estrutura o romance deixa entrever que os “inimigos”, quaisquer que fossem, seriam aqueles que se deixaram mover por interesses contrários aos preceitos ideológicos e ao sonho da nação imaginada: “Pouco a pouco nos tornávamos outros, desconhecíveis. Eu vi quanto tínhamos mudado foi quando mandaram o irmão mais pequeno para fora de casa” (COUTO, 1995, p. 20), lamenta o narrador Kindzu.

O irmão que foi mandado para fora de casa é a personagem Junhito, de quem a representação é emblemática da paulatina morte da utopia no imediato pós-independência. Nascido no dia da proclamação da independência (25 de junho) é alcunhado em referência à data e indicia a sua função alegórica. O pai da família, o velho Taímo, que profetizava as notícias do futuro pela voz dos antepassados, certo dia vestiu-se formalmente — “se gravatara, fato e sapato de sola. A sua voz não variava em delírios” (COUTO, 1995, p. 19) — para anunciar emocionado “um fato: a Independência do país” (ibid.). Desta vez, o velho que “sofria de sonhos” (COUTO, 1995, p. 18) trazia uma notícia concreta, a revelação de uma verdade, de um fato que coincidiria com o nascimento de seu filho:

 

"Nessa altura, nós nem sabíamos o verdadeiro significado daquele anúncio. Mas havia na voz do velho uma emoção tão funda, parecia estar ali a consumação de todos seus sonhos. Chamou minha mãe e, tocando sua barriga redonda como lua cheia, disse:

Esta criança há de ser chamada de Vinticinco de Junhoi" (COUTO, 1995, p. 19).

 

Mas, logo se percebeu que a criançA (2) vindoura não comportaria tamanho estatuto nominal: “Vinticinco de Junho era nome demasiado. Afinal, o menino ficou sendo só Junho. Ou de maneira mais mindinha: Junhito. Minha mãe não mais teve filhos. Junhito foi o último habitante daquele ventre” (COUTO, 1995, p. 19). Ao decidir pela abreviação do nome da criança (que encerrou a fertilidade materna), a narrativa simboliza a independência do país, que já nasce abreviada, encerrando um sonho fértil de esperança, conforme a crítica empenhada na narrativa. O pai-adivinhador talvez suspeitasse que o “vinte e cinco de junho” como sinônimo de independência total, no sentido apregoado pela “geração da utopia” ainda não chegara, assim como acontecera com outro vinte e cinco, o de abril de 1974 (3). Antes mesmo de ser oficialmente promulgado o nome (da criança e do fato histórico alegorizado) foi podado até o diminutivo, “ficou sendo só Junho. Ou de maneira mais mindinha: Junhito”:

 

"No princípio só escutávamos as vagas novidades, acontecidas no longe. Depois, os tiroteios foram chegando mais perto e o sangue foi enchendo nossos medos. A guerra é uma cobra que usa nossos próprios dentes para nos morder. Seu veneno circulava agora em todos os rios de nossa alma. De dia já não saíamos, de noite não sonhávamos. O sonho é o olho da vida. Nós estávamos cegos".

 

A nova guerra, a chamada “civil”, ou guerra de desestabilização, inflamou o recôndito da alma humana (“usa nossos próprios dentes para nos morder”), contaminou a incipiente unidade nacional e instilou o veneno da fragmentação e do caos no seio das famílias: “Aos poucos eu sentia a nossa família quebrar-se como um pote lançado ao chão. [...]. Nós estávamos mais pobres que nunca. Junhito tinha os joelhos escapando das pernas, cansado só de respirar” (COUTO, 1995, p. 19).

Na tentativa de salvar Junhito de uma morte pressentida (pelas armas dos desvalidos no processo de independência), o pai manda o filho camuflar-se na capoeira (o galinheiro): “Ali Junhito aprenderia a comportar-se como as galinhas, comendo as sobras e dormindo ao relento. Resignado a sobreviver sem glória, sem brilho, sem substância” (COUTO, 2005c, p. 193). Ou seja, mal havia nascido e já devia abdicar de seu pertencimento ao mundo dos humanos. Na cultura africana, em que os laços familiares regem, em geral, a dinâmica da vida e da morte, o ato de “[mandar] o irmão mais pequeno para fora de casa” é crime de lesa-tradição familiar africana.

Além de denunciar a perda do lastro familiar, podemos pressupor que essa performatização da memória da independência descreve as tentativas ocorridas, às vezes equivocadas, de preservar politicamente a liberdade recém-conquistada. Tal visão crítica, portanto, acrescenta às ações dos “inimigos de fora”, as próprias decisões dos novos governantes que, em seu desejo de consolidar, em meio ao caos, um projeto de nação — primeiro pelo viés socialista e depois pela chancela do neoliberalismo —acabaria por remeter a nova condição política ao “galinheiro da história”: local dos bichos domesticáveis, exploráveis e antropofagizáveis. Preso em tal galinheiro, tal e qual o sonho da independência, em pouco tempo Junhito perderia a sua identidade original: “Uma manhã, a capoeira amanheceu sem ele. Nunca mais, o Junhito. Morrera, fugira, se infinitara? Ninguém acertava” (COUTO, 1995, p. 22). Talvez o humano tenha se convertido definitivamente em bicho; afinal, “Junhito já nem sabia soletrar as humanas palavras. Esganiçava uns cóóós e ajeitava a cabeça por baixo do braço. E assim se adormecia” (ibid.).

O desaparecimento da esperança, ainda na infância da libertação nacional, potencializa o desequilíbrio individual e social. O velho Taímo que “se gravatara, fato e sapato de sola” para anunciar a “consumação de todos os seus sonhos” foi o que mais enlouqueceu com esse desaparecimento precoce: “O desaparecimento de meu irmão treslouqueceu toda nossa casa. Quem mais mudou foi meu pai. Aos poucos foi deixando as demais ocupações, alvorando e anoitecendo na beberagem” (COUTO, 1995, p. 23).

Em intervenção proferida na Suíça, por ocasião dos 30 anos de Independência de Moçambique (4), o próprio Mia Couto explica o seu intento criativo na alegorização da personagem Junhito, o prometido menino-esperança que se torna símbolo do tolhimento da nação:

 

"Na altura [da criação da personagem], eu denunciava a nossa progressiva perda de soberania, e uma crescente domesticação do nosso espírito de ousadia. Poderíamos ser nação mas não demasiado, poderíamos ser povo mas apenas se bem comportado" (COUTO, 2005b, p. 193).

 

Para representar no plano ficcional essa situação de perda de integridade coletiva, as ações transcritas nos “Cadernos de Kindzu” situam-se em Matimati, uma vila de pescadores, que recebe uma multidão de deslocados da guerra, vindos de diversas zonas rurais em busca do precário refúgio no litoral. O espaço ficcional litorâneo tem especial pertinência no enredo. O mar é tanto um ilusório portal de fuga da geografia de miséria quanto um horizonte de esperança, para onde se voltam os olhos famintos daqueles que apenas aguardam em terra firme o que outras ondas possam trazer.

Uma nação à beira da praia

Em Terra sonâmbula, a imagem da baleia que encalha na praia (COUTO, 1995, p. 27) ilumina o sentido do tempo do narrado, isto é, um tempo em que os sonhos grandiosos dos anos de luta pela independência encalharam na praia da desesperança e da luta pela sobrevivência, mas também da ganância e do egoísmo de alguns dos que detinham o poder. A sonhada independência, aquela em que todos seriam justiçados por seu histórico feito, seria tão fenomenal quanto a visão do maior mamífero marinho. Mas, em ambos os casos, a chegada grandiloquente deu lugar a uma visão apocalíptica: a independência condenada pela guerra, e a baleia condenada pela irreversibilidade do encalhe. Em situação de fragilidade, ambas despertando desejos de apropriação e usurpação. O episódio da baleia moribunda é parte da memória de infância de Kindzu, que, em menino, vigiava o mar ao entardecer na esperança de avistar o magnífico animal:

 

"Ouvíamos a baleia mas não lhe víamos. Até que, certa vez, desaguou na praia um desses mamíferos, enormão. Vinha morrer na areia. Respirava aos custos, como se puxasse o mundo nas suas costelas. A baleia moribundava, esgoniada. O povo acorreu para lhe tirar carnes, fatias e fatias de quilos. Ainda não morrera e já seus ossos brilhavam no sol. Agora eu via o meu país como uma dessas baleias que vêm agonizar na praia. A morte nem sucedera e já as facas lhe roubavam pedaços, cada um tentando o mais para si. Como se fosse o último animal, a derradeira oportunidade de ganhar uma porção. De vez em quando me parecia ouvir ainda o suspirar do gigante, engolindo vaga após vaga, fazendo da esperança uma maré vazando" (COUTO, 1995, p. 26-27).

 

A metáfora é iluminadora tanto do advento da independência (“Até que, certa vez, desaguou na praia [...]”) quanto à denúncia das atrocidades cometidas contra uma nação agonizante. Na conclusão da cena, Kindzu (símbolo do presente) lamenta: “Afinal, nasci num tempo que não acontece. A vida, amigos, já não me admite” (ibid.). O fato de a imagem rememorada por Kindzu trazer como aproveitadores da baleia indefesa “o povo” em seu exercício de sobrevivência, deixa entrever que o estado de violência que, metaforicamente, se estabelece contra a terra, é histórico e resulta, também, da luta cotidiana pela vida; no entanto, é indubitável sobre quem de fato as farpas da crítica recaem. Já em outra cena de semelhante violência contra o “corpo africano”, o narrador que conduz a história de Tuahir e Muidinga explica que um elefante é morto pelos homens da guerra, não para alimentar-se de sua carne, mas para obter lucro com a venda do marfim. O velho e o menino são surpreendidos em seu refúgio, no ônibus incendiado, pelo enorme visitante:

 

"Por entre os altos capins, assoma um elefante. O bicho se arrasta, cansado do seu peso. Mas há no demorar das pernas um sinal de morte caminhando. E, na realidade, se vislumbra que, em plenas traseiras, está coberto de sangue. O animal se afasta, penoso. Muidinga sente o golpe de agonia em seu próprio peito. Aquele elefante se perdendo pelos matos é a imagem da terra sangrando, séculos inteiros moribundando na savana" (COUTO, 1995, p. 46).

 

Assim, as imagens dos dois gigantes sendo violentados, ora por uma suposta necessidade, ora pela ganância, remetem a um longo processo histórico de abusos, praticados também pelos “filhos da terra”.

Narrativas dípticas

Historicamente, a violência dos conflitos armados (guerra civil) em Moçambique que deu a matéria narrativa de Terra sonâmbula teria o seu desfecho com a assinatura do “Acordo de Paz”, em 1992, mediado por forças externas tutoras. Tal solução negociada e seus desdobramentos para o país constituem o pano de fundo do terceiro romance de Mia Couto, O último voo do flamingo (1ª edição: 2000).

 A obra, refletindo o “sonho diurno” (Bloch) natimorto – Junhito e o galinheiro –, articula-se numa sequência temporal, da guerra para a paz, estabelecendo com o primeiro romance uma intertextualidade que confirma o projeto literário coutiano como linearmente progressivo (6). Para além de alguns elementos narrativos de Terra sonâmbula (textos encaixados, narrador testemunha, espaço metonímico), O último voo... recupera e desenvolve a caracterização de personagens, de forma direta ou indireta.

As referências cruzadas entre as situações narrativas, as caracterizações das personagens e a configuração do espaço com as emblemáticas figuras do poder, atingem o paroxismo na transposição direta de uma personagem, de Terra sonâmbula para O último voo..., levando o seu nome e cargo ocupado no primeiro romance: o administrador Estêvão Jonas. O corrupto mandatário, que no primeiro romance firmou um pacto com o espectro do colonialismo, aterrissa em O último voo... com seu poder fortalecido e já encorpado como representação de um grupo: as elites pós-coloniais. Esse grupo social que, tanto em Moçambique quanto em outros espaços africanos no século XX, experimentou, de uma ou de outra forma, as três faces de sua história recente: o estertor do colonialismo, a guerra civil e o tempo de paz.

A recorrência dessa personagem-tipo caricatural na obra de Mia Couto, parece advertir, dialogando com Balandier que:

 

"Já se disse que o revolucionário, desde que triunfa e se estabelece para governar se torna uma caricatura. É que há uma passagem da comunhão libertadora para a dominação instituída, do ato que sacrifica e destrói um poder ao de fundação que estabelece um outro. Durante este período de transfiguração, todos os caracteres ficam de qualquer modo deformados pelo aumento, e, especialmente pelo aspecto dramático da instituição política" (1982, p. 9).

 

Uma das críticas formuladas por Mia Couto em suas intervenções se refere ao uso da miséria material para o que ele aponta como um modo de comover a comunidade internacional e dela receber as chamadas ajudas humanitárias (a crítica, fica claro, não necessariamente está na ajuda, mas no uso político ou pessoal que se faz dela). Basta recordarmos que em Terra sonâmbula o epicentro dos conflitos é um navio de donativos internacionais que naufraga misteriosamente ao se aproximar da baía de Matimati para socorrer os milhares de deslocados da guerra ali reunidos. O acidente, suspeitam os miseráveis, seria obra das próprias autoridades locais, interessadas em controlar a preciosa carga, não para a devida distribuição, mas para dela tirar proveitos.

Tal argumento acusatório é recorrente em seus romances e os recursos literários usados para expressar tal situação vão da alegoria à farsa, como comprovam as palavras de Jonas, eximindo-se de qualquer responsabilidade, transformando a população oprimida por sua administração em culpada pela própria sorte:

 

"— Ás vezes quase desisto de vocês, massas populares. Penso: não vale a pena, é como pedir a um cajueiro para não entortar seus ramos. Mas nós cumprimos destino de tapete: a História há-de limpar os pés nas nossas costas" (COUTO, 1995, p. 69).

 

Já em tempos de paz (n’O último voo...), exacerba-se o egoísmo pela violência concreta, pois além de sonegar a venda de alimentos subsidiados pelo governo aos flagelados por uma economia destroçada, Estevão Jonas é ainda acusado de “replantar” minas antipessoais (um dos mais cruéis artefatos de guerra já inventados); afinal, entre outras calamidades, elas atraíam a atenção e a benemerência internacional, cujo mau uso era vislumbrado por indivíduos ou grupos corruptos.

Considerações finais

O primeiro caderno de Kindzu, intitulado “O tempo em que o mundo tinha a nossa idade”, o narrador inicia a sua história afirmando a dificuldade de transcrever “em português visível” (como dirá o seu análogo em O último voo...) aquilo que ele assistiu e vivenciou: um tempo de catástrofe:

 

"Quero pôr os tempos, em sua mansa ordem, conforme esperas e sofrências. Mas as lembranças desobedecem, entre a vontade de serem nada e o gosto de me roubarem do presente. Acendo a estória, me apago a mim. No fim destes escritos, serei de novo uma sombra sem voz" (COUTO, 1995, p. 17).

 

Ao final da narrativa, ele retoma esse lamento angustiado:

 

"Agora era como se esses fantasmas trabalhassem em minha cabeça para me transmitirem seus segredos, revelações de um outro mundo. Vou relatar o último sonho a ver se me livro do peso de terríveis lembranças. Não quero que tais pensamentos me regressem. Preciso dormir, totalmente dormir, me emigrar deste corpo cheio de esperas e sofrências" (COUTO, 1995, p. 240).

 

Ao assumir a tarefa de registrar em palavras escritas essa realidade quase inverossímil, uma atmosfera de sombras e engodos, Kindzu torna-se, ele próprio, um sonâmbulo. Comporta-se como um narrador, cujo estatuto não é o de apenas intrometer-se, opinar, questionar, mas como aquele que circula por um mundo que é o seu, mas ao mesmo tempo não é – como o assimilado que fora no tempo colonial, sabendo, de fato, o engodo da situação (7). Como eco intelectual de seu criador, ele assiste a tudo, ouve relatos e testemunhos e impõe-se a dúvida quanto ao estado de onirismo em que pode estar envolvido. “Talvez, quem sabe, cumprisse o que sempre fora: sonhador de lembranças, inventor de verdades. Um sonâmbulo passeando entre o fogo. Um sonâmbulo como a terra em que nascera” (COUTO, 1995, p. 130).

O projeto literário de Mia Couto especialmente exemplificado por Terra sonâmbula revela, pela via da ficção, inquietações sobre os caminhos da terra em que nasceu como o fruto de mundos dissonantes. O escritor africano subsaariano branco, filho de ex-colonos e que não deixa dúvidas sobre a sua “moçambicanidade” desempenha, sem concessões político-ideológicas, o seu próprio papel de narrador, ou “tradutor” deste mundo, que, afinal, é o seu espaço de existência e que persiste, nesses quarenta anos de independência política, a questionar se “No passado o futuro era melhor?”, isto é, se o horizonte vislumbrado no pré-1975 não teria prometido cores mais brilhantes do que os indefinidos matizes da opaca história que ainda procura escapar do “galinheiro” em que foi colocada.  

Referências Bibliográficas

BALANDIER, Georges. O poder em cena. Trad. Luiz Tupy Caldas de Moura. Brasília: Editora da UNB, 1982.

COUTO, Mia. Terra Sonâmbula. Lisboa: Editorial Caminho, 1993; Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995.

COUTO, Mia. O Último Vôo do Flamingo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

COUTO, Mia. "Moçambique – 30 anos de independência: no passado, o futuro era melhor? (Ensaio)". Via Atlântica, Universidade de São Paulo, São Paulo, No. 8, 2005b.

LEITE, Ana Mafalda. Oralidades & escritas nas literaturas africanas. Lisboa: Ed. Colibri, 1998.

MATUSE, Gilberto. A construção da imagem de moçambicanidade em José Craveirinha, Mia Couto e Ungulani Ba Ka Khosa. Maputo: Livraria Universitária, UEM, 1998.


*Doutora em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa pela Universidade de São Paulo. É autora do livro Boaventura Cardoso, Mia Couto e a experiência do tempo no romance africano (São Paulo, Terceira Margem, 2012). Professora da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB).

(1) O pesquisador moçambicano reitera, por óbvio que pareça, que “o texto literário constrói um mundo fictício através do qual modeliza o mundo actual, representando-o metafórica ou metonimicamente, instituindo, portanto, uma referencialidade mediatizada” (MATUSE, 1998, p. 70).

(2) A infância é uma temática constante nas literaturas africanas, e não apenas como alegoria da esperança no devir, mas também como a representação de um futuro natimorto, impedido de florescer em meio à luta cotidiana pela sobrevivência. Já em Vozes anoitecidas (1986), no conto "A menina de futuro torcido", Mia Couto denuncia a aniquilação do corpo infante num pacto fracassado com o destino. O esgotamento do futuro ainda em sua meninice é alegorizado pela transformação que um pai, sonhando com dias melhores para a miserável família, impõe à pequena filha, tentando transformá-la numa contorcionista e negociá-la com um empresário do tipo circense. Em decorrência dos severos exercícios corporais, pelos quais ela deveria "amolecer os ossos" e aprender a curvar-se até o chão como uma invertebrada, ela não somente não salva a família da miséria, bem como tal atrocidade rouba-lhe a vitalidade até à morte.

(3) Como lamenta a personagem de Mia Couto, na comemoração dos colonos, em 25 de abril de 1974: “Vinte e cinco é para vocês que vivem nos bairros de cimento. Para nós, negros pobres que vivemos na madeira e zinco, o nosso dia ainda está por vir” (COUTO, 1999, p. 11, grifo nosso). Esse dia ansiado também foi celebrado efusivamente em 25 de Junho de 1975 pelos pobres dos bairros de zinco, “mesmo que, na altura, lhes pesasse a leve suspeita de que a libertação da miséria é um processo que demora ainda várias gerações” (COUTO, 2005, p. 58).

 

(5)  “Moçambique — 30 anos de Independência: no passado, o futuro era melhor?”. O texto está reproduzido na Revista Via Atlântica, nº 8, São Paulo: FFLCH,USP, 2005, p. 191-204.

(6) A tríade romanesca coutiana que tematiza num movimento cumulativo, os primeiros anos da independência moçambicana (Guerra → Identidade nacional → Paz) é formada, respectivamente, por: Terra Sonâmbula, A varanda do frangipani e O último voo do flamingo. Os dois primeiros localizam-se temporalmente no período da guerra civil. Mas, se no primeiro o foco é o re-equilíbrio social e a denúncia dos abusos em tempo de caos, no segundo, o enredo questiona não apenas o "golpe" contra o povo em seus direitos básicos, mas o "golpe contra o antigamente" (COUTO, 2008, p. 98), um golpe contra o que se poderia chamar de moçambicanidade histórica, de respeito também às formas do passado, ali representadas pelos velhos insulados (LEITE, 1998, p. 71). Já no terceiro (UVF) há uma clara retomada de diálogo com o primeiro romance, sem deixar de contemplar, também, temas abordados em A varanda...

(7) Kindzu sente-se provocado e ameaçado pela palavra “patrão” que ouve dirigida a si pela boca de um desafeto que, por inveja, condenava sua assimilação aos valores branco-europeus: “Patrão. Aquele moço teimava em chamar-me assim. Em sua boca aquele termo surgia como ofensa, um cuspe azedo. Mostrava que, apesar de meus modos assimilados, eu pertencia à sua raça. Um dia iria pagar ter traído essa condição” (COUTO, 1995, p. 132).

 

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