1. Régio, como proposta e exemplo
Friedrich Holderlin, o
grande poeta alemão cujo fado penoso o fez
mergulhar nas brumas do espírito cerca de
quarenta anos, disse num dos seus poemas "Quem
pensou o mais fundo ama o mais vivo". Esta frase
pode aplicar-se, com inteira propriedade, a
Régio e à sua obra.
Com efeito, toda a escrita
do autor de "Davam
grandes passeios aos domingos" é uma
intensa celebração da vida ainda que por
intermédio, até, de ritmos que apontariam para a
nostalgia das moradas celestes. Os grandes
autores, os autores nobres na completa acepção
da palavra, é sempre para a vida e os seus
prestígios, maiores ou menores, que norteiam o
seu verbo, os seus amores e desamores, a íntima
razão iluminada que os venha a salvar e permita
também aos que os leiam a travessia de tempos ou
lugares onde a ignomínia permanece ou tenta
permanecer.
Basta ler os seus poemas,
mesmo aqueles onde brilha a tristeza ou a
dúvida, a sua prosa crítica, os seus romances e
novelas, o seu teatro, para entender isto: em
Régio, nenhuma ponta de cinismo ou de
futilidade, de inflexões espúrias filhas das
modas de arrabalde ou de megalópole vêm empanar
o fulgor tanto do seu pensamento como do seu
lirismo. Aquilo que articulou, com maior ou
menor trajecto, tem sempre o selo da
autenticidade, mesmo autocrítica, da fruição
vital, mesmo dolorida - essa chancela vigorosa e
certeira que possibilita às obras e aos homens
que resistam ao decair dos anos e à erosão das
épocas.
O desespero, por vezes,
visitava-o e eis que lhe respondia - com o
pundonor de Poeta - com a "Toada de Portalegre".
Era a dor de ter perdido alguém que o pungia - e
eis as páginas vibrantes de drama e de força
poética de "A
velha casa", onde se sente perpassar o
vulto, discreto mas significativo, como nas
maiores dores, de uma filha rememorada.
Perturba-o o acordo/desacordo entre ele e Deus,
entre ele e o símbolo do Homem encarnado e
terreno cuja origem é de matriz divina? Eis os
poemas que dessa luta resultam, sejam os de "Filho do Homem" como os outros onde se debateu com
a grande equação metafísica.
"Quem pensou o mais fundo
ama o mais vivo"... Sem dúvida e o infausto
Holderlin, filho das musas e das parcas viu
longe e alto. E repare-se que José Régio, mesmo
tentado pela corda dos desesperados, jamais
cedeu - mesmo apenas conceptualmente - ao
abandono da cena. Digno, perscrutador, atento,
de escrita vigiada e sem os arroubos fáceis de
gente menor, sorveu até ao fim, "no gosto de
mais um dia" a existência salubre dos criadores
verdadeiros.
2. Relance sobre a pintura de Régio
Desenhar era, para Régio, uma naturalidade.
Importa logo de início epigrafar esta
naturalidade, que cultivara desde muito novo –
quando ele e seu irmão Julio (como Joaquim
Pacheco Neves assinala no seu livro
Os desenhos de Régio)
pintavam lado a lado nesse tempo de Natal
colorido pelos prestígios da memória.
Independentemente de ser uma naturalidade era
uma faculdade que ia bem para além do gosto
inato de qualquer ser votado aos mundos onde o
fulgor das coisas espirituais nos faz andar
atentos à Arte. O mínimo que se poderá dizer de
Régio é que era um bom desenhador – mesmo um
excelente desenhador. Pintor de domingo? Bom –
só se a maior atenção dada às letras e aos seus
duros caminhos de concretização (para encher a
célebre página branca é preciso muito esforço,
muito suor, para além do talento, o que não está
ao alcance dos zoilos) o remete para essa
qualificação, aliás inadequada e frequentemente
pacóvia. Claro que para um indivíduo como Régio
não há
hobbies deste cariz – são algo de demasiado
fundo e grave, com a gravidade sagrada da vida e
da mirada que sobre ela lança um ser de excepção
como Régio foi.
Assentemos
portanto que nele o interesse pela pintura e o
acto de desenhar/pintar era um dos aspectos da
sua rica vida de relação com os mistérios da
arte entendida por extenso. Depois, se nos
debruçarmos sobre o seu traço, os seus temas (a
sua maneira ou, para utilizarmos a expressão do grande crítico português
de artes plásticas, o arqtº Mário de Oliveira, a
sua
intenção) verificaremos que não andava longe
do que se fazia naquele tempo: um figurativismo
lírico em tons ora mansos ora adustos jogando
com as cores complementares.
A
visitação da figura humana é uma das constantes
a que recorria, fossem essas figuras de entalhe
sagrado ou profano. E, neste caso, haveria
também que perguntar: onde fica traçada a linha
que absolutamente separa o profano do sagrado?
Pergunta que já a propósito de obras de diversos
pintores autóctones ou estrangeiros – pense-se
em Beckman, por exemplo, ou em Chagall ou, entre
nós, em Mário Botas – se tem colocado, visto que
uma figura de mulher é frequentemente a figura
da Virgem (e vice-versa) e a figura de um
mendigo pode ser a figura de Cristo, noutra
encarnação, noutro místico enquadramento, noutra
dimensão real ou onírica.
Régio revela-se inteiramente nessas silhuetas
contorcidas, nesses rostos arrepanhados, nessas
expressões de êxtase, de fúria, de inconcreta
estupefacção – de interrogação, de medo, de
alguma esperança. E, estranhamente, nalguma
súbita frescura de um rosto, de um olhar, de um
movimento, de uma feição secreta. Como Claude
Roy, poder-se-ia perguntar: “Essa frescura será
uma ilusão do nosso olhar ou a expressão da
unanimidade das origens?”.
Na
sua singeleza, há que ver os desenhos de Régio
como os
irmãos daqueles que Julio executava. Não é
difícil,
não é mesmo possível, não se ver nos de
Régio
a versão como num espelho trágico daquilo que em
Julio é calma e lirismo, mas uma calma e um
lirismo bafejados pelo sopro dum surrealismo
metafórico, carregado de significados poéticos e
de serenidade duramente conquistada. Julio (Saúl
Dias), que tenho como um dos maiores poetas do
século vinte português (a minha participação na
homenagem que lhe foi feita em livro organizado
por Valter Hugo Mãe não foi um
act
gratuit da minha parte, pois não escrevo
textos de circunstância – e sim uma atitude de
puro apreço) foi igualmente o protagonista
central duma incursão da maravilha pictórica no
mundo por vezes contraditório da pintura
portuguesa. Régio, votado a outros mesteres mais
instantes, que lhe carregavam o quotidiano de
tarefas que à escrita iam desaguar, teve o seu
percurso de diferente recorte. Mas o que fez
brilha e distingue-se, porque pelos seus
próprios meios se tinha – mais uma vez
parafraseando Roy –
humanizado, enriquecido, metamorfoseado.
E
isto, repare-se, ante os mundos do alto e os do
baixo: os da carne e os da alma, para tudo dizer
nicolau saião
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