Revista TriploV de Artes, Religiões & Ciências . ns . #57. março-abril 2016 . índice



Rui Tinoco nasceu em Vila Real (Portugal), em 1971. Viveu em Braga na infância e na adolescência. Foi publicado em setembro de 2011 o seu primeiro livro de poesia, O Segundo Aceno (Águas Santas, Edições Sempre-em-Pé). Licenciou-se na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação, no Porto, onde também se doutorou. Publicou artigos e artigos de opinião em vários jornais e revistas científicas. Paralelamente, vieram a lume textos poéticos seus em diversas publicações em papel e no mundo virtual.


RUI TINOCO


Crónicas de Narcisópolis: Os intercomunicadores

A vida informatizada apresenta todas as vantagens que se pode imaginar. Os programas computorizados cuidam da satisfação dos nossos desejos, nas suas menores minudências. Tentam também com que nos cruzemos apenas com as pessoas com quem temos afinidade. Por isso, é essencial que todas as nossas acções possam entrar na base de dados universal.

Por curiosidade consultava o top ten das afinidades. Gostaria de saber com quem tinha mais afinidades num dado momento. Andava, algures na Cidade, a minha alma gémea e a bolsa de perfis próximos poderia fornecer alguma pista sobre o assunto. Não pensem que procurava alguém com sofreguidão, como disse tratava-se de simples curiosidade inconsequente. A maior parte das vezes os perfis entravam e saíam do top sem que tentasse algo para criar uma ligação com eles.

Imaginava também que eu próprio poderia integrar tops de outros cidadãos. Seria uma irmandade volúvel mas que garantia a existência de alguém como nós. A ideia de congelar as relações humanas parecia-me algo pobre: encontrar alguém que nos agrade e ficar preso a esse sentimento, que em tempos foi verdade, assumia para mim contornos francamente aterradores.

Falo-vos por ter um amigo, alguém com quem tive grande afinidade em termos informáticos mas que se revelou tratar-se de uma pessoa bem diferente. Não gostava tanto dos suportes computorizados quanto eu e passou a andar atrás de mim. Sempre que arranjava algum passatempo ou algo que fazer ele queria vir sempre comigo. Gostava de conversar ao vivo e não através de computadores. Uma vez parecia mesmo que estava à espera que eu o convidasse para subir ao meu apartamento.

As casas em Narcisópolis são para uma só pessoa. Todos vivem sozinhos. Realmente como se poderia conciliar as diferentes formas de ser num espaço tão exíguo como um quarto, uma sala, uma cozinha? Os computadores pessoais tratavam de tornar o espaço mais aprazível ao gosto de cada dono: quer em termos de mobília e decoração, quer ainda no que concerne a cheiros, músicas e luminosidades.

Tocaram à campainha. Devia ser ele.

- És tu?

- Sim… vamos passear?

- Vai chatear outro, estou farto de te aturar (grito pelo intercomunicador).

Os nossos computadores individuais não podiam deixar ninguém ferir-se, nem tão-pouco permitiam zangas. Ele ouviu o seguinte:

- Agora não posso, que pena, gostaria mesmo estar contigo… Talvez amanhã…

Foi-se embora, adivinho, sem suspeitar de nada… Nos dias seguintes a nossa afinidade baixará na base informática e ele interessar-se-á por outra pessoa. Pelo menos assim o espero.

 
 
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Maria Estela Guedes
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