Revista TriploV de Artes, Religiões & Ciências . ns . #57. março-abril 2016 . índice



João Pereira de Matos (Lisboa, 1973). Publicou A Machina Circunspecular, Fumar Mata (ilustração, Requiem par'Imortais, Ônfalo, Ciência Vaga, Cancioneiro d'Érebo, Scherzi, Visões do Vazio em um Livro Autógrafo e Ossa et Cineres, todos pela Editora Apenas Livros. Colaborou em vários números das revistas Seara Nova, Big Ode, Callema, Minguante, Piolho, Nova Águia, Côdeas e na Revista Cultura.

JOÃO PEREIRA DE MATOS


Meu caro Bóris


 

Meu Caro Bóris

 

Ter a esperança da sã-rotina em sustento de porvir; e, também por isso, um rosto, uma identidade; talvez que s'estanque tant'errância; excidir a não-adveniência do tempo, este flutuar-parado em rio de coisa-nenhuma só para depois se precipitar incontrolado e onde não encontra leito: transborda, levando-me inerte na enxurrada.

Não quero nem careço de muito, não há necessidade de fulgor e pompa; apenas algo - o que já é pedir tanto, eu sei, que não desmereça este parco lapso aqui sobre o orbe que nos é dado durar.

Que fará de mim a vida? Enquanto permanecer opaca, fecunda de plúrimos infernos, não sabe o vivente o porquê d’estar vivo. Só quando se vêem os caminhos, algo de luz, s’entende que há, que pode haver, venturoso destino. Uma agremiação de forças e tê-las a nosso comando no quotidiano-laboratório. Já se sabe que a vida é perda mas há coisas que não convém perder e se todos em algum momento ou sempre são carecidos de vindicação, o resgate esse só com a última exalação se cumpre, ou é de vida-gorada o balanço final. E por isso pergunto: serei, mesmo decaído, dos eleitos que sabem de sua virtude neste mundo cego-de-sombras?

Sempre foi, caro amigo, de estocástica, tentativa tenção a minha vida; quanto fiz e foi muito, devo-o a essa abscôndita divindade que tanto ilude os homens, que me quis agraciar, a espaços mas contínua, o furor de meus empreendimentos, quanto por vezes de salvar quem parecia perdido, quanto de ofertar alento aos desesperados e assim dizer não àquela ceifeira que chega a todos; e se o respeito, admiração de muitos o soube suportar mesmo sabendo que por qualquer tempo e façanha não os há que não dependam de forças superiores ao vulgo ainda que a arte e o saber sempre se dilatando acudam quando é mais necessário.

Mas ora que a elusiva Fortuna me abandonou, que no deve & haver das coisas do porvir apenas tenebras se antecipem, estou só em espéculo de mim mesmo; minado por doença malsã, oh, tão cansado d’existência e falho de forças, decaído no seio dos irmãos, expulso da ditosa leveza de me saber acarinhado pela ingrata comunidade sei que decidir careço um fim condigno, consentâneo com o que fui e sou, próprio de um último acto de vida e fulgor…

Que sabeis da grandeza? Solver as antinomias da existência com a persistência tenaz de um perdigueiro, assim buscando com ânimo imarcescível - antes da tragédia tinha a meu comando todo o alor e, paciente como ninguém na espera, sabia capturar o momento - fui de encontrar a solução esquiva. Quantos, mais impacientes e no entanto não tão sonhadores s'encerraram no círculo estrito de sua própria errância, por vezes próximos da resposta mas por assim fechados ainda distantes e cegos? Como tudo então fluía, um mundo mais risonho, claramente delimitado, solar e vivo. Podia aí habitar, de fôlego pleno, ladinamente prosseguindo minha meritória faina - e tantos, ditosamente, usufruíram de tais sucessos.

Por outro lado, o que sabeis da queda? Desapiedada catabásis, em teu próprio inferno, cada vez mais fundo nessa vertigem interior que cada homem porta consigo, ah, e que não conhece chão ou término, virtuoso interromper-se, apesar de tudo pois é irrecuperável o que se deixa para trás, terra queimada de interior território, e conhecer o fim do que s'abisma adiante é ainda saber que há esperança mesmo que em desolado horizonte, ruína ou talvez, ainda, fogo. Mas quando s'estanca, a descida tudo se transmuda em suspensão: não, já não haverá futura queda; não, não é ainda o tempo d'ascenço. E é agora aqui que m'encontro, gentil amigo, flutuando no tempo das cinzas, olhando inteiro as glórias passadas (recordação ora distante mas sempre viva, oh, felicidade já inalcançável, porém doce em memória e brilho), antevendo que a época da luz passou e é em sombra que teremos de caminhar, cabisbaixos, perto da loucura, indigência, derrisão dessas potências negativas que bem conhecemos, que não permitem a vida plena, mais própria, na possibilidade possibilitante do vero acontecer...

 
Desenho de João Pereira de Matos

Da grandeza ao nada; à nulação da vida o lapso de um murmúrio; irrisório sintoma, a princípio, a concatenação de uns quantos escolhos que depois s’agigantam, virulenta contaminação do terreno firme da existência sã até que a viscosidade própria de um chão agora já não solo fértil tolha tudo.

E quanto cansaço? Não, como disse, pelas glórias passadas mas como tributo devido ao peso do mundo; e se me vergo ao peso do mundo é porque este, imenso, quando repousa nos largos ombros esmaga sem piedade, ciente do seu vasto poder como quando com inconsciente impulso s’aniquila um insecto que, por momentos, nos perturbe… Para o mundo só dura um instante e usando de mínima parcela de sua força o minucioso labor de reconduzir o vivente à sua real insignificância, de lhe retirar tudo quanto preze, de o humilhar com impessoal sanha e furor… Uma vez terminado o ominoso trabalho gira e revolve o século como se nada fosse, ladino e ditoso para uns, austero e cruel para os demais que como eu incorreram na estulta sina de tal vingança…

Dizer não posso que não anseio pela decisão última deste destino: a liberdade do não-ser, do já não-ser por decesso e desse ponto impossível - ensina doutrina antiga que a vida exclui o nada e portanto não nos concerne tal anulação - que é o exacto contrário da consciência instante de tudo o que para mim é finado, alcançar a tão desejada paz. Essa morte, contudo, não a procurarei por tenção; deixar que sobrevenha o que para todos é inevitável sem o lamentar é tudo o que vem ao meu cuidado; quem no vigor da juventude é colhido, quem de tanta esperança e negócio antevê por mais breve o fim, quem gozando de Primavera vem a saber que não terá Verão, esses são dignos de pena; eu, de costas voltadas para meu próprio devir já não quero, já não sonho, já não direi de mim que ainda luto pela demora da hora final; eu, pelo inverso, abençoo a minha mortalidade; eu que outrora me senti imortal - quantas vezes no combate desigual saí vitorioso, quantos resgatei à tenaz gadanha, eu, que tive ao alcance das unhas um estado de sobrevida tão dilatada quanto o quisesse, se assim detive a panaceia, eficiente travão da feroz morbilidade e desse modo d'extender pelo indefinido da vontade a breve existência debaixo do Sol.

Direi de mim que sou sombra entre as umbradas sombras; clausura na perene rememoração do que fui; já sem força para sair do labirinto; nem o quero: é agora tudo o que sou, memória em carne-viva, respirante mas só na exacta adveniência de seu passado e por hábito - inalar, exalar, mais um dia...

Nem toda a estima, debaixo do Sol, acima da terra, o arsenal indiviso da pura amizade faz coalescer o que, por fatal, oprime: aqueles que permanecem os mais dilectos entre os fiéis não podem, não têm poder para atenuar a desgraça, remir o mal que acomete aquele que de entre todos parecia pairar por sobre o orbe. Umas palavras apenas em teu favor, caríssimo, que m’acompanhas na era-má, que a meu lado soubeste suportar quanto opróbrio; se mais não fazes é por minha escolha; serás fiel depositário de meu legado e é com a prudência que a sua preservação obriga que t’impõe afastes de mim, de minha desdita, de tudo o que acompanha a fama funesta; essa, pior que a mais virulenta maleita, contamina quem comigo prive, s’alastra a tudo o que tocar, apodrece a víscera mesma das coisas que sejam minhas ainda que pelo mais breve momento, quase que se fere de morte com um olhar, uma intenção ainda que boa é qual sentença de demenciado juiz no corroer de vida sobre quem repouse; por isso m’eximo de qualquer contacto, irei para o deserto se tal carecer o firme propósito de não lançar o meu pessoal anátema por simpática proximidade com outro ser; a solidão não é o pior, não, o pior é restar vivo… Ainda assim, disse-me eleito, escolhido por um destino todo-ciência de se saber, levando a iluminação para a cova ou vala comum, mas uma vez aquele lapso d’epifania ocorrendo, projecta-se todo um novo universo, distenso e aberto na sua abertura, a luz, tanta e tão clara que a cegueira é apaziguadora e limpa… Por isso talvez nem lamente o sucedido, talvez seja acto de uma peça tão mais acabada, circulação de um saber desde sempre detido mas, caído no olvido, carecendo de um atroz despertar; a consciência, obrigada ao violento esforço, cede, orbita a loucura, perverte-se ao perder o chão, dilui-se em multidão… E resto eu, despido de quant’atavio que todos os homens usam no século, resto eu perante mim, carne e ossos e víscera em brasa, pensamento desregrado não abarcando a circunferência que durante, ah, tanto tempo, delimitava o limite e que, por suave e doce aura do possível era também horizonte. Não é possível habitar um corpo que recusa seu emprego de corpo, quando uma alma desorbitada bebe as estrelas, uma implosão do convívio das gentes que deixam de reconhecer o teu rosto, ou simplesmente a tua humanidade… E tudo isso é a doença, mais rica e prenhe de possibilidades do que alguma vez alguém achou possível mas que por excesso de si e de vital doação destrói qualquer liame com o próprio porvir; imaginai: tal é o novel estado de quem padece, tudo é subitamente pequeno e mesquinho, já nem se conhece o próprio rosto e ter assim tanto cosmo é a mais ditosa das desgraças; cresce-se demasiado depressa, o corpo apodrece pois é inútil à tua real condição e teu domínio; nem as ideias comuns permanecem em seu serviço, nem uma morada te poderá albergar; serás vagabundo, privado da mais elementar serventia da urbe que, aliás, te teme e despreza… Em um primeiro momento, há o natural impulso de comunicar a boa nova, a pouco e pouco se perceberá que isso é ferido d’impossível: já não és, propriamente, humano; ainda não és outra coisa, como em fluxo e acelerada mutação se haverá de percorrer dolorosamente todas as formas sem se deter em nenhuma; nem o nome de Síndrome de Proteu faz jus ao caleidoscópio mórfico do mutante em mutação… Uma réstia do antigo ser porém se preserva, uma pálida imagem de uma identidade pois só uma identidade admite a interminável mudança; se esta inexiste então a condição de um doloroso fluir não pode ocorrer e o hospedeiro é enjeitado da sua doença, expurgado da dádiva, imune à maldição… E por isso ainda sou, mudando e errante, miserável entre os d’existência dejecta mas ainda eu, um cogito hiper-lúcido excogitando naquilo que sou, fui e serei.

Andar pelo mundo sem saber quem sou, isso, meu caro Bóris, não o fará o outrora grande Doutor Çapek.



 
 
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Contacto: revista@triplov.com
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Maria Estela Guedes
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