| MARIA ESTELA 
								GUEDES
 
 Encontro com o Livro
 
   Começo por 
					agradecer às Irmãs a hospitalidade, e forma solidária 
					como partilham connosco a sua Casa das Monjas Dominicanas, 
					este aprazível recanto de Lisboa onde, além dos ritos 
					religiosos, também se pratica a devoção à Cultura. E 
					agradeço a todos, participantes ou não, a sua boa companhia 
					nesta tarde que espero deixe boas recordações. 
								 
					 Pertence a Eugénia Vasques a sugestão 
					deste encontro, cuja motivação foi saber como se lê a 
					Bíblia. Se pensarmos no princípio da livre interpretação, 
					facilmente concluímos que há tantas maneiras de ler quantos 
					os leitores. O nosso Encontro com a Bíblia vai ser uma 
					dessas maneiras. 
								 
								 «Bíblia» é um plural, por conseguinte 
					podemos selecionar dela este livro ou aquele para leitura ou 
					começar pelas páginas iniciais, bom hábito com qualquer 
					livro, pois é em geral na ficha técnica que encontramos os 
					elementos que o identificam. 
								 Na missa, os padres leem de acordo com 
					um calendário litúrgico, significando isto que todos os 
					católicos ouviram hoje, dia 21 de maio, o mesmo trecho do 
					Evangelho, se foram à igreja. Salvo melhor informação que a 
					da Internet, hoje o dia foi dedicado às crianças, para 
					gáudio da Maria José Camecelha, espero, pois foi ela quem 
					escolheu, no Evangelho segundo S. Lucas, os nascimentos de 
					João e de Jesus para leitura coletiva. Eis algumas das 
					palavras que hoje se têm dito na missa: 
								 Proclamação do Evangelho de Jesus 
					Cristo segundo Lucas. 
								  13 Naquele tempo, apresentaram-lhe 
					então crianças para que as tocasse; mas os discípulos 
					repreendiam os que as apresentavam.  14 Vendo-o, Jesus indignou-se e 
					disse-lhes: "Deixai vir a mim os pequeninos e não os 
					impeçais, porque o Reino de Deus é daqueles que se lhes 
					assemelham. 15 Em verdade vos digo:  o que não 
					receber o Reino de Deus com o espírito de uma criança, não 
					entrará nele."  16 Em seguida, abraçou-as e 
					abençoou-as, impondo-lhes as mãos.» 
								
								 
								 Entretanto, direi que acima de tudo, no 
					que toca a avaliar a força e difusão da cultura cristã no 
					mundo, interessa outro modo de ler, que é o de integrar a 
					Bíblia noutros textos, religiosos ou não. E por textos 
					entenda-se qualquer suporte de comunicação e arte, pois a 
					Bíblia está presente em múltiplos aspetos da vida, desde o 
					cinema à música, desde o folclore aos locais de trabalho. 
					Neste tempo de terrorismo imputado com ligeireza aos 
					muçulmanos, tempo muito perigoso, é fundamental saber que o 
					Alcorão aceita Jesus como um dos seus profetas e que nele 
					encontramos muita matéria bíblica, como leremos na colagem 
					dos nascimentos de Jesus e João. Ouviremos dizer, por 
					exemplo, que João menciona Maria no Livro. Esse Livro é a 
					Bíblia, e Povo do Livro é o nome que no Alcorão se atribui a 
					judeus e cristãos, povos que, como o Islamismo, se regem por 
					uma religião que valoriza a escrita – Santas Escrituras, eis 
					outro nome da Bíblia. Muhammad (Abençoado seja o seu nome), 
					quando recebeu do anjo Gabriel os primeiros mandamentos de 
					Allah, escritos num pano, era analfabeto. Por isso 
					lamentou-se por não saber ler. Porém o anjo insistiu para 
					que lesse e ele leu. 
								 
								 Não é possível compreender a nossa 
					cultura e civilização na ignorância de que os seus alicerces 
					repousam no Livro. Ele está em toda a parte: noutros livros, 
					incluídos os nossos, e vale a pena lembrar José Saramago, 
					que o demonstrou na perfeição; lê-se nas imagens pintadas e 
					esculpidas nas capelas, túmulos e catedrais; lê-se nos 
					rituais de inúmeras religiões e ordens maçónicas. Risoleta 
					Pinto Pedro dir-nos-á algo sobre a questão, eu apenas 
					registo um caso mais discreto: a Maçonaria Florestal 
					Carbonária, em vários momentos do ritual, tal como nas 
					fórmulas de saudação que abrem e rematam os documentos 
					oficiais, invoca a proteção do seu patrono S. Teobaldo e do 
					seu Bom Primo Jesus Cristo.   Termino com o gospel (God spell), 
					palavra que significa «Evangelho», «fala de Deus». A música 
					popular urbana, aquela com a qual crescemos, nasce quase 
					toda aí, nos cantos de igreja dos Estados Unidos da América, 
					de forma direta ou indireta. Desde Elvis Presley até ao 
					recentemente falecido Prince, numerosos músicos acusam a 
					influência dos espirituais negros. 
								 
								 Há uns seis ou sete anos, estava eu em 
					Nova Iorque com a Ana Luísa Janeira. Certo domingo, 
					resolvemos ir à missa na Igreja Batista Abissínia, uma das 
					mais famosas pelos coros de gospel. É hábito perguntarem o 
					nome aos estranhos para, no momento oportuno, o pastor 
					informar a audiência sobre quais as celebridades presentes. 
					Nesse domingo, a maior celebridade que assistia à cerimónia 
					era o Prince, e de certeza que não estava ali por 
					imperativos dominicais da sua Fé. Tal como nós, prestava 
					culto à música, pois bem sabemos que o autor e executante de 
					«Purple rain» era Testemunha de Jeová. A presença de Prince 
					impressionou-me o bastante para a registar por escrito em 
					«Harlem», num 
					grupo de textos sobre Nova Iorque, que dediquei a Federico 
					García Lorca, e com quem converso, por causa do seu poemário 
					«Poeta en Nueva York». 
								 Lorca e Prince, dois grandes artistas 
					com os quais tenho a satisfação de abrir  o nosso 
					«Encontro com a Bíblia», esperando que sejam tão 
					inspiradores para vós como têm sido para mim.  
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