Na sua última semana entre nós Israel Pedrosa e
eu falamos várias vezes por telefone. No dia 5
de fevereiro, ele estava contente por ter
terminado o seu monumental livro “Dez aulas
magistrais. Genealogia da cor inexistente.” e a
sua voz estava risonha. A distância nos permite
imaginar e eu via a sua alegria. No dia 7.2, num
domingo, Israel morreu.
A minha opinião sobre
as “Dez aulas...”, se transformou, a seu
pedido, numa epígrafe do livro. Seremos quatro
no frontispício: Dante, Petrarca, Marco Luchesi
e eu. Como sempre, quando homenageamos a obra do
Israel, somos nós os honrados, como foi neste
caso, ao me colocar junto com estes três
gigantes.
A minha epígrafe é a seguinte:
“Não conheço nenhum
livro nos séculos vinte e vinte e um que seja
capaz de educar a nossa sensibilidade tanto
quanto este “Genealogia da Cor Inexistente”.
Talvez por não desejar nos convencer de nada,
mas apenas contar de seu extremo amor aos deuses
da arte, este livro seja ainda mais eficaz e
comovente. Israel Pedrosa pertence a esta
família artística dos que ampliam a nossa
percepção. Muito jovem percorri bibliotecas à
procura da minha verdadeira identidade. É uma
felicidade, já provecto, encontrar num só livro
tão claro panorama de artistas iluminados
capazes de elevar a nossa sensibilidade e nos
tornar mais humanos.”
Eu sabia do extremo
amor de Israel Pedrosa por Candido Portinari,
seu mestre e amigo. Para alegrá-lo eu escrevi
também uma frase para abrir o capítulo dedicado
a Portinari. A lealdade histórica para Israel
Pedrosa era um princípio fundamental de vida.
Aliás, para mim, também.
Epígrafe para “Portinari”.
“Eu o considero o
marco afirmativo do nosso modernismo,
criador de uma obra monumental, autor da
odisseia sobre a nossa vida e a nossa gente.
Além disto, a qualidade estética de Portinari, a
grandeza de seus temas, a ousadia de
interpretação e a coragem de escolha de
assuntos, com dificuldades infinitas, o
caracterizam como um grande artista. “
“Portinari é o
narrador de mitos, o nosso Homero. E na sua obra
encontramos a imobilidade da tragédia, o tempo
paradigmático do símbolo e a ausência da
agitação do simples drama. Portinari é a
tessitura que organiza e forma a base da arte
brasileira, a marca da nossa maturidade, o ponto
alfa, do qual podemos contemplar o nosso
panorama.”
Israel Pedrosa teve
o sonho mais nobre que um artista pode ter; ele
sonhou em pintar com a luz. E a sua vida foi a
vivência desta vontade. A sua pesquisa sobre a
cor e a refração da cor e a possibilidade de
pintar também com a cor física, celebrada no
livro “Da cor à cor inexistente”, é um momento
nobre da arte no século vinte. Pedrosa,
pintor e professor, pintou e ensinou e a sua
última aula levou 20 anos de preparo e é este
“Dez aulas magistrais”.
Existem homens cuja vida é idêntica ao seu
destino, a tal ponto que não podemos distinguir
um do outro. Israel Pedrosa foi um destes raros.
É impossível imaginar a vida de Israel Pedrosa
sem a sua longa pesquisa sobre as cores e sobre
o seu destino de acrescentar à sensibilidade da
nossa época a poética do pintor: eu sou um
pintor, disse Paul Klee. Israel Pedrosa poderia
ter dito: eu sou um pintor que pinto a luz com a
luz.
Durante os últimos
vinte anos Israel Pedrosa estudou os métodos de
pintar, “à maneira de”, dos seguintes artistas,
que costumava chamar de “meus Deuses”: Leonardo
da Vinci, Hieronymus Bosch, Vermeer de Delft,
William Turner, Paul Cézanne, Vincent Van Gogh,
Paul Klee, David Alfaro Siqueiros, Candido
Portinari, Jackson Pollock. E durante este
período escreveu e pintou a vida secreta,
intima, destes artistas, para ele, Mestres
Divinos. Ele nos contou e demonstrou como eles
sentiam e como eles tornaram às suas intuições
em obras primas.
Ao cabo de 20 anos, o
último raio de sol de sua visão terminou com a
última pincelada. Israel estava praticamente
cego. Uma semana depois, eu acrescentei a minha
opinião sobre este livro que acompanhei passo a
passo, desde a ideia original, o primeiro
desejo, até a sua finalização.
Na quarta feira, dia 4, ele me telefonou e disse
que soubera tardiamente que o Octávio Araújo
morrera. “Éramos quatro em Paris: Octávio,
Gruber, Ventura e eu. Agora só resta eu e
Ventura e ele está doente”. Ele me pediu que eu
enviasse o texto que escrevi quando da morte do
Octávio. Ele sabia que eu consideraria a
grandeza do Octávio. Eu prometi e enviei o
“Canto para Octávio Araújo”. Foi o último texto
que o Israel Pedrosa leu, o relato da vida do
seu velho amigo Octávio Araújo no que ela tinha
de único escrito por este seu amigo de uma
geração mais recente.
Não tenho vontade de dizer, como Simone de
Beauvoir, no seu magnífico “A cerimônia do
adeus”, quando da morte de Sartre: ”Sua morte
nos separa. Minha morte não nos reunirá.”. Eu
sinto que as pessoas significativas permanecem
amalgamadas conosco, fazem parte indissolúvel do
que somos.
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