REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


NS | número 59 | julho-agosto | 2016

 
Foto: Valter Vinagre
Júlio Conrado  (Olhão, 26.11.1936, Portugal). Escritor, crítico literário. Durante vários anos alternou a crítica literária com a ficção (incursões esporádicas na poesia e no teatro), centrando-se actualmente no romance a sua principal actividade. Fez crítica no Diário Popular, Vida Mundial, Colóquio Letras e Jornal de Letras. Colaborador de Latitudes, Cahiers Lusophones (Paris) e Revista Página da Educação (Porto). Coordenou a revista Boca do Inferno, de Cascais. Integrou os corpos sociais de Associação Portuguesa de Escritores, Pen Clube Português, Centro Português da Associação Internacional dos Críticos Literários e Associação Portuguesa dos Críticos Literários. Participou nos júris dos principais prémios literários portugueses. Textos seus estão traduzidos em francês, alemão, inglês, húngaro e grego. Obras principais: Romance: Barbershop (2010), Estação Ardente (Prémio Vergílio Ferreira / Gouveia (2006), Desaparecido no Salon du Livre (2001), De Mãos no Fogo (2001), As Pessoas de minha casa (1985), Era a Revolução (1977) e O Deserto Habitado (1974); Poesia: Desde o Mar (2005); Teatro: O Corno de Oiro (2009). 

 

JÚLIO CONRADO

 

Revistas com literatura dentro, em revista

 

Vai prolongado o luto pelas velhas páginas literárias dos anos sessenta/setenta, nos jornais, segue um guião próprio a crítica e a divulgação manipuladas pelos poderosos cartéis da edição, tornam-se omnipresentes os esforços bloguistas para se substituirem ao primado do “papel” como suportes de comunicação e de difusão da actividade literária. Todavia, o “papel” resiste. Quando menos se espera, o “papel” dá sinal de si. Umberto Eco profetizava, três ou quatro anos antes de falecer, que o livro em papel estava para durar e que os cibernautas incondicionais teriam de aguardar pelo colapso do formato tradicional durante muito tempo. Não estou em condições de formular um juízo a favor ou contra esta teoria; confio, sim, em que as duas modalidades possam convizinhar colocando ao serviço das causas culturais o que de melhor as caracteriza: a utilidade de uma ferramenta universal quando criteriosamente usada; uma certa forma de afecto leitor / livro através de uma intimidade que se cultiva página a página e de cuja penetração no imaginário receptor se colhe o conforto de um valor acrescentado.

 

 

DELPHICA, Letras & Artes

Mas não é esta “guerra” o que me traz hoje ao ciberespaço e sim a sensação agradável de poder comentar, sem qualquer prurido judicativo, a importância de que se reveste o facto de umas quantas revistas em “papel” alimentarem a ideia de que a literatura (neste caso de literatura se trata) é capaz de achar espaços para se impor fora dos limites de um certo establishment bem identificado no panorama cultural português. Começo por me referir à delphica, letras & artes que vai no seu nº 3 e tem o nº 1 com data de 2013, o que leva a crer que a sua periodicidade será anual. Traz a chancela da Crescente Branco, Associação Cultural e Recreativa sedeada em Braga. Sem ainda ter consultado a revista mas atendendo à localização da mesma, disse para comigo: anda aqui a mãozinha do Vergílio Alberto Vieira. E não me enganei. VAV é presença constante posto que, conjuntamente com José Manuel Vasconcelos, Rui Vieira e Jorge Fernandes integra o trio de editores. Vergílio mostra a sua faceta de dramaturgo assinando a peça Por nada deste mundo, publicada na íntegra.

O leitor decerto terá percebido que comecei pelo número mais recente da revista. É visível a acomodação de figuras de nomeada a par de outras menos celebradas mas de reconhecido gabarito intelectual. Todavia, algumas dessas personalidades são-me caras e congratulo-me por vê-las abraçar tão cativante projecto: Fernando J. B. Martinho, Manuel Frias Martins, Manuel G. Simões, Emerenciano, Maria Leonor Nunes (que conheci nos meus tempos de colaborador do JL) e outros como Alberto Lacerda (merecedor de que a sua obra seja mais bem estudada), António Vieira, Albano Martins, Amadeu Lopes Sabino, Helder Macedo, Rui Zink, Fernando Lapa e Rui Madeira. A revista contém várias traduções e inclui um Caderno dedicado a Trieste no qual participam João Barrento, Manuel G. Simões, José Manuel Vasconcelos, Gianluca Miraglia, Ilse Polack e Serecko Kosovel.

Recuando até ao nº 2, encontro uma Memória do meu querido amigo João Rui de Sousa, notável poeta, o José Manuel Vasconcelos agora poeta (fora das funções de editor e tradutor) e gente conhecida de outros ramos das artes  como Ricardo Pais (encenador) e José Luís Tinoco (músico instrumentalista), e um Caderno sobre surrealismo confiado a António Cândido Franco, de quem terei oportunidade de falar mais adiante. Percebe-se que de um número para o outro a revista deu um salto significativo, ainda mais notório quando consultamos o nº 1. Realce para a arrumação criteriosa das secções: Ensaio, Poesia, Música, Teatro, etc., mas sempre cabendo à literatura a parte do leão.

Neste último (que é o primeiro) o homenageado principal é Raúl Brandão, mas mais alguns nomes estimáveis se me atravessaram no caminho: Ernesto Rodrigues, Pires Laranjeira e Mário Cláudio. Em suma: por aqui se via nitidamente o que estava para surgir. E o nº 3 tem já a supervisioná-lo um emérito Conselho Científico composto por 11 académicos. Isto é a delphica na era da Internet. Uma raridade de saudar pela capitosa concepção gráfica, pelo ecletismo e pelo esforço que representa enquanto presença dinâmica num contexto adverso através da qual um certo modo de tratar a cultura e especialmente a literatura faz vigorosa prova de vida.


A IDEIA  

A revista A Ideia é uma verdadeira singularidade nos dias de hoje. Em três linhas, na capa, revela a sua atitude programática: “revista de cultura libertária”. Em boa verdade trata-se de um conceito aberto a vários tipos de frequentadores e sensibilidades as mais diversas. A periodicidade é anual. É seu fundador e proprietário João Freire que em boa hora confiou a António Cândido Franco a direcção e a edição. No número duplo 73/74 está bem patente o metier do renomado medievalista que é, simultaneamente, um conhecedor profundo da “onda” surrealista em Portugal, à qual o referido número é consagrado. A revista não tem preço de tabela. Há, porém, encargos fixos. É preciso pagar, por exemplo, à tipografia. Para os que a desejam foi criado um atalho que a torna acessível a todas as bolsas: “preço voluntário”. E esse preço voluntário é cumprido sob a forma de donativo. Todavia, dada a excepcionalidade de um número duplo tão rico de conteúdos e de tão dispendiosa produção foi estimado, para cobrir exclusivamente estas despesas, o donativo de 20 euros. Fixemo-nos, porém, neste sólido livro (sempre são 258 páginas em formato A4) e atentemos nalgumas das novidades do seu denso recheio.

Recorra-se, a abrir, à DECLARAÇÃO da página 3, que desenvolve o lamiré da capa: “O surrealismo em tempos do Café Gelo ou o Gelo em tempos de surrealismo, eis o tema deste novo número da revista A Ideia. Pretendemos com ele dar um contributo de fundo ao conhecimento dum nicho desconhecido, mas de rara pertinência, da cultura portuguesa da segunda metade do século XX, a furiosa geração que se reuniu no Café Gelo entre 1956 e 1962. Reputamos esta geração a mais irreverente do seu tempo português.” E adiante: “A quem se interrogue por que motivo uma revista com o passado da nossa, que nasceu há quarenta anos como órgão específico de propaganda, se interessa por aspectos da vida portuguesa e internacional tão marcados pela criação poética e artística, lembramos que a revista não rompeu com o seu passado, mesmo o mais antigo, mas elegeu um contexto próprio para nele se situar, o anarquismo cultural. A geração que passou pelo Café Gelo é, entre as que se afirmaram na segunda metade do século XX, a que melhor expressou um entendimento libertário da cultura.” O conjunto de colaborações é pluralista, numa vastíssima afirmação de solidariedade com o tema proposto, recaindo o enfoque sobre a figura de alguém de quem pouco se sabe mas a quem o mito do Gelo muito deve: Manuel de Castro. À volta deste poeta quede nós se despediu na flor da vida (1934-1970), tendo deixado publicados apenas dois livros, predominam as trocas de correspondência com os contemporâneos, porventura o eco que melhor clarifica a personalidade do homenageado. A variável epistolar, com efeito, traça com acerto o perfil psicológico de MC pelos seus coevos e abre perspectivas aos estudiosos do movimento.É bastante eloquente o binómio quantidade/qualidade de nomes e documentos que ACF logrou reunir: de Maria Estela Guedes a Fernando Grade, de Vasco (desenhador) a Nicolau Saião, de Herberto Helder a António Barahona, de Mário Cesariny a Luiz Pacheco, de Vergílio Martinho a Helder Macedo, de António José Forte a Manuel Villaverde Cabral, de Pedro Oom a Ricardo Ventura, de Miguel Filipe Mochica a Jorge Telles de Menezes, de Alfredo Margarido a Agostinho da Silva, de D’Assumpção a José Carlos Gonzalez, toda uma elite surrealista (virtual ou real) “marcou” encontro em A Ideia para recordar o malogrado poeta, evincar a inestimável achega que a recolha representa na caracterização do grupo que deu “nome” a um singelo café do Rossio lisboeta.

O tema Café Gelo coexiste,naturalmente, com outros motivos ligados ao surrealismo. O volume impresso está compartimentado em quatro blocos, o primeiro dos quais agrega a memória do Gelo e o tributo a Manuel de Castro; no segundo bloco, Cronologia, o destaque vai para a literatura internacional, cabendo ao duo de escritores brasileiros Cláudio Willer e Floriano Martins incursões críticas sobre o estado actual do surrealismo no seu país, bem como para Pietro Ferrara, natural de Itália mas a viver nos Estados Unidos, fundador do CIRA (Centre International de Recherches sur l’Anarchisme). O bloco seguinte, o III, Documenta, irrompe pela criação pura com poemas de Antonio Saez Delgado (Paisage), Paulo Borges (Mãe, Irmã e Amante Nossa), Amadeu Baptista (Viagem Nocturna), (José Rui Teixeira (poema), Nuno Mangas Viegas (Semente-Boca), Valter Nogueira (Três Poemas), José Emílio-Nelson (Aflição e Cinza), Paulo Jorge Brito e Abreu (Soneto, na Verve, à guisa de Bocage) e Alexandre Vargas (Boa Noite Senhor Fernando Pessoa). Deste bloco consta ainda uma troca de cartas entre Fiama e António Telmo, com comentários de António Carlos Carvalho e do mesmo António Telmo um fragmento de livro, inédito. No que respeita a entrevistas Carlos Loures aceitou responder a algumas perguntas (a sua relação com o surrealismo conheceu altos e baixos, até se concretizar em ruptura) e Isabel Meyrelles que vive em Paris desde 1950 e se considera “como a única mulher portuguesa que enquanto artista se define puramente como surrealista” expõe as razões que, a seus olhos, justificam esse estatuto.  

O IV bloco, Leituras & Notas tem a abrir um texto de Luís Amaro: “Lembranças avulsas de Gonçalves Correia e seu Filho Ferrer”, além de outro lote de ensaios, agora de tipo mais experimental mas sempre rodando em torno da temática axial. Num artigo desta índole, que pretende apenas gerar informação acerca de um número da revista A Ideia para guardar e consultar quando for preciso, pela sua extensão, são omitidos muitos nomes e obras tão relevantes como os mencionados. De aí a vantagem na aquisição deste número duplo que, sem dúvida, combina em dosagem perfeita o acto formal da escrita com o ideário da publicação, abertamente anunciado.

 

 

UM BOM VENTO DE ESPANHA

Um vento (benigno) proveniente de Badajoz com passagem por Évora, trouxe-nos a Suroeste, uma revista que se distingue pelo esmero gráfico e excelência de colaborações. É dirigida por António Saez Delgado e proclama-se como “uma revista anual com vocação de diálogo entre as diferentes literaturas ibéricas. Publica textos inéditos de autores que escrevem nas diversas línguas peninsulares assim como um escaparate de livros em que os críticos da publicação recomendam algumas das suas leituras favoritas do ano anterior. A Península Ibérica é um mosaico de culturas, uma babel de línguas de extraordinária cultura.” A Universidade de Évora surge como âncora fundamental do projecto do lado de cá da fronteira, cuja dinâmica muito deve ao entusiasmo dos professores escritores António Cândido Franco e do director da revista, ambos docentes na Instituição.

Até agora foram publicados cinco números, tendo o 5º sido lançado na Casa dos Bicos, Fundação José Saramago, em 2015..

O projecto é generoso. O sedutor grafismo lembra o requinte dos catálogos que servem de suporte às exposições de artes plásticas do Museu de Badajoz, o MEIAC. Os colaboradores são, por conseguinte, de procedência diversa. Salta à vista a preocupação da Suroeste em procurar para as suas páginas nomes de referência e juntá-los numa convivial troca de experiências literárias, resultado de uma saudável ausência de preconceitos e hábil gestão de modos tão distintos de participarem na consolidação do projecto.

Suroeste: um bom vento que veio de Espanha.

 

RELÂMPAGO

A existência da revista Relâmpago resulta da vontade do malogrado poeta Luís Miguel Nava (1957-1995) que estabeleceu como legado testamentário a criação de uma revista e de um prémio, ambos de poesia e administrados por uma fundação com o seu nome. O poeta Gastão Cruz tem sido o executor da parte correspondente à publicação da Revista, dirigindo a Relâmpago, de que acaba de ser publicado o número duplo 36/37 consagrado a Herberto Helder (homem e obra). Gastão pôde reunir uma mão cheia de contemporâneos de HH cujas posições se revelam de extrema utilidade para os futuros biógrafos do autor de Os Passos em Volta. Em depoimentos redigidos especialmente para este número da revista abundam as pistas, sugestões, factos e memórias cuja pertinência indiscutível muito ajudará quem se disponha a investigar a portentosa obra do homenageado. Eduardo Lourenço, Armando Silva Carvalho, Fernando J.B.Martinho. N.Júdice, António Barahona, António Fournier e um devaneio brasileiro de Maria Lúcia Dal Farra, dão consistência a este desígnio.

Também aqui, tal como aconteceu na evocação de Manuel de Castro, a epistolografia me parece indispensável para se chegar mais fundo na compreensão da enigmática genialidade herbertiana. Bem andou Gastão Cruz ao publicar as vinte e cinco cartas (inéditas) que lhe foram enviadas por Herberto entre os anos 70 e Janeiro de 2015. Completam a revista uma auto-entrevista, poemas inéditos de outros poetas, recensões críticas e informações várias.       


A PÁGINA DA EDUCAÇÃO

Neste olhar desprendido por revistas com literatura “dentro” A Página da Educação, do Porto, merece especial atenção. Sendo uma publicação especializada na abordagem de temas relacionados com o Ensino, há sempre lugar para uma ou outra referência ao que se vai publicando em ficção, poesia e ensaio, paralelamente aos criteriosos  textos sobre as matérias específicas para que foi criada.

O nº 206 desta revista bianual, que já foi jornal, hoje sob a direcção de Isabel Baptista, apresenta um conjunto de conteúdos em que as Artes não são negligenciadas. Ombreando com os assuntos de maior actualidade da esfera educacional, a literatura, por exemplo, dispõe nela de um precioso canteiro.. Livros de autores portugueses – Teolinda Gersão, Fernando Dacosta e Lídia Jorge – são recenseados. Uma crónica de Salvato Teles de Menezes – mestre do género – intitulada Jesuítas, plena de humor e sabedoria, adoça este número integrada na série Textos Bissextos (criada por Luís Souta).

Igualmente o Cinema e, como sempre, a Fotografia, são objecto de grande realce.

Uma saudação especial para o escritor / colaborador Leonel Cosme extensiva ao seu excelemte trabalho Emanações da Selva (de recorrência angolana), selva “onde é sabido que o elefante, quando se afasta da manada, ainda com energia suficiente para se considerar “orgulhosamente só” é para terminar os dias da sua vida.”

 

 

Enfim, concedo não ter pesquisado em profundidade a existência “resistente” de mais revistas em papel nas quais a literatura, designadamente a portuguesa, seja regularmente acompanhada. Certamente as haverá.

Delas, seguramente, me chegarão notícias.

Estou sempre disposto a deixar-me surpreender.

 

                                               Primavera de 2016

 

EDITOR | TRIPLOV

 
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