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Maria Estela Guedes
(Portugal,
1947).
Poeta, dramaturga,
historiadora da História Natural e da
Maçonaria Florestal Carbonária, além de
exegeta da obra de Herberto Helder. Faz
parte do
Conselho Editorial da revista
Incomunidade, em
www.incomunidade.com.e
colabora com Carlos Loures n'A Viagem dos
Argonautas, em:
http://aviagemdosargonautas.net/
Dirige coleções na editora Apenas
Livros, entre elas
CadeRnos
SuRRealistas SempRe. Tem umas
dezenas de títulos publicados.
Foto: José Emílio-Nelson |
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MARIA ESTELA GUEDES
Na I Grande Guerra:
Naulila
PROJETO
«SARMENTO PIMENTEL»
Publicada uma
versão n' A viagem dos argonautas,
em:
http://aviagemdosargonautas.net/
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Era ainda tenente o
autor das «Memórias do Capitão», quando partiu
para a França, a 16 de maio de 1917, de acordo
com ofício dirigido ao comandante do Regimento
de Cavalaria nº 9, conservado no seu processo
individual, no Arquivo Geral do Exército, em
Chelas. Passava de uma guerra a correr para uma
guerra parada, nas trincheiras, arriscando-se a
ficar sem cabeça se a erguesse acima delas. Essa
imobilidade, acrescentada à declaração do médico
militar, assinada no Porto a 6 de junho do ano
anterior, segundo a qual era portador de doenças
que exigiam tratamento, somada ainda à passagem
de temperatura tropical para o enregelamento nos
campos da Flandres, devem ter pesado muito no
sofrimento do jovem tenente, que o mesmo é
dizer, de todos os soldados.
Com efeito, ele partia
para um frio intolerável depois de regressado do
forno do sul de Angola, na orla do deserto, onde
fizera a Guerra de 14 numa frente bem menos
conhecida, caracterizada por campanhas de
permanente mobilidade, através de regiões
inóspitas, sem água de fonte ou poço em que o
militar, suas tropas, cavalos e muares pudessem
dessedentar-se, apesar de ricas em água, pelo
menos no tempo das chuvas, dada a proximidade do
Cunene. Como ele diz no relatório abaixo
digitalizado, os habitantes da região iam ao rio
buscar água. Um dos pontos que Sarmento Pimentel
reconheceu na sua campanha militar foram as apetecíveis cataratas de Ruacaná, cintilantes no
horizonte: quinhentos metros de
largura tem o rio naquela descida abrupta da
água, por setenta metros de altura, gerando
luxuriante vegetação em torno, habitada por
espécies várias, entre as quais as cinegéticas,
para não se falar dos peixes, se acaso o tenente
e seus acompanhantes estivessem de férias.
Estas linhas descritivas
pertencem a Sarmento Pimentel, duvido no entanto
que facilmente alguém as descubra. Se
porventura o texto tivesse sido publicado em
tempo de Censura e PIDE, com a maior das
desconfianças eu veria aqui
manobra dissuasora para ocultar o autor.
É um relatório, que nunca vi fora do
espaço de escrita onde está inserido: o livro
«Naulila», de Augusto Casimiro (1922). Pelo
menos o capítulo XIII é quase todo ele de
Sarmento Pimentel, como de resto o autor -
Augusto Casimiro autor - informa em discreta
nota de rodapé. Cito a nota: «Foi êste capítulo
escrito sobre os dados carinhosamente cedidos
pelo meu bravo camarada, Capitão Sarmento
Pimentel. Reproduzo muitos períodos seus. E aqui
lhe deixo o protesto da minha amizade e
admiração».
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Não
acabou o motivo de desconfiança: o
capítulo XIII, intitulado "A clareira
dos mortos", tem um "FIM" na página 240,
imediatamente antes do índice; porém, no
índice, o capítulo XIII intitula-se
"Falam os de Naulila" e "A clareira dos
mortos" é o título do capítulo XIV,
final do livro, que não existe, já que o
final é "A clareira dos mortos».
Nem todas as gralhas são erros, algumas
são aves da família Corvidae, por isso
não se creia insensato este apontamento.
Em qualquer altura, a tratar-se de aves
e não de negligência, elas soltarão os
seus agoirentos pios.
Resumindo: o mais extenso e literário
relato de Sarmento Pimentel sobre as
ocorrências de Naulila está escondido
no livro «Naulila» de Augusto Casimiro. |
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Segundo documento do
Arquivo Geral do Exército, João Sarmento
Pimentel «Fez parte do
esquadrão de Cavalaria nº 9, comandou primeiro um pelotão deste esquadrão de vigilância
na linha Otchingau - Suvar - Buct - Driept e a
seguir os auxiliares boers. Executou vários
reconhecimentos, mesmo no território da Damara e
em regiões sublevadas, e tomou parte nos
destacamentos da Dongoena, Naulila e Ngiva. Em
todos os serviços se houve com inteligência,
muita dedicação e valentia».
E porque tal se verificou, e já na
implantação da República tinha dado estupendo
sinal de si, bom aluno que fora em Coimbra de
Sidónio Pais, no lote dos seus castigos e
louvores figura uma medalha de prata
comemorativa das operações no Sul de Angola, em
1914-1915 (O.E. nº1, 1ª série, de 18 de janeiro
de 1917).
Comecemos então pelo
princípio, abandonando gralhas e o discurso do Arquivo
Geral do Exército, para seguirmos o nosso próprio
itinerário mental. Para o fim deixamos um
relatório em que ele
próprio conta parte do que viveu em Naulila, no
comando dos seus auxiliares boers. O estilo é
muito diferente daquele que lemos em Augusto
Casimiro, em absoluto conciso, uniformizado e
prático, por isso o texto é breve. Também não
figura em nenhuma obra de Sarmento Pimentel,
distinto que é do relato constante das "Memórias
do Capitão".
O exército alemão,
seduzido, a meus olhos, pelo manancial do Cunene
nas cataratas de Ruacaná, na fronteira de Angola com territórios então sob
bandeira alemã, áridos, e lembremo-nos de que a
flora da região é coroada pela
Welwitschia mirabilis, espécie do deserto de
Moçâmedes, que agora é Namibe, os
“boches”, em léxico de soldado, puseram-se a
caminhar para norte causando massacres e razias.
A desculpa para a invasão de território
português, tão
fascinante que merece ser estudada num projeto
sobre as realidades e os mitos da cartografia
portuguesa, é a de que a linha de fronteira
atravessada não estava definida politicamente,
isto é, vamos simplificar, não havia mapas, e
não havia porque decerto aquela região não fora
contemplada nas cimeiras de partilha de África
pelas potências europeias. E tanto as cartas não
existiam que vemos Sarmento Pimentel a desenhar
as das regiões cujo reconhecimento lhe fora
atribuído em missão militar.
“Naulila” é sintética
designação de
Augusto Casimiro
dos problemas da invasão alemã no Sul de
Angola. O autor foi um dos correligionários de Sarmento Pimentel
na Seara Nova,
que aliás dá chancela à edição do livro.
A Seara
Nova não foi apenas uma revista, ela
instituiu-se como corpo político, hoje
dar-se-lhe-ia o nome de lobby, e nessa
condição chegou a fornecer elementos para
governo, entre os quais Sarmento Pimentel.
Naulila foi um tremendo
desastre e uma vergonha para Portugal. Por
vários motivos, um deles este, insuportável
pelos militares: um oficial barbeava-se em
frente do espelho, em cuecas, quando foi abatido
pelos alemães. Mais geral motivo para humilhação
foi a despreparação do nosso Exército, habituado
a pelejar contra povos sublevados de África que
pouco mais teriam que arcos e flechas. Na
expectativa de batalhas afins, os portugueses
foram apanhados de surpresa com um exército armado com o que
de mais sofisticado existia na época e
verificou-se um autêntico massacre, pontuado por
pavorosas cenas, como a narrada por Sarmento
Pimentel da sua chegada a Naulila: os corpos dos
soldados, mal enterrados, tinham sido
desenterrados pelo vento, e mais não adianto.
Sarmento Pimentel não
participou destes confrontos atrozes com os
alemães, chegou
depois deles. Ele participou numa segunda leva
militar, sob o comando do General Pereira d’Eça,
e foi incumbido, na qualidade de Comandante dos
Auxiliares Boers, de sucessivas missões de
reconhecimento, mesmo em território da Damara,
isto é, do sudoeste africano ocupado pela Alemanha
e em
regiões sublevadas. Além disso, já o sabemos, tomou parte nos
destacamentos de Dongoena, Naulila e Ngiva. As
ordens recebidas para reocupação das posições
exigiam medidas drásticas, difíceis hoje de
comentar, ao menos por mim, mesmo com o
argumento de que certas populações indígenas
continuavam insubmissas. Pelos relatórios do
então alferes Sarmento Pimentel, integrados pelo
General Pereira d’Eça no seu próprio relatório,
«Campanha do Sul de Angola em 1915», vemos que
ele cumpriu ordens como a de “Cair sôbre a
Dongoena, razeando a região entre o forte da
Dongoena e o Humbe”. Chegaram a abater
seiscentos numa dessas razias.
Angola foi uma provação
duríssima, com etapas em que o alferes, para
chegar mais depressa ao destino, avançou sozinho
a corta-mato pelo interior de um sertão que pela
primeira vez seria mapeado, para chegar roto,
sujo, esfomeado, desidratado, pois a água do
cantil onde já ia!, irreconhecível pelos
camaradas, que tiveram de lhe arranjar umas calças e
uma camisa das deles. Irreconhecível não so pela
aparência e comprida barba como por o julgarem
morto, dado o atraso em relação à data em que
era esperado. De novo se põe o problema da
inexistente cartografia, pois os militares
estavam a cometer erros na avaliação das
distâncias. Se pensavam que o alferes Sarmento
Pimentel ia percorrer cinquenta quilómetros, a
verdade é que a distância era muito superior,
donde o tempo de marcha foi tal que deu aso às
piores suposições. Mas ele chegou ao posto,
apesar de em condições miseráveis. E o que tinham
os camaradas na cantina para lhe
dar de comer? Julgo que me esqueci.
Mal chega à
metrópole, doente, deprimido, de rastos, é
aliciado pelo general Gomes da Costa e lá
vai ele para a Flandres, com antigos
companheiros, entre eles um médico militar
com quem intentará uma revolta anos mais
tarde, à qual chamei “A revolta dos
bibliotecários”, por ter à frente
intelectuais que trabalhavam na Biblioteca
Nacional: Jaime Cortesão. Mas para mim já
chega de guerra, passo agora a palavra ao
alferes de Cavalaria nº 9, Sarmento Pimentel, ele mesmo nos
dirá o que viu e passou no reconhecimento de
Naulila.
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Reconhecimento efetuado
pelo alferes Sarmento Pimentel |
Digitalização de
algumas páginas do "relatório grande" do General
Pereira d'Eça, Campanha do Sul de Angola em
1915. Lisboa, Imprensa Nacional, 1921 |
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AUGUSTO CASIMIRO
Naulila
Seara Nova,
Anuário do Brasil
LISBOA
1922 |
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