ISSN 2182-147X  . EDITOR | TRIPLOV . Contacto: revista@triplov.com . Dir. Maria Estela Guedes . PORTUGAL .
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Revista TriploV de Artes, RELIGIÕES & Ciências . Ns . Nº 58. maio-junho 2016 . Índice
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MARIA ESTELA GUEDES

Um livro sobre Bolama
No Palácio da Independência, em Lisboa, neste 25 de maio de 2016, António Júlio Estácio fez o lançamento do seu último livro, Bolama, a saudosa... Auditório cheio, em costumeiro manifesto da solidariedade dos guineenses com a sua gente, esteja ela na diáspora, no seu "tchon" africano ou nem à nacionalidade pertença. O que pertence é a saudade de quem lá cresceu e viveu os anos mais impressionáveis, como são os da adolescência, caso próprio.  Já não é inteiramente o de António Júlio Estácio, nascido em Bissau em 1947, que ali fez o Liceu e onde decorreu grande parte da sua vida familiar e profissional.

Como  Tony Tcheka declarou ao apresentar a volumosa obra - quase 500 páginas -, a importância da informação que transmite minimiza as imperfeições técnicas e académicas. O livro cataloga mil e um factos históricos, políticos, sociais e culturais relacionados com a ilha de Bolama. E é tão mais importante quanto nesta altura se esboça um movimento de pressão para que seja conferida autonomia à ilha. A sua história é mais relevante para a Guiné-Bissau e para o mundo do que a de Bissau. Bolama foi a antiga capital, ali apareceu a primeira tipografia do país, ainda no período colonial. Factos inultrapassáveis da política colonial de toda a Europa ligados à ilha merecem, como faz António Júlio, ser trazidos à tona, e os da escravatura são pungentes. Porém nem toda a marca do colonialismo é nefasta, por isso gostava de acrescentar à multidão de temas apresentados em Bolama, a saudosa..., alguns que constam do meu próprio currículo de investigação em História da História Natural em Portugal e antigas colónias, e acrescem peso à necessidade de preservação da memória de Bolama.

Não só a ilha, mas todo o território guineense foi objeto de exploração científica em três momentos-chave, independentemente de explorações ou colheitas de objetos científicos ocasionais, pois em dada altura saiu legislação a solicitar a governadores, administradores e aos profissionais mais próximos da tarefa - médicos e farmacêuticos - que enviassem para os museus exemplares da flora, da fauna e da mineralogia dos territórios em que se encontrassem. Mais marcantes, entretanto, foram as explorações de financiamento estatal, promovidas por universidades ou, já no século XIX, pos instituições científicas em que avulta a Sociedade de Geografia de Lisboa, que acompanharam o movimento científico internacional e alguns episódios candentes da política nacional.

É assim que recordo um dos primeiros exploradores científicos, ou o primeiro, ainda no século XVIII, João da Silva Feijó, destacado em Cabo Verde mas que se deslocou à Guiné, então ligada administrativamente ao arquipélago cabo-verdiano. Tratava-se de um movimento destinado a estudar todas as colónias, ligado ao Iluminismo e à Universidade Reformada, a de Coimbra (a única, à data)onde pontificou Domingos Vandelli, mestre e instrutor de todos os naturalistas encarregados do estudo.

Em finais do século XIX, em conexão com o nascimento das sociedades de geografia, aparece na Guiné, e passa por Bolama, um ao tempo famoso explorador italiano, Leonardo Fea. Para informação específica sobre o material científico que coligiu em Bolama, veja-se o  seu artigo:
Dalla Guinea Portoghese. Bolama, 1º Dicembre 1899. Bolletino della Società Geografica Italiana, fasciculo V: 436-457, 1900.


Seu colega português, a seguir-lhe as passadas, na recolha de exemplares de plantas, animais e rochas, muitos dos quais foram descritos como espécies novas para a ciência, e por isso algumas trazem no delas o nome do explorador, foi Francisco Newton, um homem do Porto, conhecido na adolescência como um dos "meninos do Leça", grupo a que pertencia também o poeta António Nobre, e o seu irmão, Augusto Nobre, ilustre naturalista e professor na Academia Politécnica do Porto. Grande parte dos milhares de exemplares que deram entrada nos museus portugueses, em especial os da Escola Politécnica de Lisboa, foram estudados por José Vicente Barboza du Bocage e os resultados do estudo, quanto a Aves, Répteis e Mamíferos, estão publicados no Jornal de Sciencias Mathematicas, Physicas e Naturaes, da Academia Real das Sciencias de Lisboa. Embora a publicação pertença à Academia, a motivação das campanhas do século XIX gera-se, como já apontei, na Sociedade de Geografia, de resto Bocage foi um dos seus co-fundadores e um dos seus presidentes.

Em meados do século XX, num quadro científico que visa também a propaganda do Estado Novo, que na Exposição do Mundo Português alcançou o seu apogeu, temos em Bolama e no resto da Guiné um naturalista, Fernando Frade, que ao tempo foi reconhecido internacionalmente como grande especialista em elefantes. No TriploV publicamos notícia alargada desta campanha, cujos resultados foram de 60 artigos publicados, a cobrirem muitos assuntos e grupos de seres vivos. A referência de base é constituída pelo relatório final, assinado por - 

Fernando Frade, Amélia Bacelar & Bernardo Gonçalves (1946) - Relatório da missão zoológica e contribuições para o conhecimento da fauna da Guiné Portuguesa. Separata dos Anais da Junta de Investigações Coloniais, Lisboa, Vol. I. Trabalhos da Missão Zoológica da Guiné (1-5): 259-416.


É  de saudar o movimento que visa preservar o património arquitetónico, monumentos e quanto, como a informação contida nas obras de escritores que ali viveram, representa parte substancial não só da memória histórica de Bolama como de toda a Guiné-Bissau e do mundo ocidental, já que as colónias não eram isolados culturais; tal como hoje, as relações políticas e culturais são internacionais, e quantas vezes não são chamados a arbitrar questões difíceis países estranhos até à política colonial, como foi o caso, relatado por António Júlio Estácio, de Ulysses Grant, presidente dos USA, ter decidido a favor dos portugueses a pertença da ilha de Bolama, reclamada por país vizinho.

Bolama, a saudosa..., e saudosa porque António Júlio transfere para a ilha toda a sua nostalgia, é um contributo valioso para fundamentar a exigência de autonomia administrativa com o propósito de a salvaguardar como património histórico, já que a instabilidade e insegurança dos sucessivos governos da Guiné-Bissau ameaçam deixá-la entregue a um futuro de ruínas.



Odivelas . 26.05.2016