|
|
Poeta, dramaturga,
historiadora da História Natural e da
Maçonaria Florestal Carbonária, além de
exegeta da obra de Herberto Helder. Faz
parte do
Conselho Editorial da revista
Incomunidade, em
www.incomunidade.com. e
colabora com Carlos Loures n'A Viagem dos
Argonautas, em:
http://aviagemdosargonautas.net/.
Dirige coleções na editora Apenas
Livros, entre elas
CadeRnos
SuRRealistas SempRe. Tem umas
dezenas de títulos publicados.
Foto: António Taveira |
|
|
|
MARIA ESTELA GUEDES
Sarmento Pimentel em «Lúcio Feteira»:
amigos próximos, reputações distantes
|
|
|
|
Em memória de Maria Elisa
Pérez |
|
|
Miguel Carvalho, jornalista português,
grande repórter, cometeu um feito digno de registo com a obra
«Lúcio Feteira» - a de nos dar um romance a ler em vez de um
ensaio histórico, sem nos deixar
na situação ambígua de não sabermos se podemos ou não usar a
informação nele patente, quando, como é o meu caso, precisamos dela
para a recontextualizar e republicar. E não só preciso eu como podem precisar
outros investigadores envolvidos no projeto do Triplov,
«Sarmento Pimentel».
Fundamentado num acervo monumental de
documentos, o que por si só já seria muito meritório, o autor
consegue tecer uma trama narrativa aliciante costurando quase
sempre a sua grande teia com fios às vezes mínimos, provenientes
de arquivos e bibliotecas variados, distribuídos pelo País,
entre eles, para o que mais de perto nos toca, o espólio do
"capitão" na Biblioteca Municipal Sarmento Pimentel, em
Mirandela. Ao trabalho do investigador acresce o de jornalista,
ao coligir depoimentos e ao entrevistar mais de duas dezenas de
testemunhas. Reiterando, a obra, tal como foi concebida,
dificilmente se sustentaria sem a sua genuína veia de
romancista.
O livro de Miguel Carvalho data de 2011 e apresenta-se como primeiro volume.
Não consegui descobrir o segundo, esperemos que
esteja a caminho das livrarias e nos elucide sobre o homicídio
de Rosalina Ribeiro, secretária e amante do grande industrial,
sobre o qual pairam suspeitas de o mandante ter sido Duarte
Lima, seu advogado, um ex-deputado português. O crime foi
cometido no Brasil, Estado do Rio de Janeiro.
Esperamos ainda dados sobre o destino da imensa fortuna de Lúcio
Feteira, industrial, comerciante e grande proprietário de
fazendas, dono da Covina (Companhia Vidreira Nacional) em
Portugal, da Covibra no Rio de Janeiro e da Companhia Paulista
de Vidro Plano em São Paulo, homem a quem os poderosos não recusam
o epíteto de "génio", mas que também recebeu, entre moedas
opostas, descritivos que o situam no Inferno, em conciliábulo
com os outros Demónios. Por diversas
vezes no livro alguém lhe chama "gangster", o que desperta
o desejo de comparação com o seu muito próximo amigo Sarmento
Pimentel, que conseguiu escapar de reputação incólume por entre
décadas de revoluções, conflitos políticos e comerciais em que
invariavelmente ocupava postos de liderança.
Lúcio Feteira, 13 anos mais novo do que Sarmento Pimentel,
chegou ao Brasil em junho de 1941, quando o "capitão" já ali
estava instalado e bem adaptado, pois o seu exílio datava de
1927, motivado pelo golpe falhado contra a
ditadura, aliás o primeiro. Integrado,
mas sempre de chaves da casa no Porto no bolso, na iminência de
uma feliz notícia política que o instigasse a vir celebrar a
libertação da sua Dulcineia, essa Pátria pela qual fez tantos
sacrifícios e pela qual correu perigo de vida. Tão
adaptado vivia Sarmento Pimentel, liderando agora a
oposição mais com a caneta do que com as armas de guerra,
que Lúcio Tomé Feteira, quando
desembarcou nas Terras de Vera Cruz, levava com ele algo de suma
importância: uma carta de
recomendação para Sarmento Pimentel, assinada por Nuno Simões.
Nuno Simões,
advogado aureolado com o título de "padrinho", porque
"desenrasca empregos, abre portas, dá e empresta dinheiro a quem
a ele recorre em momentos de aflição", entrega a Lúcio uma carta
de recomendação para Sarmento Pimentel porque este é um homem de
poderes e de confiança, conhecido por encaminhar emigrados
opositores do regime em Portugal. Além disso, no meio
empresarial, Sarmento Pimentel podia ajudar Lúcio Feteira, como
ajudou.
A teia de relações
de Nuno Simões englobará, ao longo da vida, entre outros,
escreve Miguel Carvalho, "os intelectuais
oposicionistas Aquilino Ribeiro, António Sérgio e Câmara Reys, o
ideólogo da ditadura António Ferro, gente da finança como Pinto
de Magalhães, os políticos portugueses Mário Soares, Vasco da
Gama Fernandes e Raul Rego, o jornalista e militante comunista
Miguel Urbano Rodrigues, os políticos brasileiros Carlos de
Lacerda e Juscelino Kubitschek, o general Norton de Matos, o
diplomata Álvaro Lins e o já falado Cerejeira".
Vários nomes listados por Miguel Carvalho como relacionamentos
de Nuno Simões, o "padrinho", também são pessoas das relações de
Sarmento Pimentel, e insisto em designações como "padrinho" e
"gangster" para anotar algo de razoavelmente digno de espanto
quanto ao "capitão": a sua reputação é quase tão imaculada como
um vestido de noiva, apesar do contacto com aqueles que sem
rebuços são chamados aldrabões e por aí acima.
Em tempos de guerra, de ditadura, de prisões, tortura e
perseguição da PIDE, inumeráveis crimes cometidos pelo Governo
contra os cidadãos, é de esperar que a resistência e a oposição
também tivessem as suas armas negras. Mas precisamente: Sarmento
Pimentel participou em tantos golpes, tantas revoltas, na
língua nem usava punhos de renda, e passou imaculadamente limpo por cem
anos de vida e mais de oitenta de luta, com apenas uma tentativa
de salpico na
casaca branca, que até agora tenha eu detetado.
Lúcio Feteira e Sarmento Pimentel teriam vidas unidas pela
amizade e pelos negócios certamente até à morte do segundo.
Também os ligava a necessidade de dar descanso às lutas e zelar
pela família. Entre a incomensurável extensão de terras que o
industrial viria a adquirir e justificam o esclarecedor título
de capítulo "Era tanta a terra que pensei proclamar-me rei
daquilo", figurava a fazenda Pedra Maria, no Estado de São
Paulo, que às vezes emprestava a Sarmento Pimentel, para ele ali
passar férias e fins de semana com a mulher, Isabel, e restante
família. Em carta para Fortunato Seara Cardoso, seu cunhado e diretor
de O Comércio do Porto, João Sarmento Pimentel escreve:
"Aos sabados e domingos vamos tomar sol e ar do campo num sítio
que me emprestou o meu amigo Lucio Feteira e onde temos tudo
quanto são miunças de quinteiro e até faisões!"
Esta e outras
cartas para o pai, Fortunato Seara Cardoso, foram-nos oferecidas
por Maria Elisa Perez,
sobrinha de Sarmento Pimentel, há cerca de um ano. No mês passado,
a nossa querida amiga morreu tranquilamente, na sua casa da Rua
da Constituição, no Porto. Daí que este artigo lhe preste homenagem.
|
|
Carta de Sarmento Pimentel para o
cunhado, Fortunato Seara Cardoso, de São Paulo, 3 de maio de 1968, em que menciona
os dias passados na fazenda Pedra Maria, de Lúcio Tomé Feteira.
Em baixo, presa com clip à carta, uma foto
tirada na fazenda. Nas costas da foto, Sarmento Pimentel informa
que se trata da primeira
lição de caça dada ao neto, João Carlos, e ao perdigueiro Lord. |
|
|
O relacionamento com Lúcio Feteira
faria este e Sarmento Pimentel embarcarem na maior aventura das
suas vidas, afirma o jornalista Miguel Carvalho. Não obstante
Sarmento Pimentel continuar a luta contra o regime na oposição,
no Brasil, e Lúcio Feteira vir a financiar golpes e opositores
(sem hostilizar Salazar de forma pública, ao contrário:
louvaminhando-o quando era conveniente), não foi
mais uma revolta armada a maior aventura dos dois homens, sim o embarque no mesmo negócio.
Sarmento Pimentel já tinha no seu currículo várias experiências
como homem de negócios, trabalhara catorze anos na Companhia
Souza Cruz, uma empresa de tabacos em que chegou a subgerente. Vivera três anos
em Buenos Aires, para alargar os negócios da firma. Não será surpreendente
assim a aliança
com o famoso milionário, que se ligará a todos os que tinham
nome ressoante em Portugal, Brasil e até no estrangeiro, desde líderes
políticos a banqueiros como Cupertino de Miranda e Espírito
Santo, desde grandes
intelectuais a grandes vigaristas, como Alves dos Reis, o
falsário.
Na opinião de Sarmento Pimentel, Lúcio "era um homem
ousado, inteligente e de generosidade invulgar." Influenciado
pelos depoimentos de quem o conheceu, Miguel Carvalho
insiste, ao longo do livro, na tecla da generosidade interesseira,
facto compreensível em quem no horizonte via brilhar apenas o
dinheiro. Parece uma estratégia publicitária de composição de
imagem, quem sabe se antecipadora do que agora é tão comum.
Então temos que Lúcio dava dinheiro (só) quando estava
alguém a ver... Nada de meter discretamente a mão no saco das
esmolas, o gesto exibia-se para a plateia. Fosse como fosse, é certo que financiou golpes e
golpistas, protegeu oposicionistas como Mário Soares, entre
muitos. Aliás, a proteção a Mário Soares já vinha da Covina, em
Vieira de Leiria, onde ele trabalhou, decerto como
advogado - e outros advogados ilustres trabalharam para Lúcio
Feteira, a exemplo de Azeredo Perdigão, futuro presidente da
Fundação Calouste Gulbenkian que, nos seus tempos áureos,
funcionou como segundo ou único Ministério da Cultura em
Portugal.
Essa maior aventura das suas vidas foi então a criação de fábricas de vidraça no
Brasil, que Lúcio quis expandir para todo o continente
americano e depois entregou aos americanos dos Estados Unidos,
porque, além do dinheiro, o que o fascinava era construir e não
administrar. Seguindo Miguel Carvalho, "no final da vida,
numa entrevista à Flama, Sarmento Pimentel 'reconheceu
o óbvio': "Fundei uma fábrica de vidro com o Feteira e ganhei
muito dinheiro. Acabámos por vender tudo aos americanos".
Postos os azares da vida, não ganhou assim tanto que o tivesse
salvaguardado das crises brasileiras: José Verdasca (1), que tem
dado à estampa vários artigos no projeto "Sarmento Pimentel",
amigo e companheiro em São Paulo, frequente conviva do
"capitão", refere-se às vezes à circunstância de que nos tempos
mais recentes as refeições na Avenida Itacolumi já não eram os banquetes de outrora.
Tão penosa se apresentava aliás a situação que José Verdasca intercedeu
junto do então Presidente da República, Ramalho Eanes, para que
o "capitão" Sarmento Pimentel
fosse promovido a general. Assim aconteceu, passando a auferir
uma aposentadoria que o
desafogou da difícil situação financeira (2).
Lúcio Feteira e Sarmento Pimentel, não obstante as diferenças,
sobretudo as de caráter, partilhavam experiências similares que
os devem ter aproximado a ponto de uma amizade indissolúvel e de
Pimentel aparecer em «Lúcio Feteira» como o paladino deste.
Entre outras aventuras, ambos tinham estado em Angola, Pimentel
nas guerras de pacificação e no rescaldo da invasão alemã em
Naulila, Lúcio no Congo Belga, onde travou relações com o futuro
Rei Leopoldo, e conta, meio a sério meio a brincar, que ia sendo
comido pelos antropófagos e que muitos dos seus trabalhadores
tinham ido parar aos seus caldeirões. Talvez tivesse conhecido
populações canibais, talvez os canibais fossem os europeus ainda
a estripar África com as partilhas. Recordo que uma das tarefas
do "capitão" na bacia do Cunene foi a de desenhar mapas (3),
inexistentes, desculpa usada pelos alemães para terem penetrado
no que então era território português: não sabiam onde ficava a
fronteira... Ora se não havia cartas era porque o famoso mapa
cor-de-rosa não contemplava a região, desértica, que na altura,
século XIX, não interessaria a ninguém, mas aos antropófagos de
1914-1918 já interessava, por causa da água para a pitança, que
jorrava nas cataratas de Ruacaná.
A aventura empresarial decorre entre situações que, aos incalculáveis rendimentos provocados pelo
genial Lúcio Feteira, aliam o modus operandi, e fica
claro que o mundo dos negócios é tortuoso em demasia. Tão
tortuosos os caminhos que levam ao dinheiro que ainda agora, em
2016, aguardamos desfechos de pleitos em tribunal, pois a disputa da fortuna de Feteira já contou com
assassínio.
Algumas reuniões de administração de
empresas foram engalanadas com insultos e ameaças de morte. E
Sarmento Pimentel vai escapando aos pingos de chuva sem se
molhar. Pelo menos, nada de factual lhe bate, pois Miguel
Carvalho não pormenoriza sobre todos os que nelas participavam.
Admitamos que o "capitão" tenha sido salpicado naquela que o
levou a contar a história do sujeito que dali saiu conhecido
como "bunda atómica" e não será por isso que na casaca branca
alastra a manchita única que vi ser-lhe assacada e qualquer um
pode limpar. Admitamos que tenha sido borrado pelos insultos em
reuniões que nem Azeredo Perdigão pouparam, mas que provas temos
a favor ou contra? Insultos que movem Sarmento
Pimentel a escrever: "Se eu tivesse autorização de
quem tiraniza Portugal para ir a Lisboa, aí estaria para dar um
tiro na boca do crápula que pretendeu infamar a minha vida de
homem trabalhador e sempre honrado".
Tão amigos e próximos que virão juntos a Portugal, nos anos
cinquenta, quando o governo de Salazar entreabre a porta de uma
pseudo-amnistia e Sarmento Pimentel viaja durante seis meses pela
sua terra, com a
morte na alma, pois apercebe-se de que a amnistia é só máscara.
Se quisesse ficar, tal não lhe seria permitido.
Qual a manchita, única por mim encontrada, vinda de gente séria,
mas facilmente removível da casaca de Sarmento Pimentel?
- A de afinal
não serem tão livres como propalavam os intelectuais da revista Homens
Livres (a cuja lista o "capitão" dera o nome, embora não tivesse colaborado em
nenhum dos dois únicos números). E não eram livres porque
se tinham deixado
seduzir pelo Poder, a exemplo de Sarmento Pimentel, ao assumir a
pasta de chefe de gabinete de
Ezequiel Campos, ministro da Agricultura, no governo de José
Domingues dos Santos (1924-1925), num período em que a Seara
Nova era tão importante como lobby político que se
recrutavam seareiros para membros do governo, e mais uma vez
Sarmento Pimentel é prova disso.
Toda a sua vida foi luta política,
a Seara Nova fornecia um modelo de governo, modelo
socialista, os artigos de
Sarmento Pimentel na revista atacavam uma situação que ele
propunha fosse mudada. Posto isto, é fácil concluir que o "capitão" também
foi um político, e não seria por defender a liberdade no
movimento dos Homens Livres que lhe
estaria vedado o exercício de funções num governo que ele
aprovava.
|
|
(1)
http://www.triplov.com/hist_fil_ciencia/sarmento_pimentel/jose_verdasca/index.htm
(2)
http://www.triplov.com/hist_fil_ciencia/sarmento_pimentel/jose_verdasca/sp_04.htm
(3)
https://aviagemdosargonautas.net/2016/03/11/portugal-na-grande-guerra-por-maria-estela-guedes/
|
|
MIGUEL CARVALHO
Lúcio Feteira
A história desconhecida
Vol. I - Das origens à glória
Vila do Conde, Editora QuidNovi, 2011
Contacto com o autor:
feteiralivro@gmail.com |
|