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				 Nos tempos românticos do 
				bom selvagem, um indígena americano ou asiático visitava a 
				metrópole europeia para lançar uma mirada crítica à civilização. 
				Ou então um representante da superior civilização coligia 
				exaustivas informações in loco acerca do modo de vida dos 
				selvagens, a que o riscador acrescentava coloridas aquarelas que 
				mostravam roupas ou corpo despido, penteados, armas e alfaias; 
				intitulavam-se memórias e itinerários filosóficos estes 
				inventários em que ainda se anotavam veículos de transporte 
				terrestre e de navegação, fábricas, tinturas, combustíveis, 
				materiais explosivos, plantas medicinais e diversas outras 
				boticas. Não esqueçamos os mapas, a navegabilidade dos rios, a 
				fundura dos ancoradouros, a temperatura dos ares nem a altitude 
				dos plainos e dos picos. Gente superiormente civilizada, que ia 
				abrindo estradas à medida das passadas, segundo o ancestral 
				modelo dos romanos, e colecionando folhas, frutos, rochas e 
				animais, para prova de que o território se encontrava sob o 
				domínio do conhecimento científico. Recordemos exploradores como 
				Serpa Pinto que, para a cabal travessia dos desertos, rios, 
				rápidos, cataratas, matos e florestas do continente negro, 
				importaram de Inglaterra os finíssimos serviços de chá. 
				 
				
				 
				Olhares um pouco às 
				avessas foram os dos dois persas em tournée europeia com 
				extasiada permanência em Paris, tecendo comparações ingenuamente 
				mordazes – isto através do olhar do filósofo, claro, o 
				Montesquieu das Lettres persanes que permitiu o infeliz 
				desenlace de uma Roxane, entre mais quatro esposas legítimas 
				abandonadas, ela que não só era a favorita do espécime exótico 
				em devaneio parisiense como dos vários eunucos encarregados de 
				guardar o harém na Pérsia. 
				
				 
				Idênticos choques 
				culturais e civilizacionais apresentam-se igualmente quando 
				enfrentamos os caminhos de um livro, muito mais desafiadores 
				então quando se trata de uma obra já florestal em número de 
				títulos e em diversidade de géneros, na maior parte mais 
				complexos do que a norma, por se tratar de híbridos: contos, 
				romances, crónicas, teatro, poesia, e textos de encanto, 
				lindamente ilustrados, para uma infância cujos limites etários 
				não é oportuno discutir aqui, bastando anotar que pode ser a 
				nossa, atual, neste redundante agora… Obra de Mia Couto, 
				escusado referir. 
				
				 
				Na nossa assembleia de 
				ex-bons-selvagens na totalidade com a minha única exceção (a 
				menos que remontemos a tempos célticos, godos, ou mesmo àqueles 
				em que frequentava a escola de ferir o xisto e o granito para 
				nele deixar os pictogramas patentes hoje na Canada do Inferno e 
				noutros recintos paleográficos de Foz Côa, datados alguns de há 
				vinte e cinco e trinta mil anos), nesta assembleia de 
				ex-bons-selvagens, dizia – Mia Couto e exegetas brasileiros, que 
				espreitais à porta da sua morança africana – qual seria agora o 
				olhar do filósofo, representante da ex-potência civilizadora? À 
				parte a língua, que é a mesma, em distintas tonalidades, o que 
				parece entre nós traço de união é o dos afetivos «-ex»… O dos 
				afetos, melhor dizendo. Estamos todos presos a uma terra-mãe que 
				pode ser a do outro, nô djunta mon, como se diria em 
				Bissau, para uma festinha de familiaridade. 
				
				 
				Pesa-me na mochila mais 
				a cultura anglo-americana, veiculada pelos meios de comunicação 
				de massa, do que aquela que exerci sobre vós outrora – tão 
				ligeira que nem a língua deixei em África, e menos ainda na 
				Ásia, segundo parece. Se ficou no Brasil é porque, antes de a lá 
				deixar, já lá estava, à semelhança de um qualquer fenómeno de 
				infestação devido à introdução quiçá ilegítima de espécies 
				exóticas. Exotismo e endotismo, eis dois temas que valia a pena 
				rever na literatura, não porém à luz das letras, sim à de 
				conceitos biológicos que nos falam, por exemplo, das viagens das 
				plantas e dos animais. Vejamos: errará muito o persa em Maputo 
				se, face às mais comuns árvores de fruto moçambicanas, descobrir 
				que algumas são persas, e asiáticas e brasileiras na 
				generalidade as mais substanciais? E agora? Que diz o indígena? 
				O filósofo é capaz de conceder em que a coisa já passou à 
				categoria de ex-ótica, pois, o que diz respeito ao Homem, 
				estamos cansados de o saber, precisa de ser encarado como 
				cultural, de selvagem ou natural nada tem. 
				
				 
				Voltemos à língua, a 
				perguntar se é exótica ou se já terá sido naturalizada. A minha 
				superior civilização terá imposto em Moçambique a língua 
				portuguesa? Rezava o Regulamento do Colégio e Liceu Honório 
				Barreto, em Bissau, e eu o atesto como ex-aluna, que era 
				proibido falar crioulo nas aulas. Tudo bem, meus senhores: nem 
				crioulo nem papel, nem balanta, nem fula, nem mandinga, só o 
				portuguesinho da praxe. E então? Quantos dos meus colegas 
				ficaram, com a proibição das suas línguas maternas, meus irmãos 
				na partilha da minha? Alguns dez por cento, não é verdade? Mia 
				Couto, em Moçambique, faz parte dos mesmos dez por cento, 
				devendo por isso considerar-se exótico, uma figura minoritária, 
				excecional, no mapa das línguas mais faladas no seu país. 
				
				 
				Não impus a minha 
				língua, apesar da legislação em contrário. África, no caso a 
				Guiné(-Bissau), é que me seduziu a mim com o seu crioulo leve e 
				kriol fundo, mais os papiares de indecifrável origem 
				linguística, similares aos que se patenteiam nas obras do autor 
				moçambicano. O exercício de decifrar é lento e gostoso, mas 
				pouca diferença faz o código – se língua das aves, como tanto 
				cimentou Richard Khaitzine em relação aos surrealistas, se o 
				galaico-português da cantiga de Pai Soares de Taveirós, se os 
				tantos papiares das diversas populações do globo, ou se o 
				resultado das suas misturas – e a fusão é uma das grandes artes 
				de Mia Couto, conhecedor da zootecnia, e por isso sábio de que 
				só o híbrido é absolutamente novo, mesmo no caso vertente, em 
				que, do ADN, só participam os carateres linguísticos que o 
				simbolizam. 
				
				 
				Sinto-me o mais possível 
				resultado dessa mistura. Já não sinto o peso dela, quase ignoro 
				a sua presença genética, de tão naturalizada a herança romana e 
				árabe, abismada no âmago da nossa conversa. Porque também vós a 
				partilhais, e em cima dela a herança castelhana. Eis algo cuja 
				abominação causa estranheza, portanto custa a assimilá-lo, mas 
				houve um tempo em que todos – de Bissau a Cabinda, de Moçambique 
				a Timor, de Damão ao Rio de Janeiro – houve esse tempo longo de 
				sessenta anos em que todos fomos espanhóis. 
				 
				
				 
				E, se formos a ver, em 
				matéria de selvagens, com toda a carga surrealista que 
				pessoalmente transporto no currículo, sou bem capaz de o ser 
				mais do que todos vós juntos, aliás sois apenas ex-, ao passo 
				que eu estou ainda no ativo. E com isto, finalmente, cá chegámos 
				à pousada do surrealismo. 
				 
				
				 
				Um filósofo senegalês, 
				Massaer Diallo, na Paris dos anos 80, empreendeu a mesma tarefa 
				dos protagonistas das Lettres persanes: fitou, olhos nos 
				olhos, o ex-civilizador, aquele que quis exterminar os mitos, os 
				ritos, enfim, tudo o que nos selvagens era sinal de inferior, ou 
				tudo o que nos indígenas era sinal de selvajaria, como a crença, 
				a superstição, os mitos, os ritos e as magias, apelando portanto 
				para a necessidade de os salvar, mediante conversão – ao 
				catolicismo, naturalmente. Aproveito para reforçar a hipótese de 
				colonização leve com a pergunta: sendo a primeira ferramenta 
				civilizadora o missionarismo católico (a segunda era a 
				científica, levada a cabo pelos exploradores e naturalistas, e a 
				terceira era a militar), daí decorreu a imposição do catolicismo 
				em África a ponto de ser hoje religião dominante? Predominante 
				talvez nos dez por cento da população que falam português. 
				Convenhamos, entretanto, que algo ainda hoje nos une e religa, 
				passados séculos e décadas sobre o divórcio, mas esse elo 
				cultural nasce no coração, é um sentimento de pertença à terra e 
				à família que fala, mesmo mal, a língua portuguesa. 
				
				 
				No Senegal, como na 
				Guiné-Bissau, o que domina é o Islão. Em Un regard noir, 
				Diallo, o filósofo senegalês, pergunta aos surrealistas, e 
				exatamente aos surrealistas, não a quaisquer outras sumidades 
				étnicas nem culturais, por que motivo tinham ido a África buscar 
				a magia, se em Paris, para quarenta mil médicos, havia trinta 
				mil marabus, videntes e afins, nesses já sobreditos anos de 
				1980. E não era quem mais facilmente supomos o paciente, sim 
				empresários, intelectuais, políticos, milionários. Sem contar 
				com autores como Mia Couto, que acodem à tradição como 
				surrealistas, para beberem na fonte original e para que não 
				desapareça debaixo das botifarras anglo-americanas; tradição é 
				igual a natividade, identidade, infância, endotismo, se bem que 
				também Herberto Helder, por exemplo, partilhe o marabutismo 
				angolano, de dentro, vivido in loco, ficando eu agora na 
				dúvida sobre se deva interpretar e o quê como tradição ou 
				aventura, sabendo que os dois termos arrancaram a par da 
				inspiração  da vanguarda. 
				
				 
				Consta que De Gaulle se 
				fazia acompanhar nas viagens por Madame Soleil, a sua astróloga, 
				e que Miterrand lhe seguiu as pisadas. Em suma, o pensamento 
				selvagem não é específico dos bons selvagens, sim uma estrutura 
				pensante apta para lidar com os aléns, transversal às 
				comunidades, classes e nações, como nos explicou Lévi-Strauss. 
				Não devemos assim ficar inquietos por os ex-civilizadores não 
				terem conseguido impor a mais avassaladora ferramenta 
				civilizacional, a língua, nem exterminado o mais avassalador dos 
				fantasmas contra-civilizacionais, o marabutismo. Marabus 
				senegaleses, idos do Senegal, e marabus falsificados, de 
				extração francesa, cigana, brasileira – que sei eu? – era o que 
				mais havia em Paris nos famosos anos 80, e não vamos 
				responsabilizar por isso nem o maio de 68 nem os ranchos de 
				hippies, que se limitaram a acentuar a questão com angélicas 
				coroas de flores. Hoje como antes e depois, não há moedas de uma 
				só face, quem quer o mythos terá de sofrer com paciência 
				o assédio do logos. Ou vice-versa. 
				
				 
				Não desejava avançar sem 
				duas palavras de comentário a um aspeto selvagem e 
				correligadamente surrealista da obra de Mia Couto, quer ele 
				tenha lido ou não André Breton, quer tenha visto ou não pinturas 
				de Picasso, mais conhecido como cubista, e de Salvador Dali. É o 
				caso algo macabro, de discutível humor negro, do despedaçamento 
				do manequim. Vamos lá: o manequim, boneco das lojas de roupa, é 
				um dos mais típicos objetos surrealistas, por inúmeros 
				apresentado em exposições ou livro, nu ou vestido, despido com 
				colar de pérolas na orelha, vestido no pé com longa boquilha e 
				cinto de ligas, e também, em atuação algo mais ao género do 
				policial negro, que é a deslocação de membros do seu lugar 
				próprio para o de órgão vizinho ou despedaçamento do corpo, 
				aliás do manequim. E então deparamos com objetos surrealistas 
				puros, prontos para sequente collage, se necessário, 
				constituídos por partes do corpo que ganham autonomia em relação 
				à totalidade, ou, para usar termo em voga, adquirem potencial 
				holístico. Dois exemplos pelo menos se patenteiam neste livro, 
				coligidos nos romances de Mia Couto: o dos pés que caminham 
				sozinhos, deixando ápodo o sujeito, algures; e o dos órgãos 
				genitais masculinos, pendurados nos ramos das árvores. Este 
				objeto surrealista aproxima-nos de forma espetacular tanto da 
				tradição como da vanguarda. Tem  origem no 
				salmo 136:  
				  
				Junto aos rios de 
				Babilónia nos sentámos a chorar,  
				recordando-nos de 
				Sião. 
				Nos salgueiros das 
				suas margens  
				pendurámos as nossas 
				harpas.  
				  
				O salmo 136 foi glosado 
				por poetas vários, desde Camões, em Super flumina, a 
				Mallarmé, em Le démon de l’analogie, desde Mallarmé ao 
				Herberto Helder das Servidões. Façamos da memória um rio 
				para navegarmos até à fonte camoniana, locus amoenus para 
				vos acenar com um «Gostei de estar convosco, adeus e até breve»: 
				  
				Como homem que, por 
				exemplo 
				dos transes em que se 
				achou, 
				despois que a guerra 
				deixou, 
				pelas paredes do 
				templo 
				suas armas pendurou: 
				Assi, despois que 
				assentei 
				que tudo o tempo 
				gastava, 
				da tristeza que tomei 
				nos salgueiros 
				pendurei 
				os órgãos com que 
				cantava. 
				  
				  
				Portugal, 
				26 de abril de 2014. 
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