Cão rafeiro que me olhas nesta tarde
de inverno, no dia mais curto do ano,
e vês
como bebo a minha bica e como uma
nata
cão sentado à esquina obscura
na liberta claridade dos que não se
interessam da pecúnia
ainda que precisem dela e gostem de a
esbanjar por esbanjar
pois todo o cão, seja rafeiro ou
elitista, precisa de comer
(e também cagar e foder)
comer, porém, não é tudo, é preciso
também
uma certa aristocracia de cão rafeiro
para que os joelhos
não tremam nem se dobrem perante as
poderosas estátuas
que nos olham sempre de cima para
baixo
na sua perspetiva inflexível
cão rafeiro que me olhas, enquanto
bebo a bica,
gosto dos teus olhos melancólicos,
mas rebeldes, mas espertos, mas
maliciosos
e do modo como levantas a perna
e mijas altivamente aos pés das
estátuas dos heróis
há de facto entre nós uma irmandade
fiável
que se fodam as estátuas e os títulos
e as coroas e os honores e os heróis
pois com gravata ou sem ela
todos os homens se mijam e cagam
e, mais cedo ou mais tarde, enfim,
hão de bater a bota
cão rafeiro que me olhas nesta tarde
de solstício de inverno,
quem sabe, talvez dos cães rafeiros
seja o reino dos céus.
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