REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


NS | número 59 | julho-agosto | 2016

 
Poeta, dramaturga, historiadora da História Natural e da Maçonaria Florestal Carbonária, além de exegeta da obra de Herberto Helder. Faz parte do Conselho Editorial da revista Incomunidade, em www.incomunidade.com. e colabora com Carlos Loures n'A Viagem dos Argonautas, em: http://aviagemdosargonautas.net/. Dirige coleções na editora Apenas Livros, entre elas CadeRnos SuRRealistas SempRe. Tem umas dezenas de títulos publicados.    
Foto: António Taveira
TRIPLOV

Projeto «Sarmento Pimentel»

ÍNDICE

MARIA ESTELA GUEDES

Sarmento Pimentel em «Lúcio Feteira»:
amigos próximos, reputações distantes
 
 
 
Em memória de Maria Elisa Pérez
 
Miguel Carvalho, jornalista português, grande repórter, cometeu um feito digno de registo com a obra «Lúcio Feteira» - a de nos dar um romance a ler em vez de um ensaio histórico, sem nos deixar na situação ambígua de não sabermos se podemos ou não usar a informação nele patente, quando, como é o meu caso, precisamos dela para a recontextualizar e republicar. E não só preciso eu como podem precisar outros investigadores envolvidos no projeto do Triplov, «Sarmento Pimentel».

Fundamentado num acervo monumental de documentos, o que por si só já seria muito meritório, o autor consegue tecer uma trama narrativa aliciante costurando quase sempre a sua grande teia com fios às vezes mínimos, provenientes de arquivos e bibliotecas variados, distribuídos pelo País, entre eles, para o que mais de perto nos toca, o espólio do "capitão" na Biblioteca Municipal Sarmento Pimentel, em Mirandela. Ao trabalho do investigador acresce o de jornalista, ao coligir depoimentos e ao entrevistar mais de duas dezenas de testemunhas. Reiterando, a obra, tal como foi concebida, dificilmente se sustentaria sem a sua genuína veia de romancista.

O livro de Miguel Carvalho data de 2011 e apresenta-se como primeiro volume. Não consegui descobrir o segundo, esperemos que esteja a caminho das livrarias e nos elucide sobre o homicídio de Rosalina Ribeiro, secretária e amante do grande industrial, sobre o qual pairam suspeitas de o mandante ter sido Duarte Lima, seu advogado, um ex-deputado português. O crime foi cometido no Brasil, Estado do Rio de Janeiro.

Esperamos ainda dados sobre o destino da imensa fortuna de Lúcio Feteira, industrial, comerciante e grande proprietário de fazendas, dono da Covina (Companhia Vidreira Nacional) em Portugal, da Covibra no Rio de Janeiro e da Companhia Paulista de Vidro Plano em São Paulo, homem a quem os poderosos não recusam o epíteto de "génio", mas que também recebeu, entre moedas opostas, descritivos que o situam no Inferno, em conciliábulo com os outros Demónios. Por diversas vezes no livro alguém lhe  chama "gangster", o que desperta o desejo de comparação com o seu muito próximo amigo Sarmento Pimentel, que conseguiu escapar de reputação incólume por entre décadas de revoluções, conflitos políticos e comerciais em que invariavelmente ocupava postos de liderança.

Lúcio Feteira, 13 anos mais novo do que Sarmento Pimentel, chegou ao Brasil em junho de 1941, quando o "capitão" já ali estava instalado e bem adaptado, pois o seu exílio datava de 1927, motivado pelo golpe falhado contra a ditadura, aliás o primeiro. Integrado, mas sempre de chaves da casa no Porto no bolso, na iminência de uma feliz notícia política que o instigasse a vir celebrar a libertação da sua Dulcineia, essa Pátria pela qual fez tantos sacrifícios e pela qual correu perigo de vida. Tão adaptado vivia Sarmento Pimentel, liderando agora a oposição mais com a caneta  do que com as armas de guerra, que Lúcio Tomé Feteira, quando desembarcou nas Terras de Vera Cruz, levava com ele algo de suma importância: uma carta de recomendação para Sarmento Pimentel, assinada por Nuno Simões.

Nuno Simões, advogado aureolado com o título de "padrinho", porque "desenrasca empregos, abre portas, dá e empresta dinheiro a quem a ele recorre em momentos de aflição", entrega a Lúcio uma carta de recomendação para Sarmento Pimentel porque este é um homem de poderes e de confiança, conhecido por encaminhar emigrados opositores do regime em Portugal. Além disso, no meio empresarial, Sarmento Pimentel podia ajudar Lúcio Feteira, como ajudou.

A teia de relações de Nuno Simões englobará, ao longo da vida, entre outros, escreve Miguel Carvalho, "os intelectuais oposicionistas Aquilino Ribeiro, António Sérgio e Câmara Reys, o ideólogo da ditadura António Ferro, gente da finança como Pinto de Magalhães, os políticos portugueses Mário Soares, Vasco da Gama Fernandes e Raul Rego, o jornalista e militante comunista Miguel Urbano Rodrigues, os políticos brasileiros Carlos de Lacerda e Juscelino Kubitschek, o general Norton de Matos, o diplomata Álvaro Lins e o já falado Cerejeira".

Vários nomes listados por Miguel Carvalho como relacionamentos de Nuno Simões, o "padrinho", também são pessoas das relações de Sarmento Pimentel, e insisto em designações como "padrinho" e "gangster" para anotar algo de razoavelmente digno de espanto quanto ao "capitão": a sua reputação é quase tão imaculada como um vestido de noiva, apesar do contacto com aqueles que sem rebuços são chamados aldrabões e por aí acima.

Em tempos de guerra, de ditadura, de prisões, tortura e perseguição da PIDE, inumeráveis crimes cometidos pelo Governo contra os cidadãos, é de esperar que a resistência e a oposição também tivessem as suas armas negras. Mas precisamente: Sarmento Pimentel participou em tantos golpes, tantas revoltas, na língua nem usava punhos de renda, e passou imaculadamente limpo por cem anos de vida e mais de oitenta de luta, com apenas uma tentativa de salpico na casaca branca, que até agora tenha eu detetado.

Lúcio Feteira e Sarmento Pimentel teriam vidas unidas pela amizade e pelos negócios certamente até à morte do segundo. Também os ligava a necessidade de dar descanso às lutas e zelar pela família. Entre a incomensurável extensão de terras que o industrial viria a adquirir e justificam o esclarecedor título de capítulo "Era tanta a terra que pensei proclamar-me rei daquilo", figurava a fazenda Pedra Maria, no Estado de São Paulo, que às vezes emprestava a Sarmento Pimentel, para ele ali passar férias e fins de semana com a mulher, Isabel, e restante família. Em carta para Fortunato Seara Cardoso, seu cunhado e diretor de O Comércio do Porto, João Sarmento Pimentel escreve:  "Aos sabados e domingos vamos tomar sol e ar do campo num sítio que me emprestou o meu amigo Lucio Feteira e onde temos tudo quanto são miunças de quinteiro e até faisões!"

Esta e outras cartas para o pai, Fortunato Seara Cardoso, foram-nos oferecidas por Maria Elisa Perez, sobrinha de Sarmento Pimentel, há cerca de um ano. No mês passado, a nossa querida amiga morreu tranquilamente, na sua casa da Rua da Constituição, no Porto. Daí que este artigo lhe preste homenagem.


Carta de Sarmento Pimentel para o cunhado, Fortunato Seara Cardoso, de São Paulo, 3 de maio de 1968, em que menciona os dias passados na fazenda Pedra Maria, de Lúcio Tomé Feteira. Em baixo, presa com clip à carta, uma foto tirada na fazenda. Nas costas da foto, Sarmento Pimentel informa que se trata da primeira lição de caça dada ao neto, João Carlos, e ao perdigueiro Lord.
 


O relacionamento com Lúcio Feteira faria este e Sarmento Pimentel embarcarem na maior aventura das suas vidas, afirma o jornalista Miguel Carvalho. Não obstante Sarmento Pimentel continuar a luta contra o regime na oposição, no Brasil, e Lúcio Feteira vir a financiar golpes e opositores (sem hostilizar Salazar de forma pública, ao contrário: louvaminhando-o quando era conveniente), não foi mais uma revolta armada a maior aventura dos dois homens, sim o embarque no mesmo negócio. Sarmento Pimentel já tinha no seu currículo várias experiências como homem de negócios, trabalhara catorze anos na Companhia Souza Cruz, uma empresa de tabacos em que chegou a subgerente. Vivera três anos em Buenos Aires, para alargar os negócios da firma. Não será surpreendente assim a aliança com o famoso milionário, que se ligará a todos os que tinham nome ressoante em Portugal, Brasil e até no estrangeiro, desde líderes políticos a banqueiros como Cupertino de Miranda e Espírito Santo, desde grandes intelectuais a grandes vigaristas, como Alves dos Reis, o falsário.

Na opinião de Sarmento Pimentel, Lúcio "era um homem ousado, inteligente e de generosidade invulgar." Influenciado pelos depoimentos de quem o conheceu, Miguel Carvalho insiste, ao longo do livro, na tecla da generosidade interesseira, facto compreensível em quem no horizonte via brilhar apenas o dinheiro. Parece uma estratégia publicitária de composição de imagem, quem sabe se antecipadora do que agora é tão comum. Então temos que Lúcio dava dinheiro (só) quando estava alguém a ver... Nada de meter discretamente a mão no saco das esmolas, o gesto exibia-se para a plateia. Fosse como fosse, é certo que financiou golpes e golpistas, protegeu oposicionistas como Mário Soares, entre muitos. Aliás, a proteção a Mário Soares já vinha da Covina, em Vieira de Leiria, onde ele trabalhou, decerto como advogado - e outros advogados ilustres trabalharam para Lúcio Feteira, a exemplo de Azeredo Perdigão, futuro presidente da Fundação Calouste Gulbenkian que, nos seus tempos áureos, funcionou como segundo ou único Ministério da Cultura em Portugal.

Essa maior aventura das suas vidas foi então a criação de fábricas de vidraça no Brasil, que Lúcio quis expandir para todo o continente americano e depois entregou aos americanos dos Estados Unidos, porque, além do dinheiro, o que o fascinava era construir e não administrar. Seguindo Miguel Carvalho, "no final da vida, numa entrevista à Flama, Sarmento Pimentel 'reconheceu o óbvio': "Fundei uma fábrica de vidro com o Feteira e ganhei muito dinheiro. Acabámos por vender tudo aos americanos".

Postos os azares da vida, não ganhou assim tanto que o tivesse salvaguardado das crises brasileiras: José Verdasca (1), que tem dado à estampa vários artigos no projeto "Sarmento Pimentel", amigo e companheiro em São Paulo, frequente conviva do "capitão", refere-se às vezes à circunstância de que nos tempos mais recentes as refeições na Avenida Itacolumi já não eram os banquetes de outrora. Tão penosa se apresentava aliás a situação que José Verdasca intercedeu junto do então Presidente da República, Ramalho Eanes, para que o "capitão" Sarmento Pimentel fosse promovido a general. Assim aconteceu, passando a auferir uma aposentadoria que o desafogou da difícil situação financeira (2).

Lúcio Feteira e Sarmento Pimentel, não obstante as diferenças, sobretudo as de caráter, partilhavam experiências similares que os devem ter aproximado a ponto de uma amizade indissolúvel e de Pimentel aparecer em «Lúcio Feteira» como o paladino deste. Entre outras aventuras, ambos tinham estado em Angola, Pimentel nas guerras de pacificação e no rescaldo da invasão alemã em Naulila, Lúcio no Congo Belga, onde travou relações com o futuro Rei Leopoldo, e conta, meio a sério meio a brincar, que ia sendo comido pelos antropófagos e que muitos dos seus trabalhadores tinham ido parar aos seus caldeirões. Talvez tivesse conhecido populações canibais, talvez os canibais fossem os europeus ainda a estripar África com as partilhas. Recordo que uma das tarefas do "capitão" na bacia do Cunene foi a de desenhar mapas (3), inexistentes, desculpa usada pelos alemães para terem penetrado no que então era território português: não sabiam onde ficava a fronteira... Ora se não havia cartas era porque o famoso mapa cor-de-rosa não contemplava a região, desértica, que na altura, século XIX, não interessaria a ninguém, mas aos antropófagos de 1914-1918 já interessava, por causa da água para a pitança, que jorrava nas cataratas de Ruacaná.

A aventura empresarial decorre entre situações que, aos incalculáveis rendimentos provocados pelo genial Lúcio Feteira, aliam o modus operandi, e fica claro que o mundo dos negócios é tortuoso em demasia. Tão tortuosos os caminhos que levam ao dinheiro que ainda agora, em 2016, aguardamos desfechos de pleitos em tribunal, pois a disputa da fortuna de Feteira já contou com assassínio.

Algumas reuniões de administração de empresas foram engalanadas com insultos e ameaças de morte. E Sarmento Pimentel vai escapando aos pingos de chuva sem se molhar. Pelo menos, nada de factual lhe bate, pois Miguel Carvalho não pormenoriza sobre todos os que nelas participavam. Admitamos que o "capitão" tenha sido salpicado naquela que o levou a contar a história do sujeito que dali saiu conhecido como "bunda atómica" e não será por isso que na casaca branca alastra a manchita única que vi ser-lhe assacada e qualquer um pode limpar. Admitamos que tenha sido borrado pelos insultos em reuniões que nem Azeredo Perdigão pouparam, mas que provas temos a favor ou contra? Insultos que movem Sarmento Pimentel a escrever: "Se eu tivesse autorização de quem tiraniza Portugal para ir a Lisboa, aí estaria para dar um tiro na boca do crápula que pretendeu infamar a minha vida de homem trabalhador e sempre honrado".

Tão amigos e próximos que virão juntos a Portugal, nos anos cinquenta, quando o governo de Salazar entreabre a porta de uma pseudo-amnistia e Sarmento Pimentel viaja durante seis meses pela sua terra, com a morte na alma, pois apercebe-se de que a amnistia é só máscara. Se quisesse ficar, tal não lhe seria permitido.

Qual a manchita, única por mim encontrada, vinda de gente séria, mas facilmente removível da casaca de Sarmento Pimentel? - A de afinal não serem tão livres como propalavam os intelectuais da revista Homens Livres (a cuja lista o "capitão" dera o nome, embora não tivesse colaborado em nenhum dos dois únicos números). E não eram livres porque se tinham deixado seduzir pelo Poder, a exemplo de Sarmento Pimentel, ao assumir a pasta de chefe de gabinete de Ezequiel Campos, ministro da Agricultura, no governo de José Domingues dos Santos (1924-1925), num período em que a Seara Nova era tão importante como lobby político que se recrutavam seareiros para membros do governo, e mais uma vez Sarmento Pimentel é prova disso.

Toda a sua vida foi luta política, a Seara Nova fornecia um modelo de governo, modelo socialista, os artigos de Sarmento Pimentel na revista atacavam uma situação que ele propunha fosse mudada. Posto isto, é fácil concluir que o "capitão" também foi um político, e não seria por defender a liberdade no movimento dos Homens Livres que lhe estaria vedado o exercício de funções num governo que ele aprovava.

 
(1) http://www.triplov.com/hist_fil_ciencia/sarmento_pimentel/jose_verdasca/index.htm
(2) http://www.triplov.com/hist_fil_ciencia/sarmento_pimentel/jose_verdasca/sp_04.htm

(3) https://aviagemdosargonautas.net/2016/03/11/portugal-na-grande-guerra-por-maria-estela-guedes/

MIGUEL CARVALHO
Lúcio Feteira
A história desconhecida
Vol. I - Das origens à glória
Vila do Conde, Editora QuidNovi, 2011
Contacto com o autor: feteiralivro@gmail.com

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
Contacto: revista@triplov.com  
Dir. Maria Estela Guedes  
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